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    João Lister

    Advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV

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    Além do banho, emprego e teto: ressocialização de pessoas em situação de rua exige empatia para cura emocional

    "Empatia não é piedade. É reconhecer no outro a mesma complexidade que há em nós." — Maria Lúcia Santos, assistente social.

    Pessoas em situação de rua (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

    Nos últimos anos, o Brasil ampliou políticas públicas para pessoas em situação de rua, como oferta de banhos, moradias temporárias, vagas de emprego e tratamento para dependentes químicos. Apesar da importância dessas iniciativas, especialistas apontam que elas não combatem a raiz do problema: a ruptura dos vínculos afetivos, que leva muitos a enxergarem as ruas como refúgio para evitar confrontar traumas emocionais. Dados revelam que, sem abordar essa dimensão, o ciclo de exclusão persiste.

    A Situação de Rua: Um Problema Histórico e Universal

    A presença de pessoas em situação de rua não é um fenômeno recente, nem exclusivo de um país ou sistema político-econômico. Desde a Antiguidade, registros históricos mostram indivíduos que perambulavam à margem das sociedades. Na Roma Antiga, os "vagabundos" eram vistos como uma classe à parte, muitas vezes associada à pobreza extrema ou à rejeição familiar. Na Idade Média, mendigos e peregrinos eram comuns nas cidades europeias, enquanto no Japão feudal, os "hinin" (não humanos) viviam à margem do sistema de castas. Até mesmo em regimes socialistas ou em economias avançadas, como os Estados Unidos, a figura do "sem-teto" persiste, evidenciando que o problema transcende modelos econômicos e ideologias.

    No Brasil, a situação de rua ganhou contornos mais visíveis com a urbanização acelerada do século XX, mas já estava presente desde o período colonial, com os "desvalidos" que vagavam pelas ruas das cidades. Hoje, o problema se agrava com a desigualdade social, mas sua essência permanece a mesma: a exclusão de indivíduos que, por razões afetivas, econômicas ou sociais, não encontram lugar no tecido da comunidade.

    Medidas Atuais: Avanços Superficiais

    Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil registrou 281.472 pessoas em situação de rua em 2022, um aumento de 38% em relação a 2019. Programas como o "Consultório na Rua", vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), e a distribuição de moradias emergenciais são vitais para a sobrevivência imediata. Contudo, um estudo da Fiocruz (2021) mostra que 65% dessa população sofre de depressão ou ansiedade, e 48% relatam uso abusivo de drogas, frequentemente vinculado a traumas como violência doméstica, abandono familiar ou luto não processado.

    Além do Estado: A Força da Sociedade Civil no Acolhimento Integral

    Se a burocracia estatal não é capaz de debelar sozinha as causas profundas que levam pessoas às ruas, forçoso reconhecer o papel essencial de agentes da sociedade civil. ONGs, instituições religiosas e até mesmo grupos de ativistas não institucionais atuam na linha de frente, oferecendo não apenas auxílio material, mas apoio psicológico e espiritual. A Ação da Cidadania, por exemplo, além de distribuir alimentos, mantém projetos de escuta terapêutica para reconstruir vínculos afetivos. Já a Pastoral do Povo de Rua, vinculada à CNBB, relata que 70% dos atendidos em suas ações buscam, antes de tudo, “ser ouvidos sem julgamento”. Até coletivos informais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), organizam rodas de conversa para resgatar a autoestima de quem se sente invisibilizado. Nessa seara inúmeras instituições confessionais, de Espíritas a Evangélicos atuam diariamente nas ruas levando além de alimentos, medicamentos, itens de higiene e, também, um reconforto espiritual.  Contudo, aqui cabe uma advertência: a eficácia desses trabalhos somente se obtém quando os ativistas dessa causa compreendem que a relação não pode se dar de maneira colonizadora, querendo que aquele que se encontra em situação de rua reze o mesmo credo que comungam. É preciso respeitar e mesmo descolonizar.As políticas públicas no Brasil, em sua maioria, têm um caráter emergencial e assistencialista. Embora essenciais para amenizar os impactos imediatos da vida na rua, tais medidas não promovem uma ressocialização plena. A oferta de moradia, por exemplo, embora crucial, não resolve as questões emocionais subjacentes. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) sobre o programa “Housing First” - Paiva, A. B., & Faleiros, V. P. (2021). "Habitação para populações vulneráveis: Resultados e desafios do programa 'Housing First' no Brasil". Revista Brasileira de Políticas Públicas, 15(2), 145-160. Disponível em: www.revistabrasileirapoliticaspublicas.org.br -, implementado em diversas cidades brasileiras, revelou que apenas 47% dos beneficiados conseguiram manter a moradia de forma contínua por mais de dois anos, muitas vezes devido à falta de suporte psicológico e social.De maneira semelhante, programas de reinserção no mercado de trabalho enfrentam barreiras significativas. Sem o resgate da autoestima e a reconstrução de vínculos sociais, a reintegração ao mercado formal torna-se um desafio quase intransponível. Nesse sentido, a psicologia do trabalho destaca que a autopercepção de valor é um elemento fundamental para a reinserção no contexto laboral, algo frequentemente ausente entre pessoas em situação de rua.

