Anitta, Axé Music, recalques e o mercado da fé
Sobre a intolerância religiosa relacionada à músicas e videoclipes que abordem o Candomblé, Umbanda ou similares, isso é questionável
A notícia da semana, sobre os 200 mil seguidores que Anitta perdeu em 2 horas após a cantora anunciar o lançamento do clipe “Aceita”, dá como explicação uma suposta intolerância religiosa do brasileiro com relação às religiões de matriz africana, uma vez que o clipe exibe imagens de um terreiro de Candomblé, além de cenas de uma cartomante e um culto evangélico. Irei apresentar rapidamente algumas visões a mais.
Em primeiro lugar, qualquer coisa que Anitta lance irá causar algum frisson nas pessoas. A cantora de Honório Gurgel gera muita renda para vários youtubers e influencers, que vivem da produção de conteúdo de ódio contra ela, abordando “problemas” em sua carreira, com uma retórica típica de um tiozão do pavê. “Denunciam” com o uso de frases prontas: “ela não sabe cantar”, “ela não é cantora”, “ela passou vergonha”, ela isso... ela aquilo... E mais e mais visualizações, compartilhamentos, debates sem profundidades, porém os dólares da remuneração do Google estão garantidos, às custas da ignorância do respeitável público, que acha que basta falar mal de alguém, e o orador se tornará automaticamente um conhecedor de alguma coisa. Ou seja, mesmo se ela tivesse lançado um clipe enaltecendo o cristianismo, ela ainda seria vítima de hate.
Sobre a intolerância religiosa relacionada à músicas e videoclipes que abordem o Candomblé, Umbanda ou similares, isso é questionável, pois todos sabem que o Axé Music, estilo musical que surgiu na Bahia, domina as paradas de sucesso desde o final dos anos 80 e se mantém intocável (apesar desse ritmo ter sofrido um processo de gourmetização, como houve com o sertanejo, pagode, rap, etc.), foi criado a partir das diversas levadas de batuques de atabaques nos terreiros. Falando de maneira simples e resumida, o Axé Music é a versão musical comercial do Candomblé, em última instância. Ouça os pontos cantados nos terreiros ou nos centros de Umbanda, e você se lembrará de alguma música de Ivete Sangalo, Margaret Menezes, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Araketu, Asa de Águia, etc. Caso a intolerância fosse uma realidade que abrangesse um número significativo, que pudesse criar mudanças profundas na sociedade, não haveria, por exemplo, eventos anuais como o Carnaval, que é pura festa afro religiosa. Tanto o Carnaval de Salvador quanto o do Rio são lucrativos, populares, conhecidos no mundo todo, com presença pujante de turistas, e que fazem a economia girar. Existem diversos cantores de Axé na Bahia que são gospels. A Igreja Católica em Salvador realiza missas todo ano com as mães e pais de santo presentes no recinto. E se incluirmos na nossa discussão informações ditas por um Babalorixá, que assisti num podcast, de que no passado a PM invadia terreiros, agredia e prendia candomblecistas sem qualquer constrangimento, e vendo que caso isso se repita nos dias de hoje se tornaria um escândalo nacional (ou mundial), podemos reconhecer que estamos muito melhores do que antes. Mas é claro, que esse texto não é pra passar pano pra racista. É óbvio que o racismo é uma realidade e que as pessoas que abandonaram as redes de Anitta são racistas. Mas o que quero demonstrar é que os verdadeiros causadores de desavenças estão sendo apagados e poupados, graças à névoa da simplificação.
No caso estritamente relacionado ao clipe “Aceita” e à fuga de seguidores, eu aponto dois fatores: o primeiro se conecta ao caso dos youtubers citados acima. Seus conteúdos possuem engajamento porque a comunicação se dá, não pelo consciente, mas sim pelo inconsciente, e estimula aquilo que se nomeia popularmente de recalque. Homens e mulheres conservadores, néscios, são educados para tratarem as mulheres como seres inferiores aos homens. Para essas pessoas, mulher “nasceu apenas para cuidar da casa, dos filhos e ser do lar” (pausa para vomitar). Qualquer sinal de independência será atacado ferozmente para que isso “sirva de lição” para outras mulheres que querem se libertar e ter uma vida da forma que elas quiserem. No passado, muitas mulheres foram agredidas e ostracizadas pelo simples fato de não viverem às custas de homens. Hoje, a bola da vez é Anitta.
Sobre o racismo religioso, decorre de uma campanha poderosa das igrejas neopentecostais, financiadas por pastores, que são, na verdade, empresários que usam a religião judaico/cristã para ganhar dinheiro. É elementar, meu caro; no mundo dos negócios, dentre outras táticas, para vencer uma concorrência, faz-se necessário destruí-la e monopolizar o mercado. Acompanhe qualquer culto neopentecostal e logo identificará aspectos oriundos da Umbanda, como as simpatias, sessões de descarrego, limpeza espiritual. É abundante os fiéis e pastores “ex-umbandistas”, “ex-candomblecistas”, e eles levam as mesmas práticas para dentro das igrejas, só que sem os orixás, vestimentas, objetos ritualísticos, etc. No fim das contas, é apenas capitalismo. Elimine essa cruzada desses mercadores da fé e presencie o racismo religioso cair à quase extinção.
É mister sempre reconhecer os problemas, os erros, as falhas da sociedade, criticá-la, mostrar a verdade e as soluções e, ao mesmo tempo, discernir e indicar os verdadeiros responsáveis pelos problemas, para não tombarmos no pântano das palavras vazias e xingamentos gratuitos que só desagregam e fogem da resolução das atribulações.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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