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    Rita Cristina de Oliveira

    Defensora Pública Federal. Ex- Secretária Executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR

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    Anatomia do Disclaimer

    O mundo neoliberal expandiu o capitalismo a ponto de nos tornar não mais apenas mercadoria, mas o próprio sujeito da competição e do aprimoramento do capital

    Trailer de 'Anatomia do Disclaimer' (Foto: Reprodução (YT))

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    Obras são tanto mais interessantes quanto são capazes de nos causar sentimentos complexos, percepções e sensações diversas e conflitantes. Recentemente assisti três obras no streaming que juntas me levaram a profundas reflexões: Anatomia de uma queda, Disclaimer e O Caso da Escola Base. A primeira um filme, premiado com o Oscar de melhor roteiro original em 2024, a segunda uma série que vem sendo muito aclamada pela crítica e a terceira um documentário baseado na história real de pessoas afetadas por uma sucessão de erros jornalísticos que provocaram um verdadeiro linchamento midiático na década de 90, utilizado como exemplo clássico do mau jornalismo.

    Anatomia de uma queda traz um estilo trial que nos coloca no cenário de uma disputa de narrativas no judiciário e na vida doméstica da personagem Sandra, interpretada pela atriz alemã Sandra Huller, uma escritora de ficção acusada do assassinato do marido. O filme encerra nos deixando as perguntas sobre o que de fato levou à queda fatal do marido e com as narrativas em suspenso sobre a veracidade do relato de Sandra. Não há uma perversão apreensível entre as personagens em torno de sua conturbada relação conjugal e para complexificar ainda mais o filho de ambos é uma criança com baixa visão e que pode ter a chave da verdade, mas ao final inocenta a mãe perante o tribunal sem nos convencer completamente, mas sem que a dúvida nos leve necessariamente a acreditar que ela estivesse mentindo. 

    Disclaimer traz a história de uma aclamada documentarista, Catherine, que passa a ser atormentada pelo passado a partir da publicação de um livro que traz de volta uma história do seu passado sob a narrativa de um pai amargurado pela morte do filho e da esposa, que atribui ao envolvimento sexual do filho com a escritora. Durante quase toda a trama acreditamos que a personagem de Cate Blanchet, que esbanja uma atuação incrível para variar, é uma pessoa de um caráter terrível e que mentiu durante anos para sua família e para a sociedade, afinal toda a narrativa do livro além de coerente é acompanhada de fotos bastante comprometedoras. A relação da personagem com o filho também guarda segredos não revelados ao público, mas ao final uma versão surpreendente reverte a percepção do público para a empatia com a escritora e revolta com o pai amargurado por ter possivelmente adotado a versão fantasiosa da esposa falecida sobre o próprio filho, quando a personagem de Catherine (de Banchet) finalmente “revela” que teria sido vítima de um estupro praticado pelo jovem falecido. 

    Tudo fica ainda mais perturbador porque Catherine é uma escritora documentarista, reconhecida pela narrativa envolvente e pela capacidade de extrair relatos das pessoas que entrevista e o filme começa com uma frase que não escapa ao espectador mais atento: “Tome cuidado com as narrativas, o poder delas pode nos aproximar da verdade, mas elas também podem ser uma arma com grande poder de manipulação”, afirma a mestre de cerimônias que anuncia o prêmio a Catherine como uma documentarista capaz de extrair análises importantes por detrás de narrativas que buscam distrair o público e das nossas crenças e julgamentos pessoais.

    O famoso caso da Escola Base é bastante conhecido e o documentário traz justamente a narrativa dos sobreviventes e os relatos de mea-culpa envergonhada de jornalistas que à época participaram da cobertura, demonstrando o envolvimento leviano entre imprensa e uma atuação policial desastrosa para apurar o caso que começara com relatos de crianças sobre uma suposta série de abusos sexuais e que recaíram sobre os responsáveis pela Escola infantil onde estudavam e depois envolveu outros agentes em uma teia de mentiras sem fim, culminando com a revelação de que as crianças podem ter sido sugestionadas a mentir em uma espécie de delírio coletivo. Todas as pessoas acusadas sofreram danos morais irreparáveis e uma série de ações judiciais foram manejadas, mas as reparações jamais recompuseram a vida dessas pessoas e seus familiares.

