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    Lincoln Secco

    Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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    Antonio Gramsci e o fascismo – Parte I

    Gramsci estava diante de algo inteiramente novo e tinha que resistir sem se dar a paciência da precisão teórica. Pensava enquanto confrontava os fascistas

    Antonio Gramsci (Foto: Reprodução)

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    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    Na sua época, ninguém compreendeu melhor do que Antonio Gramsci o processo que permitiu que ideias antes marginais e extravagantes ganhassem corpo num movimento, num partido e, depois, num regime político com o aplauso de segmentos de todas as classes.

    A delimitação do fascismo se mostrou difícil desde suas primeiras manifestações. O fascismo histórico surgiu na era do imperialismo e da dominância do capital monopolista e foi a mobilização oportunista e permanente, contrarrevolucionária e racional da irracionalidade das massas durante a crise do entre guerras.[i]

    Embora se possa estabelecer muitas definições generalizantes dos movimentos e regimes fascistas, é melhor indicar as fronteiras imprecisas dos regimes, os contornos dos movimentos, as fases que ele pode ou não percorrer e se “completar” como proposta, como movimento ou regime. Paxton, João Bernardo e Umberto Eco, dentre outros, buscaram esse caminho, ainda que partindo de ângulos distintos e chegando a definições diferentes. A vantagem desses autores é que acentuaram a historicidade dos fenômenos fascistas sem renunciar à construção de um conceito abrangente.[ii] Como veremos, Antonio Gramsci esboçou pioneiramente uma metodologia desse tipo.

    Quando os Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci foram editados, o líder do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti afirmou: “uma pergunta não formulada nos acompanha, se soubermos ler, caderno por caderno, página por página: como isto foi possível; como isto poderá cessar?”[iii]. Como aquilo foi possível é uma questão que afligiu os seres humanos até hoje.

    Antonio Gramsci acompanhou o surgimento de experiências fascistas semelhantes em toda a Europa e, ao mesmo tempo, observou que elas eram muito diferentes entre si porque respondiam a desafios nacionais específicos em países com distintos graus de importância econômica no mercado mundial. Sem perder de vista a particularidade concreta do fascismo italiano, a sua leitura nos permite hachurar as fronteiras imprecisas dos fascismos e identificar as suas fases. A partir dele é possível se aproximar de uma definição abrangente sem perder de vista a pluralidade empírica do fenômeno. Isso aparece em textos sobre assuntos que aparentemente não guardam relação entre si, mas abordam múltiplas manifestações potencialmente fascistizantes, como, por exemplo, as bizarrices literárias das primeiras décadas do século XX: a obra de D’annunzio e Marinetti, o colonialismo, as revistas ultra nacionalistas, os desmobilizados da guerra etc.

    Enquanto militante socialista e comunista, Gramsci estava diante de algo inteiramente novo e tinha que resistir sem se dar a paciência da precisão teórica. Exatamente por isso, não buscou uma essência a priori; ele captou o fenômeno in flux. Pensava enquanto confrontava os fascistas. Os espaços sociais do fascismo e seus elementos iniciais mais evidentes (violência demonstrativa, cumplicidade do estado e de políticos liberais, apoio da burguesia, maleabilidade programática, uma base social pequeno burguesa etc.) são tratados em diversas temporalidades: desde a história imediata e das ações governativas, atravessando a larga conjuntura da guerra e da crise do regime liberal até a unificação italiana (Risorgimento), cuja problemática situa-se num ritmo lento.

    A oscilação oportunista do fascismo e sua instabilidade iniciais permitiram que Antonio Gramsci observasse que não havia ali uma ideologia original, muito menos qualquer teoria. Como disse o próprio Mussolini, “nossa doutrina é o fato”.[iv] Os elementos fascistas não eram originais, nem sua arquitetura discursiva ou conceitual (que ele não tinha). Nenhuma realidade exige tantos oximoros quanto o discurso fascista; ele é uma verdadeira inovação reacionária.

