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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Aniversário de Honoré de Balzac

Tão prodigioso ele foi, tantos personagens criou, que sobre A Comédia Humana já se disse que Balzac aumentou os registros de certidões de nascimento na França

Honoré de Balzac (Foto: Domínio público)

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Nesse domingo 18 de agosto, completam-se 174 anos do falecimento do extraordinário gênio de Balzac. Tão prodigioso ele foi, tantos personagens criou, que sobre A Comédia Humana já se disse que Balzac aumentou os registros de certidões de nascimento na França.

Sobre ele, assim publicou o escritor e pensador José Carlos Ruy:

“Fundador do realismo literário moderno, o escritor francês Honoré de Balzac, sem ser aquilo que se convenciona chamar de romancista histórico, deu à literatura quase uma dimensão histórica- ou, dito de outra forma, deu expressão literária aos fenômenos políticos, sociais, econômicos, de seu tempo. Um tempo em que a burguesia emergia como a força social dominante, lançando os tentáculos do dinheiro e de sua forma de viver não só sobre o proletariado que estava sob seu tacão mas também sobre a velha aristocracia derrotada nas revoluções do final do século 18 e que, mesmo quando conseguiu restaurar parte de seu poder, só pode fazê-lo sob as formas e a lógica tipicamente burguesas”.

Na edição da Editora Globo, que eu tenho aqui em casa, estão 90 romances de Balzac em 17 volumes, publicados em 1989. Note-se que A Comédia Humana não reúne toda obra de Balzac. Estão fora romances, que ele viu não se integraram como personagens da grande família social, e cartas, crônicas e críticas (uma delas, luminosa sobre Stendhal).

Orientação, notas e introdução dos romances por Paulo Rónai., que merecia um texto sobre o seu papel de intelectual fugido do nazismo, iluminando o Brasil com a sua cultura.

Entre vários pontos altos da obra colossal, que matou Balzac de esgotamento, destaco duas obras-primas da literatura mundial: “Ilusões Perdidas” e “O Pai Goriot”.

Algumas notas sobre “O Pai Goriot”:

“O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido porque o serviço foi bem-feito”, fala uma das páginas do livro.

O próprio Balzac dizia do romance:

“O Pai Goriot é uma obra-prima. A pintura de um sentimento tão grande que nada o esgota, nem os atritos, nem as feridas, nem as injustiças: um homem que é pai, como um santo, um mártir e cristão. É uma obra bela, porém monstruosamente triste. Era preciso, para ser completo, mostrar um esgoto moral de Paris, e este dá a impressão de uma chaga nojenta”.

Quando publicado, o romance teve um sucesso de escândalo. Recebeu críticas violentas. As burguesas se revoltaram. Sobre elas, respondeu Balzac: “um número sobre-humano, inesperado, de mulheres sinceramente virtuosas, felizes de serem virtuosas, virtuosas por serem felizes e sem dúvida felizes porque são virtuosas”. O problema era que Balzac apresentou personagens, as filhas do Pai Goriot, esposas de banqueiro e de Conde, que traíam os seus maridos com jovens e belos poetas. Por isso, o escritor foi acusado de ver as mulheres de Paris como adúlteras. Um amesquinhamento absoluto do que narrava a obra-prima.

Nas notas para o romance, como um esqueleto ao qual o romancista iria pôr carnes e músculos, Balzac escreveu: ‘Um homem bom – pensão burguesa – 600 francos de renda – é despojado a favor das filhas, as quais têm, cada uma, 50.000 francos de renda – morrendo como um cão”.

Os personagens secundários em “O Pai Goriot seriam de primeiro plano em qualquer outro romance escrito até hoje. Que secundários principais! Eugène de Rastignac é um jovem provinciano que estuda Direito em Paris e quer muito subir na vida, e por isso recebe lições do bandido Vautrin de como se dar bem, virar rico: vida de gigolô e amante de esposas virtuosas de banqueiros. Uma lição que se repete em nossos dias, em todos os países. E, naturalmente, avulta o grande bandido Vautrin.

Vautrin foi inspirado na pessoa de Eugéne-François Vidocq, um genial delinquente com talento para falsificações. Preso, depois se tornou policial. Ele chegou a ser chefe da brigada de segurança de Paris. Quando deixou a polícia, Vidocq fundou a primeira agência de detetives particulares do mundo.

Sobre esse personagem escreveu Balzac:

“Os olhos de Vautrin, como os de um juiz impiedoso, pareciam ir ao fundo de todas as perguntas, ler todas as naturezas, todos os sentimentos e pensamentos”.

Tinha ombros largos, peito bem desenvolvido, músculos aparentes, mãos fortes. Seu rosto, sulcado por rugas prematuras, oferecia sinais de dureza que eram desmentidos por suas maneiras dóceis e amáveis. Sua voz de barítono, em harmonia com sua gargalhada, não era desagradável. Ele era atencioso e divertido. Se alguma fechadura funcionava mal, ele logo a tinha desmontado, arrumado, lubrificado limado, remontado, dizendo: – Isso eu conheço. Conhecia tudo, aliás, os navios, o mar, a França, o estrangeiro, os negócios, os homens, os acontecimentos, as leis, os hotéis e as prisões. Se alguém se queixava demais, logo oferecia seus préstimos. Emprestara muitas vezes dinheiro à Madame Vauquer e a alguns pensionistas; mas seus devedores prefeririam morrer a não lhe pagar, tanto medo, apesar de seu ar benevolente, ele causava com um certo olhar profundo e cheio de resolução. Pelo modo como lançava um jato de saliva, anunciava um sangue-frio imperturbável que não deveria fazê-lo recuar diante de um crime para sair de uma posição difícil”.