    O que as três obras assistidas em sequência podem nos causar a título de reflexões são questionamentos sobre o poder das narrativas, a fragilidade das versões mediadas e que a confiabilidade dessas versões não pode estar depositada unicamente na suposta credibilidade ou confiabilidade das pessoas e nem mesmo nos sentidos mais aparentes, não só porque sabemos que as pessoas são capazes de mentir – todas elas – mas sobretudo porque somos frágeis nas nossas crenças, nas nossas leituras de mundo, nas nossas contingências e nos julgamentos que fazemos uns dos outros. Esses julgamentos importam muito para orientar a forma como nos relacionamos em comunidade, a importância que temos dentro dessa comunidade e nos alimenta com a própria vontade de seguir vivendo, porque afinal viver é muito mais que comer e respirar.

    Disclaimer nos permite ainda viver o drama da personagem frente à interação com as redes sociais em meio ao seu drama reputacional. Em ambas as obras de ficção é possível também observar que as contingências mais viscerais da vida como a relação com os filhos são uma espécie de âncora para as personagens. O fato de ambas as personagens centrais serem mulheres envolvidas em uma narrativa em suspeita é interessante para humanizá-las tanto como vítimas como possíveis agressoras, portanto, passíveis de ações, desejos e sentimentos limítrofes e não apenas anjos caídos do céu e desprotegidos como muitas vezes o patriarcado ou um falso feminismo gosta de rotular. A liberdade sexual e afetiva está colocada como algo cujos padrões de julgamento também devem ser questionados. 

    Algumas pessoas leram Disclaimer como uma certa proposta de questionar o machismo de se aceitar o estupro ao invés do adultério, já que Catherine era casada quando teria se envolvido com o jovem morto, segundo a narrativa de seus pais. Mas a série está longe de colocar apenas isso em disputa nas nossas percepções. Sobre isso inclusive é de se questionar se a versão do estupro não foi mesmo uma narrativa para que Catherine conseguisse por um fim ao assassinato de sua reputação, já que seria sua tábua de salvação, além de se livrar de um marido frágil e que disputava com ela a atenção do filho face à própria hipocrisia dominante do machismo e do patriarcado.

    As duas obras de ficção não trazem respostas fáceis e nem segredos reveláveis em detalhes que podem ser capturados, me parecem destinadas a nos causar o incômodo dos questionamentos. Justamente aqueles que não foram feitos no fatídico caso da escola Base, ocorrido em 1994, na zona central de São Paulo e que arruinou a vida dos brasileiros Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Paula Milhim, Maurício Alvarenga e do norte americano Richard Pedicini.

    Mesmo em tempos de redes sociais e avanços da tecnologia em que o volume de informações é abissal, em que a vigilância visual é quase uma constante, a verdade continua sendo manipulada e mediada de maneira que não podemos confiar plenamente nos nossos sentidos, em que é necessário sempre fazer questionamentos sobre a aparente realidade e que nos coloca sob a maior responsabilidade de não causar morticínios a vidas que estão muito além da matéria orgânica animada.

    Disclaimer se tornou uma espécie de estrangeirismo que pode ser traduzido como uma declaração ou aviso de isenção de responsabilidade sobre riscos inerentes à obra que está sendo apresentada. 

    Somos uma população cada vez mais ansiosa, violenta, manipuladora, mais exposta a riscos na construção de nossas identidades e por isso cada vez mais impulsionada a produzir as mais convincentes narrativas para alcançar importância, espírito de viver e sobreviver em um mundo neoliberal que expandiu o capitalismo a tal ponto de nos tornar não mais apenas mercadoria, mas o próprio sujeito da competição e do aprimoramento do capital.

    Nesse cenário, nossas vidas reais importam quase nada diante do poder das narrativas que podemos criar sobre elas.

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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