    A Causa Invisível: A Fratura Afetiva

    Para muitos, a rua não é apenas uma consequência da pobreza, mas uma fuga de ambientes emocionalmente hostis. “Atendemos casos de jovens expulsos de casa por sua orientação sexual e idosos abandonados após perderem familiares. Eles carregam feridas que empregos e teto não curam”, declarou Maria Lúcia Santos, assistente social da ONG Ação da Cidadania, durante o lançamento do relatório "Vidas Invisíveis: Saúde Mental e Exclusão Social", em março de 2023. A afirmação integra o capítulo dedicado aos desafios afetivos da população em situação de rua, publicado no site da organização (www.acaodacidadania.org.br/relatorios). Dados do Ministério da Saúde (2023) indicam que 70% das pessoas em situação de rua já vivenciaram violência intrafamiliar, evidenciando a conexão entre rupturas afetivas e exclusão.

    Empatia Como Cura: Reconstruindo Autoestima

    A solução proposta por psicólogos e ativistas é a promoção sistemática de empatia. Isso inclui escuta qualificada, acompanhamento psicológico contínuo e programas de reintegração social baseados em vínculos comunitários. Em São Paulo, o "Consultório na Rua", do SUS, que integra saúde mental e atendimento social, tem sido uma das principais iniciativas para reduzir a exclusão. Embora não haja dados consolidados sobre redução de reincidência, relatos de profissionais da saúde apontam que o acolhimento emocional é fundamental para a reinserção social.A teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby - Bowlby, J. (1988). Apego e perda: Vol. 1. Apego. São Paulo: Martins Fontes. -, pode ser aplicada para compreender esse contexto. Bowlby argumenta que os vínculos afetivos formados na infância são essenciais para o desenvolvimento emocional e social do indivíduo. Quando esses vínculos são rompidos ou inexistentes, cria-se uma vulnerabilidade emocional que pode culminar em comportamentos de fuga, como o abandono do lar e a busca por refúgio nas ruas.As ruas, nesse sentido, tornam-se uma espécie de “não-lugar”, como descrito pelo antropólogo Marc Augé - Augé, M. (1995). Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus -, onde os indivíduos, desprovidos de pertencimento e reconhecimento, encontram uma forma de existir sem enfrentar seus traumas. Esse cenário reflete não apenas a exclusão social, mas também a tentativa de autossilenciamento diante de um sofrimento emocional insuportável.

    A Empatia como Ferramenta de Ressocialização

    Diante dessa realidade, torna-se urgente adotar estratégias que transcendam o assistencialismo e promovam uma abordagem centrada no indivíduo. Isso exige a incorporação da empatia como elemento central das políticas públicas. Empatia, nesse contexto, não é apenas um sentimento, mas uma prática que demanda o reconhecimento do outro como sujeito pleno, com uma história de vida e uma dignidade que deve ser respeitada.

    Intervenções baseadas na psicologia comunitária e na terapia narrativa têm mostrado resultados promissores. A terapia narrativa, por exemplo, busca ressignificar as histórias de vida dos indivíduos, permitindo que eles reconquistem o protagonismo sobre suas trajetórias. Ao mesmo tempo, programas que envolvem a participação ativa da comunidade na ressocialização – como círculos de apoio e redes de acolhimento – demonstram que o fortalecimento dos laços sociais é essencial para o sucesso das políticas públicas.

    O modelo canadense de “Recovery-Oriented Systems of Care” (Sistemas de Cuidado Orientados à Recuperação) – relatado em, Ministério da Saúde. (2015). Diretrizes para o Fortalecimento das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude - é um exemplo inspirador. Ele integra assistência material, apoio psicológico e envolvimento comunitário para promover a autonomia e o bem-estar emocional dos beneficiários. No Brasil, iniciativas como os Consultórios na Rua, coordenados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), representam um passo na direção certa, mas ainda carecem de expansão e de maior articulação com outras políticas públicas.

    Estatísticas que Demandam Ação

    • 84% das pessoas em situação de rua não possuem contato regular com familiares (IPEA, 2022).
    • 60% dos atendidos em abrigos retornam às ruas em menos de um ano, segundo relatório da Secretaria Nacional de Assistência Social (2023).
    • Projetos que integram saúde mental e apoio comunitário têm taxa de sucesso 50% maior na reinserção social (Fiocruz, 2021).

    Um Chamado à Humanização

    Oferecer recursos materiais é essencial, mas insuficiente. Políticas públicas precisam priorizar a reconstrução afetiva, com investimento em equipes multidisciplinares e campanhas que estimulem a empatia social. Como sociedade, é urgente enxergar além das circunstâncias e reconhecer a dignidade emocional daqueles que as ruas abrigam. Só assim romperemos o ciclo de invisibilidade que mantém milhares presos à margem.

    Fontes:

    • Ação da Cidadania (2023). Relatório "Vidas Invisíveis: Saúde Mental e Exclusão Social". Disponível em: www.acaodacidadania.org.br/relatorios.
    • IPEA (2022). Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil.
    • Fiocruz (2021). Saúde Mental e População de Rua: Diagnóstico e Propostas.
    • Ministério da Saúde (2023). Perfil Epidemiológico da População em Situação de Rua.
    • Secretaria Nacional de Assistência Social (2023). Relatório de Reincidência em Abrigos.
    • Bowlby, J. (1988). Apego e perda: Vol. 1. Apego. São Paulo: Martins Fontes.
    • Augé, M. (1995). Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus
    • Paiva, A. B., & Faleiros, V. P. (2021). "Habitação para populações vulneráveis: Resultados e desafios do programa 'Housing First' no Brasil". Revista Brasileira de Políticas Públicas, 15(2), 145-160. Disponível em: www.revistabrasileirapoliticaspublicas.org.br.
    • Ministério da Saúde. (2015). Diretrizes para o Fortalecimento das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude

    João Lister é advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV – Fundação Getúlio Vargas, Pós Graduado em Psicanálise Clínica, pela Faculdade Metropolitana.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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