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    Roberto Gervitz

    Diretor, roteirista, montador e compositor

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    Ainda estou aqui, o livro - Carta ao Marcelo Paiva

    "É também um livro necessário"

    Ex-deputado federal Rubens Paiva (Foto: Secretaria de Estado da Cultura/SP)

    No final de 2015, após ler o livro do Marcelo, resolvi escrever a ele. Não nos víamos há um certo tempo. Então lhe enviei o texto abaixo, que sofreu apenas pequenos cortes. 

    Pouco antes do lançamento do filme, o encontrei. Ele estava muito feliz com o resultado do filme que é primoroso.

    Tão brilhante é o resultado alcançado pelo Waltinho que eu localizo nas linhas abaixo, as mesmas emoções e reflexões que senti ao ler esse livro do Marcelo que para mim, até agora, é o que mais gosto de todos que ele escreveu. Mas muitos outros virão. 

    "Querido Marcelo,

    Acabo de ler o teu último livro, “Ainda Estou Aqui”. Você tinha total razão quando me disse que eu ia gostar, mas não sei se gostar dá conta do que foi a experiência de ler o teu livro. O que eu posso dizer é que foi uma leitura vivida, entregue, ainda que mais interrompida do que eu gostaria.

    Seu livro é intenso e comovente em vários momentos, mas sobretudo no final; é uma declaração de amor aos seus pais, mas sobretudo à sua mãe, para além dos julgamentos ou reparos, como deve ser uma declaração de amor – incondicional. Quem sabe a mesma qualidade de amor que ela sentia por seu pai. A personagem que você constrói de Eunice é belíssima inclusive literariamente, em uma clave lacônica e minimal, multifacetada, incoerente, em constante transformação, até mesmo na doença, uma mulher poderosa em sua fragilidade, em sua grandeza, em seu pragmatismo, em seu afeto indireto, em sua dureza, em sua profunda compreensão do filho, na armadura que criou para si e subitamente desarmada no contato com o neto, lindamente associado por você àquele que foi o marido dela e seu pai. Há momentos e imagens difíceis de esquecer de tanta humanidade, como a sua mãe já em estágio avançado da doença fazendo alongamento em sua mão.

    É um livro que nos faz pensar sobre o tempo e sua pulsação em consonância com a memória - essa misteriosa faculdade que nos identifica, que nos faz ser quem somos – e sua igualmente misteriosa, terrível e seletiva desaparição com a doença de Alzheimer. Nessa reflexão também pensamos nos estranhos caminhos de nossas existências tão avessos a qualquer justiça e sentido moral. A natureza nos assombra: nem cruel, nem mãe – apenas indiferente. Assim como a doença só é metáfora nos livros, é apenas superficialmente paradoxal que a sua mãe que lutou de todas as formas contra o esquecimento de tanta barbárie cometida em nosso país, tenha chegado a um mundo sem lembranças, sem relações e propósitos futuros ou passados.

    É um livro evocativo, tantas foram as imagens, vagos estados e sensações da minha própria infância que me vieram à mente durante a sua leitura. Mais do que aos trechos da sua adolescência que você já havia resgatado em Feliz Ano Velho e que nesse livro são, em alguns momentos, algo parecidos no tom, eu me liguei aos relatos da infância. Belíssimos, envolvidos pela névoa da memória- o momento em Teresópolis é marcante - verdadeiros, pueris e reveladores. Eu acho que esse livro também revela um Marcelo preso ao passado, muito antes de FAV (falo das suas incursões à casa do Leblon, por exemplo, mas não só) que eu sempre intuí mas não conheci de fato na época em que andamos mais próximos. Esse lado revelado com coragem, integridade e coração aberto, também me tocou bastante. Quem sabe esse seja o livro em que você foi mais fundo.

    É também um livro necessário e não só para você, pois revela mais do que qualquer tese ou estudo o que foi viver na abominável ditadura militar que nos marcou como indivíduos e como nação, sombra que ainda nos persegue no século XXI. E que você reconstrói de forma nada retórica, mas sim na carne, nos ossos, na mente e nos sentidos, em mais um capítulo da imensa brutalidade do homem, a sua capacidade de construir infernos, movido pelos interesses mais vis, pela pura crueldade, pela manutenção de injustiças e privilégios que deixam a grande maioria da humanidade na miséria. Um livro também necessário porque mostra a grandeza e a generosidade de homens como o seu pai que foram movidos pela urgência de transformar um estado de coisas que ainda perdura e ao qual nos rendemos ou acostumamos. E imagino o quão doloroso e libertador foi colocar tudo isso no papel.

    Para mim "Ainda Estou Aqui" evidencia a sua maturidade literária– muito bem escrito, narrado e articulado – com lindas digressões sobre a memória e a doença de sua mãe e ainda pelas associações livres e ricas que você estabelece ao longo da narrativa, aliás, extremamente bem construída em sua progressão. Não é à toa que você escreveu tal livro depois de tornar-se pai.

    Mais do que qualquer outra coisa, o livro revela a sua integridade.

    Um abraço grande com amizade e admiração,

    Roberto"

    FELIZ ANO VELHO, dirigido por Gervitz e REMASTERIZADO COM SOM  5.1,ENTRA EM CARTAZ A PARTIR DE 05/12 NA CINESYSTEM FREI CANECA ( SÃO PAULO), BOTAFOGO (RIO DE JANEIRO ) E CASA PARK (BRASíLIA)

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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