Alegria à prova d’água
Nem trovão, muito menos tempestade, basta uma garoa e o povo corre pra casa
Até os 17 anos eu rezei. Rezei com fé e hora marcada. Ave Maria e Pai Nosso, sempre no sábado à noite. A prece não era para entrar em baile de adulto, tampouco para que o bilheteiro do cinema me deixasse ver o filme de 18 anos; também não implorava por passar no vestibular ou conquistar a namorada que tanto me fazia falta no fim da adolescência – aliás, no início e no meio também.
Meu clamor era mais urgente: que não chovesse no dia seguinte. Domingo, 3 da tarde, na então deserta Barra da Tijuca, era o horário em que o nosso time, o Verde e Branco - nenhuma ligação com Palmeiras -, entrava no campo de terra do Marapendi. Campo grande de onze pra cada lado. Se vinha água lá de cima, a cancha virava pântano, a bola não rolava, patinavam congas, bambas e ki-chutes. Que chovesse a semana toda, domingo nunca. Jamais. Com a ajuda dos santos ou dos ventos, a maioria dos clássicos foi na terra seca.
O tempo ensinou que chuva miúda, de preferência antes do primeiro apito, era bem vinda, refrescava os times, amaciava a terra, baixava a poeira.
Hoje, quando vem chuva miúda, paro para observar a vida e a gente da rua.
A água é pouca mas transforma a cidade. O pedestre que antes flanava distraído, quase corre de volta pra casa. Medo de apagão, alagamento, tragédia.
Um boteco recolhe as cadeiras, outro estica o toldo, clientes fogem pra dentro como se um dilúvio estivesse a caminho.
O trânsito que no meio da tarde fluía lento, mas fluía, para. O preço da viagem do carro por aplicativo triplica, o táxi desaparece, o moço da CET também.
A avenida Angélica se torna um estacionamento. Com capuz na cabeça, subo a pé e deixo carros e ônibus pra trás.
Logo descubro que o chuvisqueiro não é o único culpado. Do lado direito da avenida, três viaturas e duas motos ocupam uma faixa. Na calçada oito policiais examinam documentos e mochilas de dois ciclistas. Dois rapazes de mão na cabeça, pernas abertas e olhares gelados.
Quem é quem? Trabalhadores expostos injustamente, ladrões de celular? A pequena tropa ainda não tem a resposta. O que posso garantir é que o sufoco dos dois rapazes é o atrativo da multidão congestionada. “Parecem de família”, comenta o zelador do prédio vizinho.
Cem passos à frente, a causa principal do furdúncio: uma frota de betoneiras fecha quase a metade da avenida. O barulho altíssimo cala o bate-estaca e as buzinas. Mais uma torre começa a subir.
Ruídos loucos, ouvidos moucos. Com os vidros fechados, o motorista da betoneira namora seu celular.
Uma dupla me desperta. Pai e filha descem do ônibus. Ele segura a mão da menina com a direita, na canhota carrega a mochila e o celular, o guarda-chuva vai embaixo do braço.
A garoa aumenta, vira chuva, lava calçada, arrasta bituca, mata a sede da tipuana.
Pai e filha se protegem sob a marquise e a menina, de no máximo seis anos, pede:
- Pai, faz aquela brincadeira?
O sorriso que brota no meio da barba espessa é a resposta que a garota desejava. Ele levanta a filha, que escala escápulas e clavículas e então se acomodada sobre os ombros de pedra. As duas perninhas abraçam o pescoço tatuado. A dois metros e meio de altura, a mão pequenina abre o guarda-chuva.
Ela se delicia com a aventura de proteger o pai e ver o mundo lá de cima. Ele sacode os ombros de leve, a menina ri ainda mais. Talvez as únicas almas felizes na tarde molhada.
- Tá frio aí em cima?
- Siiim!
- Tá vendo planetas da torre de comando?”
-“Siiiim, pai! É Marte.”
Como estátuas, pedestres e motoristas admiram a escultura em movimento. Pai e filha a se divertir com a brincadeira que eles mesmos inventaram. A 50 metros da escola a pequena pede.
“Pai, vai bem devagarinho.”
Muita água passou embaixo da ponte e quem há décadas torcia até contra o orvalho, hoje se derrama diante da brincadeira molhada.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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