    A prática historiográfica costuma revelar como o novo pode surgir no interior de formas antigas e o velho revestir-se de novas. Antonio Gramsci foi além, destacou a crise orgânica através da qual a burguesia domina sem o consentimento dos dominados e a sociedade experimenta, em escala internacional, o colapso dos valores, das instituições, das economias e dos processos de legitimação eleitoral. Antonio Gramsci declarou que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno surgem fenômenos mórbidos patológicos”.[v] É nessa zona de penumbra que as formas se mesclam e absorvem conteúdos contraditórios. Como pode um radicalismo violento vestir formas pragmáticas? Uma ideologia capaz de abarcar todas as esferas da vida ser desprovida de qualquer teoria?

    O fascismo expressava, com a ação direta, as bizarrices intelectuais e a a habilidade permanente de mobilização e desmobilização: o transe de uma sociedade em crise. Mas em si e por si mesmo, ele teve necessariamente de conduzir os povos que o encarnaram à ruína, à humilhação e à derrota, como Gramsci previu na famosa resposta que deu ao tribunal fascista que o condenou a vinte anos de prisão: “Vocês conduzirão a Itália à ruína e a nós, comunistas, caberá salvá-la”.

    Um tema obsessivo

    Praticamente toda a produção gramsciana foi marcada pelo tema do fascismo. Alguns dos elementos que seriam incorporados pelos fascistas já eram acompanhados por Antonio Gramsci antes que os fasci di combatimento formassem oficialmente um movimento em 26 de março de 1919 na Piazza San Sepolcro, em Milão. Ele citou Mussolini muito antes[vi] e comentou temas que alimentaram depois o movimento fascista, embora seja um anacronismo buscar ali previsões. Em verdade, sua escrita girou em torno dos desafios impostos pela política cotidiana e é preciso descobrir como a sua unidade se expressou em diferentes assuntos ao longo do tempo. Essa unidade só se concretiza na diversidade, tanto quanto a continuidade de uma mesma pergunta fundamental comporta também respostas mais complexas ao longo do tempo.

    A derrota diante do fascismo tornou-se, portanto, a preocupação central da maioria dos seus textos pré carcerários e também dos Cadernos do Cárcere. A crítica do fascismo é o leitmotiv de sua obra e está subjacente ao estudo de assuntos aparentemente distantes entre si[vii].

    Como vimos, não é fácil propor qualquer definição do fascismo e nem mesmo estabelecer as diferenças entre sua primeira época de aparição e os neofascismos contemporâneos. Gramsci não buscou definições precisas porque não havia um regime estabelecido quando ele estudou o fenômeno. Ele teve que acompanhar a evolução política em suas linhas pontilhadas e mutáveis, em suas formas híbridas e nas fronteiras porosas de legalidade e ilegalidade. Por isso, alguns dos seus escritos parecem tão contemporâneos.

    Um cotejo com uma declaração no século XXI revela essa contemporaneidade de Gramsci. Para Antonio Negri, nos fascismos dos anos 20-30 “os reacionários certamente estiveram no campo político, enquanto no terreno econômico eles poderiam ser relativamente progressistas, pseudo-keynesianos”[viii]. Essa definição não é exata, pois Mussolini também recorreu à ortodoxia liberal quando lhe foi conveniente. O historiador Federico Chabod mostrou que em seus primeiros anos o fascismo italiano foi mais liberal que os governos anteriores: aboliu subvenções oficiais e entregou empresas estatais ao capital privado.

    Após a Primeira Guerra Mundial, o velho conservador liberal Giolitti, que marcou uma época da política italiana, buscou melhorar a arrecadação. Para fazer frente ao aumento de despesas estatais contraídas durante a Guerra Europeia e exigências sociais radicalizadas no biênio vermelho ele exigiu em 24 de setembro de 1920 que as ações fossem nominativas, e não ao portador, a fim de combater fraudes. No mesmo dia, aumentou o imposto sobre heranças e, em casos específicos (parentes longínquos, v.gr.), a taxa podia significar o confisco da propriedade.

