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    Urariano Mota

    Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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    Ainda estou aqui. Ainda estamos

    Todos os democratas, todos jovens e eternamente jovens devemos ver, discutir e divulgar este filme. Ele está inscrito em nosso DNA. É nosso

    Filme Ainda Estou Aqui (Foto: Divulgação)

    O jornalista e escritor Paulo Carneiro, amigo da nossa longa juventude, me convocou por e-mail para escrever sobre “Ainda estou aqui”. E nesta forma a seguir me apresento.

    As excelências do filme possuem camadas que, ao falar delas, podem parecer tímidas restrições deste autor. Na primeira delas, observo: tão pobres estamos de filmes sobre a dor na ditadura, que nos vemos representados na tela do cinema. Na segunda, tão pobres estamos da representação do terror da ditadura no cinema, que saudamos com entusiasmo o filme.

    E saudar o filme significa notar a excelência do diretor Walter Salles, as ótimas atrizes, ótimos atores. Fernanda Torres em sua melhor atuação, seguindo de perto a magnífica insuperável Fernanda Montenegro. A grande Montenegro em silêncio dá um soco em qualquer insensibilidade que houver. Bela, digna, perdida de dor e muda. E nesse particular da representação, a excelência das duas atrizes é tamanha, que parece ocultar o genial trabalho do ator Selton Mello. Dele, podemos ver uma vez mais que a melhor arte esconde a sua arte. Nós não vemos a sua representação. Vemos o próprio Rubens Paiva na tela. Selton Mello, que ator!

    O magnífico é que, transmitido pelo filme, temos uma história real da miserável e terrível ditadura no Brasil. O diretor Walter Salles, Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello e todo elenco nos põem de volta à tragédia humana que a extrema direita e golpistas querem desmerecer, ocultar, debochar, desrespeitar, na sua revoltante impunidade. Trazida pela arte, a ditadura se mostra, com um drama humano, familiar, que não poupou nem os bem-nascidos. Que matou sem escrúpulo, porque, afinal, todo resistente era chamado de terrorista. E num ponto ótimo do filme, o público nas salas de cinema tem compreendido a ditadura que se ocultava. A ditadura que nem dizia o seu nome, pois era chamada de revolução de 1964.

    Todos os democratas, todos jovens e eternamente jovens devemos ver, discutir e divulgar este filme. Ele está inscrito em nosso DNA. É nosso. Todos, populares, estudantes, brancos, negros, não importa a condição, nos sentimos presentes. Como relato em meu romance “A mais longa duração da juventude”, onde recupero o depoimento da grande advogada Mércia Albuquerque sobre os assassinados no Recife em 1973:

    “Jarbas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca”. Jarbas teria sido puxado por corda para o matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, ao esconder lesões, ao eufemizar a barbárie. Tudo que falam é uma adaptação do cadáver à fraude da repressão política. É nessas circunstâncias que cresce o valor do depoimento da advogada, que testemunhou e preencheu as lacunas, o vácuo dos laudos tanatoscópicos:

    “Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror ”.

    Esse filme tem a nossa entusiástica aprovação porque retirou das tumbas um drama humano, que é nosso também. E hoje, mais que nunca, segue o seu destino de ser reconhecido em todo o mundo, com Oscar ou sem Oscar, mas digno de nos representar com arte e denúncia na tela. Esse não é o melhor e mais alto prêmio ?

    A história desse filme não tem The End. A sua história não acaba com os dias da nossa existência.

    https://www.facebook.com/watch/?v=178956309318772

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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