Mas o essencial, claro, é Goriot, onde mais de um crítico viu uma continuação do Rei Lear, de Shakespeare. No entanto, a grandeza do romance ultrapassa a origem. Em suas páginas, está lá o crime perfeito em torno da Pensão Vauquer, onde sofreu Goriot.:

“O acontecimento que serviu de modelo oferecia circunstâncias horrorosas e como não se encontram entre os canibais: o pobre pai gritou de sede durante as vinte e quatro horas de sua agonia, sem que ninguém lhe acudisse, e suas duas filhas estavam uma no baile, outra no teatro, embora soubessem o estado do pai”.

E nada falei ainda sobre “Ilusões Perdidas”, que para mim é o ponto culminante de A Comédia Humana. O bom senso recomendaria que eu parasse por aqui. Chega de afoiteza! Daí que tentei copiar linhas e mais linhas impressionantes sobre o mundo, vasto porco mundo da sociedade, da imprensa narrada no romance. Então, de modo sensato, será preferível trazer alguns trechos da introdução de Paulo Rónai a Ilusões Perdidas:.

“Neste imenso livro, Balzac trabalhou durante toda a sua vida, ou pelo menos toda a sua carreira literária. Além de formar o mais vasto dos romances de Balzac, Ilusões Perdidas é, na verdade, o mais balzaquiano de todos os seus romances. Hoje, nada nos impede de apreciar devidamente a epopeia de Luciano de Rubempré e de coloca-la entre as obras mais significativas do romancista. Luciano de Rubempré é uma das criações mais completas de Balzac. Na representação desse personagem, o romanista mostra-se digno sucessor dos clássicos, criadores de grandes tipos.

A parte mais importante do livro é o segundo episódio, as vicissitudes de Luciano em Paris, onde ele passa por uma série de ambientes. O dos jornalistas é aquele que leva Balzac a usar os traços mais incisivos e as cores mais sombrias, e lhe transforma as páginas em sátira violenta. No prefácio, Balzac, sem papas na língua, qualifica os jornais como “câncer que talvez devore o país’, para dentro do romance chamá-los de ‘prostíbulos do pensamento’ ”. Dizer mais o quê?

Na “Carta a Margaret Harkness – Abril de 1888” Engels deixou suas impressões sobre Honoré de Balzac:

“Balzac, que considero de longe o maior mestre do realismo de todos os Zolas do passado, presente ou futuro, proporciona-nos na sua Comédie Humaine, uma história maravilhosamente realista da ‘sociedade’ francesa, descrevendo, no estilo de crônica, quase ano por ano, de 1816 a 1848, a pressão crescente da ascensão da burguesia sobre a sociedade dos nobres que se estabeleceu a partir de 1815 e voltou a instalar, na medida do possível, (tant bien que mal), o padrão da vieille politesse française (velha delicadeza francesa).Balzac descreve como os derradeiros resíduos daquela, para ele, sociedade modelo sucumbiram gradualmente ante a explosiva intrusão dos vulgares endinheirados ou foi corrompida por eles. Como a grande dame, cujas infidelidades conjugais não passavam de uma maneira de firmar a sua posição, em perfeito acordo com a forma como lhe tinham destinado o casamento, cedeu lugar à burguesia, que adquiriu o marido em troca de dinheiro.E, em torno desta imagem central, o autor tece uma história completa da sociedade francesa, com a qual, mesmo em pormenores econômicos (como, por exemplo, a redistribuição da propriedade real e privada após a Revolução Francesa), aprendi mais do que com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período.Ora, Balzac era politicamente um legitimista; a sua obra grandiosa constitui uma elegia permanente da decadência irreparável da boa sociedade; as suas simpatias vão para a classe destinada à extinção. Mas, apesar de tudo isso, a sua sátira nunca se revela mais mordaz, a sua ironia nunca é mais amarga, do que quando põe em movimento os próprios homens e mulheres com os quais simpatiza mais profundamente – os nobres.E os únicos homens aos quais se refere com clara admiração são os seus antagonistas políticos mais acirrados, os heróis republicanos do Cloitre Saint Mary, aqueles que nessa época (1830-36) eram os verdadeiros representantes das massas populares.O fato de Balzac se ver compelido a agir contra as suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, de ver a necessidade da queda dos seus favoritos nobres e os descrever como pessoas que não merecem melhor sorte, de ver os verdadeiros homens do futuro onde, temporariamente, se encontravam – tudo isto afigura-se-me um dos maiores trunfos do realismo e das maiores características do velho Balzac”.

Para concluir este esboço de um artigo que poderia ser. Paulo Rónai, em A vida de Balzac, que abre a edição brasileira de A Comédia Humana, escreveu que Balzac era o Napoleão da literatura, mas sem a derrota de Waterloo. Ao que hoje acrescento: para a nossa maior felicidade, sempre.

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