    O programa do Partido Nacional Fascista em 1921 previa simplificação tributária, equilíbrio orçamentário, publicidade dos rendimentos tributáveis (redditi imponibili)[ix] e das heranças. Mas somente treze dias depois da Marcia su Roma (marcha sobre Roma) que levou Mussolini à presidência do Conselho de Ministros, as leis de Giolitti foram revogadas[x] e aquela parte antiliberal do programa fascista esquecida. Mussolini levou à prática a política prescrita por Vilfredo Pareto, o teórico das elites que foi estudado por Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere: destruir o liberalismo político e instituir o econômico; retirar impostos das classes privilegiadas; e oferecer às trabalhadoras uma educação com dogmas religiosos nos quais ele mesmo não acreditava.[xi]

    Os velhos políticos liberais ficaram satisfeitos e acreditaram que a entrada de fascistas no gabinete de governo iria domá-los e permitir sua absorção no sistema liberal[xii], como tinha ocorrido com os socialistas.

    Proveniente de uma composição bizarra de sindicalismo revolucionário, socialismo e nacionalismo o fascismo tinha sua base mobilizada nas camadas médias e atraía os ressentidos de todas as classes. Entretanto, ele não teria se estabilizado no poder sem aquela condescendência dos políticos profissionais. Além, é evidente, de uma aliança com o grande capital e o apoio do exército, polícia e magistratura.[xiii]

    A Carta del Lavoro, editada por Benito Mussolini em 1927, declarava que a “intervenção do estado na produção econômica tem lugar unicamente quando falte ou seja insuficiente a iniciativa privada ou quando estejam em jogo interesses políticos do Estado”[xiv]. É claro que a política de Mussolini mudou: ele impôs uma ditadura pessoal e, após a crise de 1929, adotou uma linha estatizante: dez anos depois daquele crash mundial a Itália tinha, percentualmente, o segundo maior setor público no mundo, somente menor do que o da União Soviética.[xv] Esse “outro fascismo” corporativista e estatizante será revisto por Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere.

    Primeira fase – as origens (1919-1923)

    Cabe lembrar que Antonio Gramsci escreveu antes dos debates mais importantes do Komintern sobre o fascismo e não conheceu a incipiente caracterização de Stalin na XIII Assembleia Plenária da Internacional Comunista; a defesa da frente contra o fascismo por Dimitrov no VII Congresso de 1935; as advertências de Trotsky ou de Simone Weill sobre a Alemanha[xvi]; as lições de Togliatti[xvii] sobre as instituições fascistas que controlavam o lazer, o esporte e outras atividades fora do trabalho e muito outros textos.

    Embora haja um evidente aprofundamento da compreensão do fascismo nos escritos carcerários, algumas premissas essenciais da delimitação do fenômeno são muito mais nítidas nos escritos de juventude.

    O artigo A Crise Italiana mostrava que não existe uma essência do fascismo nele mesmo. Há uma combinação caótica[xviii] de tradições, desde a ideia de nação proletária de Corradini ao futurismo de Marinetti, que não passava de um insípido programa liberal de uma burguesia desorientada[xix]. Mais uma vez Gramsci se antecipou na percepção de uma característica fundamental fascista.[xx]

    É verdade que Mussolini, Marinetti, D’Annunzio e outros se nutriram de uma leitura de correntes e tradições anteriores. Havia elementos aproveitados pelos fascistas nas revistas Il Regno (1903) e La Voce (1908), como o culto do colonialismo. A emigração italiana deveria se dirigir a colônias formais e não a países independentes; a mão de obra deveria trabalhar para a Itália; era preciso completar o Risorgimento[xxi]; o popolo é mítico, supra-histórico, violento, masculino; o futurismo e a poesia de Pascoli e D’annunzio ajudam a defender o mare nostrum (“Navegar é preciso, viver não é preciso”) etc.

    Os fascistas exploraram a vitória mutilada, cuja expressão mais nítida era o fracasso italiano em conquistar após a primeira guerra mundial a Dalmácia, na costa leste do mar Adriático. Durante as negociações de paz, o governo italiano obteve as terras “não resgatadas” (le terre irredente): Trento, Trieste e Ístria, mas não a cidade de Fiume (Rijeka na Croácia), à época espacialmente croata, mas linguisticamente italiana. Daí a aventura literária e militar do escritor Gabrielle D’Annunzio (1863-1938) que, a 12 de setembro de 1919, ocupou a cidade com dois mil seguidores, entre eles muitos desmobilizados da guerra. Ele anunciou uma constituição corporativista e declarou guerra ao seu próprio governo.

    O artigo de Gramsci Unidade Nacional analisa aquele evento. Não se tratava ainda de um movimento fascista (Mussolini mais tarde imitou aspectos do governo efêmero de Fiume). Gramsci percebeu desde o início os conteúdos e formas combinados de esquerda e direita, ainda confusos e indefinidos e que podiam questionar o sistema vigente. Como ele disse: numa classe espiritualmente saudável, porque coesa e organizada, há também pessoas arruinadas pela guerra que não se integraram numa realidade econômica concreta.

    É a primeira pista de uma pesquisa da base social do que será o movimento fascista. Como Otto Bauer afirmará depois, houve uma combinação de desclassificados sociais, pequenos burgueses revoltados e uma grande burguesia que havia desertado dos seus partidos conservadores tradicionais[xxii]. No caderno VII do cárcere há menções à experiência de comando que as classes médias tiveram na Guerra Europeia e perderam a utilidade em tempo de paz.

    Na edição piemontesa do Avanti, jornal do Partido Socialista Italiano (PSI), ao qual Gramsci ainda pertencia, ele também já identificava a natureza internacional do fascismo. Surgido na Itália por inúmeras razões, não era um fenômeno italiano per se. O artigo A Reação foi publicado em 24 de novembro de 1920 e uma abordagem semelhante se repete no texto Itália e Espanha. O que surpreende, no entanto, é que ele também revela que há um continuum entre instituições liberais e fascismo[xxiii]. A crise daquelas instituições exige uma violência ilegal para restaurar o próprio estado liberal. Que no emprego do método fascista o parlamento se destrua é o preço não previsto que os representantes da burguesia pagam.

    (I)legalidade

    Antonio Gramsci identifica um traço marcante do processo de fascistização: as milícias criminosas impunes são um complemento ilegal do policiamento que está limitado pelas leis. As definições de Gramsci emergem da historicidade do processo fascista e não de um programa prévio ou de alguma teoria que o tenha pré delineado.

    A cumplicidade entre estado e violência fascista era por demais evidente para não ser analisada. O anarquista Luiggi Fabbri definiu em 1922 o fascismo como uma “contrarrevolução preventiva”, fundada unicamente na violência, pois sem ela o movimento deixaria de existir.[xxiv] Mas o fascismo foi também a única opção rápida dos conservadores e liberais para derrotar os socialistas, afastá-los daquilo que mais lhes importava: os cargos e o controle do orçamento público. Tal opção era por uma violência controlada. O que, obviamente, era uma ilusão.[xxv] O socialismo reformista e os sindicatos tinham força suficiente para proteger os trabalhadores formais da inflação, mais do que a pequena burguesia poderia por si mesma e do que a burguesia poderia tolerar. Ao mesmo tempo, aquele socialismo agarrava-se à legalidade republicana, era impotente para defender-se da violência e destruía o excedente eleitoral conquistado no fim da guerra.

    Otto Bauer argumentou de maneira convincente que o socialismo passou a ser visto como partido do sistema, juntamente com os agrupamentos liberais e conservadores. O grande capital desertou dos seus partidos tradicionais. Este era fraco para impor, por meios legais, a recuperação de sua taxa de lucro, mas “forte o suficiente para financiar um exército privado ilegal e inconstitucional e lançá-lo sobre a classe trabalhadora”[xxvi]. Essa observação é muito importante porque implica a ideia de um “fascismo eterno”, como diria Umberto Eco, ou em termos históricos, de uma ameaça permanente inscrita na própria democracia burguesa liberal.[xxvii]

    A questão da fluidez das fronteiras entre o estado legal e as instituições privadas será revisitada nos Cadernos do Cárcere. Nessa primeira fase, Gramsci analisou-a, especialmente nos artigos Legalidade, O Sustentáculo do Estado e Contra a Magistratura. Ele nunca perdeu isso de vista, como prova o seu discurso feito na câmara dos deputados mais tarde, como veremos.

    Como parte do mundo oficial da política, os socialistas também foram responsabilizados pela ascensão fascista, como demonstra a assinatura do Pacto de Roma, em 3 de agosto de 1921, descrita por Gramsci no artigo “Os partidos e as massas”[xxviii]. Num dos seus textos mais citados (O Povo dos Macacos) a pequena burguesia apareceu finalmente como uma base social potencialmente fascista. Sem uma função produtiva, ela se tornara uma classe puramente política e, depois de corromper as instituições, tornara-se crítica delas e passara a corromper as ruas, onde macaqueava as táticas revolucionárias. Mais uma vez, Gramsci tematizou a violência privada a serviço da restauração do estado burguês.

    A leitora e o leitor desses primeiros escritos gramscianos se surpreenderão com a amplitude da abordagem. Em Forças Elementares o assunto é tratado como expressão do quotidiano. A convite de Trotski Gramsci ainda redigiu uma nota sobre o futurismo que foi publicada no livro Literatura e Revolução (1923).

    A possibilidade do golpe de estado, a impotência socialista e a crítica da reação reformista são tratadas em diversos artigos. Há outros que se voltam para as origens históricas do fascismo, como Um Ano, As Origens do Gabinete Mussolini e Subversivismo Reacionário. Neste último, desnuda-se o “blanquismo” que Mussolini se auto atribui. Mas Gramsci percebeu que se tratava de um blanquismo retórico, meramente formal, destituído do aspecto material que sustentava a prática revolucionária do líder proletário francês Auguste Blanqui (1805-1881): “o enquadramento da minoria no movimento de massa, bem como o processo que faz da revolta o meio para uma transformação das relações sociais”[xxix].

    Em Os dois fascismos Gramsci tratou das seções agrária e urbana do movimento em algumas regiões da Itália. Entretanto, sua leitura parece uma sonda que mostra as diversas profundidades e variedades do fascismo, sempre unidas sob a prática da violência. Num breve estudo particular, ele antecipou uma característica universal que acompanhará quase todos os movimentos fascistas iniciais, do alemão ao romeno, do português ao austríaco: uma facção intransigente e outra que se acomoda nas instituições, as quais sua base viola continuamente.

    Antonio Gramsci também se voltou às táticas de combate ao fascismo, nomeadamente do arditismo. Diante da ambiguidade inicial de um movimento espontâneo e unitário de autodefesa, os socialistas logo se declaram indiferentes. Eles tinham firmado em 3 de agosto de 1921 o pacto de pacificação com os fascistas. O Partido Comunista, por outro lado, não aderiu a este pacto, mas desconfiava dos Arditi e seus membros foram orientados a não participar daquela organização. O historiador Paolo Spriano [xxx]foi taxativo: “Difícil decidir se foi mais deletéria para a organização de uma resistência armada proletária que surgia de baixo o pacto dos socialistas (…) ou a desconfiança dos comunistas”.

    Os Arditi eram tropas especiais de elite, criadas no exército italiano, que faziam o papel tático da guerra de movimento: romper as defesas inimigas em profundidade e preparar o caminho para a infantaria. Corresponderiam às Sturmtruppen austríacas, só que estas eram unidades de infantaria regular. Desmobilizados após a guerra, foram cortejados pelo fascismo. Uma parte deles participou com o poeta Gabrielle Dannunzio da supracitada tentativa da conquista de Fiume. Alguns aderiram às tropas fascistas, outros formaram os Arditi del Popolo, tropas de combate armadas de autodefesa proletária. Tratava-se do primeiro movimento antifascista organizado.

    Havia em suas fileiras anarco-republicanos, comunistas e socialistas. Gramsci apoiou inicialmente os Arditi del Popolo contra a posição de Amadeo Bordiga, então líder do recém fundado Partido Comunista. Ernst Thälmann afirmou depois que Lênin esteve a favor da posição de Gramsci. Entretanto, tanto em julho de 1921 quanto em seus escritos do cárcere, o arditismo deveria ser submetido a uma estratégia (“objetivos políticos que sejam claros e concretos”) e a uma organização.

    Segunda fase – o Partido Comunista e o fascismo (1924-1926)

    Neste período há todo um conjunto de artigos e correspondências que tematizam a formação do Partido Comunista da Itália, as divergências na Internacional Comunista e no governo soviético. O pano de fundo é o do recuo da perspectiva da Revolução mundial cujo início Gramsci data em 1921, derrota dos marinheiros de Kronstadt, mas que os órgãos comunistas oficiais localizam em 1923, quando desaparecem definitivamente as possibilidades de repetir em outros países como Finlândia, Polônia, Hungria, Itália e Alemanha o assalto ao poder bolchevique.[xxxi] Abre-se uma fase de estabilização capitalista.

    Neste período, Antonio Gramsci liderou a formação de um novo grupo dirigente no partido atraindo, entre outros, Palmiro Togliatti, com quem escreverá as Teses de Lyon[xxxii] em maio de 1926 (cidade onde aconteceu o Congresso partidário). Pode-se dizer que a continuidade das reflexões gramscianas sobre o fascismo se dá em oposição à ideia de Amadeo Bordiga de que se tratava de um regime temporário através do qual a burguesia enfraqueceria a classe operária e depois retomaria sua vocação liberal ou social democrática.

    Amadeo Bordiga não era um teórico como Antonio Gramsci e sim um líder carismático das bases partidárias, especialmente do sul. O próprio Gramsci, ao reconhecer a influência dele sobre Togliatti, adjetivou sua personalidade como “vigorosa”[xxxiii]. Mas reduzi-lo a um mero agitador tático foi um erro derivado do apagamento dele da história oficial do comunismo italiano[xxxiv]. Bordiga estava certo, por exemplo, quando disse no V Congresso da Internacional Comunista que a derrota do fascismo não implicaria inelutavelmente uma saída socialista e que a burguesia poderia reassumir seus despojos democráticos com a mesma desenvoltura com a qual se apropriara da solução fascista[xxxv].

    No cárcere, como o relato a Athos Lisa documentou, Antonio Gramsci defendeu a luta por uma assembleia constituinte, mas aqui isto ainda não estava posto. Gramsci afirmou nas Teses de Lyon que a derrubada do fascismo poderia advir da ação de grupos anti-fascistas ditos democráticos desde que eles neutralizassem o proletariado. Mas por ora, estaria em andamento um compromisso entre fascismo e oposição burguesa. É certo que sua análise era muito mais densa teoricamente do que a de Bordiga: a oposição democrática só retomaria o protagonismo na defesa do capitalismo quando o regime fascista não se demonstrasse mais capaz de controlar os conflitos de classe e surgisse o perigo de uma insurreição. Ora, é exatamente o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, quando Mussolini foi derrubado e a burguesia temia uma revolução dos partigiani, fosse ela uma ameaça real ou não.[xxxvi]

    O pano de fundo das análises gramscianas era o debate na Internacional Comunista. O PCI defendia duas teses: a particularidade do fascismo italiano; e a possibilidade de duas vias de saída do fascismo. Na primeira, os comunistas italianos se contrapunham à tese do social fascismo, segundo a qual a social-democracia seria a ala esquerda do fascismo, já que os socialistas italianos haviam sido proscritos. A segunda tese afirmava que a revolução antifascista poderia levar tanto a um governo burguês ou à ditadura proletária. A partir da segunda metade de 1929, o PCI recuou e abandonou suas teses.[xxxvii]

    Não há contradição alguma em demonstrar que o fascismo se desenvolve em conluio com as instituições vigentes e com a permissão de políticos liberais; e que num outro momento estes mesmos liberais e conservadores ressurjam como opção para a classe dominante.

    Antonio Gramsci tentou a todo momento encontrar as brechas pelas quais a própria classe trabalhadora poderia intervir de forma independente na vida política. O texto Que fazer?, dirigido à juventude comunista, trouxe indicações sobre como lidar com a derrota e retomar a iniciativa. Mas é no já citado A Crise Italiana, em Democracia e Fascismo, A Queda do Fascismo, Necessidade de uma Preparação Ideológica de Massa, O Sul e o Fascismo, Teses de Lyon e Um Exame da Situação Italiana que ele propôs uma leitura política e historiográfica sistemática do fascismo; da formação histórica italiana; da conjuntura que permitiu seu aparecimento; e da tomada do poder. Particularmente em Questão Meridional emerge a pergunta que percorrerá depois os cadernos do início ao fim e à qual já fiz alusão: “como isto foi possível?”.

    Decerto, suas análises apresentavam limites. Ainda que ele não tirasse conclusões catastrofistas da crise capitalista, via o período como uma fase provisória da dominação burguesa, algo que seria mais tarde a pedra de toque da crítica de Karl Korsh aos comunistas e ao próprio Marx e seu O 18 Brumário. Só depois Antonio Gramsci concebeu a possibilidade de uma estabilização durável, ancorada na reestruturação produtiva do capital[xxxviii]. Para isso, era preciso articular as dimensões do poder burguês na economia, cultura e política em torno da luta pela manutenção ou mudança da hegemonia de um grupo social.

    Um texto à parte desta segunda fase é o discurso Contra as leis sobre associações secretas. Trata-se de um documento histórico ímpar que mostra Antonio Gramsci como líder político antifascista em ação. Ele fora eleito deputado nas eleições de 6 de abril de 1924. Naquele mesmo ano, os fascistas propuseram a lei que proibiria a existência de sociedades secretas na Itália.

    Entre a proposição e aprovação aconteceu a crise Matteotti. O assassinato do deputado socialista a 10 de junho fez o governo Mussolini recuar e a oposição retirar-se para se reunir separadamente no Aventino, uma das colinas romanas. Gramsci propôs medidas mais radicais, como uma greve geral e um antiparlamento. Sem um acordo geral, os comunistas abandonaram o Aventino e retornaram ao Palácio Montecitorio, sede oficial da câmara dos deputados, em 26 de novembro.

    Durante a primavera, Gramsci fez um soggiorno na União Soviética e participou da quinta sessão do comitê executivo ampliado da Internacional Comunista. Numa carta dirigida ao comunista suíço Humbert Droz, representante da Internacional, Gramsci anunciou que “a nova lei contra as organizações será um terrível instrumento de perseguição contra nós”.[xxxix] Ele se preocupava em como garantir um mínimo de legalidade sob o governo fascista. Uma vez retornado à Itália, o seu discurso contra a lei foi acompanhado pelos principais líderes fascistas, como Farinacci, Rossoni, Grecco e o próprio Mussolini que apareceu numa foto com a mão próxima à orelha num aparente esforço para ouvir o orador. Aquele foi o único discurso que Antonio Gramsci proferiu no parlamento e ele foi interrompido várias vezes por Benito Mussolini.

    Notas

    [i] Essa definição não fecha o conceito, mas propõe um eixo para um mapeamento daquilo que acontece e não do que é: o fenômeno se compreende apenas processualmente na história e aparece na era de dominância do capital monopolista e com técnicas de mobilização de massa. A mobilização é ornamental e pode tanto apoiar a ação do movimento como a inação das massas, limitadas à adulação do chefe e do regime com exibições públicas.

    [ii] Tratei do conceito de fascismo e dos autores supracitados em: Secco, L. “Origens e estrutura do fascismo”, in Rodrigues, Julian e Ferreira, Fernando Sarti. Fascismo ontem e hoje. São Paulo : Fundação Perseu Abramo / Maria Antonia, 2021.

    [iii] Togliatti, Palmiro. L`Antifascismo de di Antonio Gramsci. In: Liguori, G. (org). Scritti su Gramsci. Roma: Riunitti, 2001, p. 177.

    [iv] Paris, Robert. Histoire du Fascisme em Italie. Paris: Maspero, 1962, p. 226.

    [v] Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1975, p. 311.

    [vi] Por exemplo: Gramsci, A. Sotto la Mole. Torino: Einaudi, 1972, p. 183. No início da Guerra Mundial Gramsci defendeu a ideia de uma “neutralidade ativa e operante” lançada por Mussolini. Mussi, Daniela. “Política e cultura: Antonio Gramsci e os socialistas italianos”. Revista Outubro, n. 22, 2º semestre de 2014, p. 126.

    [vii] Para e leitora e o leitor que preferirem uma pesquisa aprofundada sugiro guiar-se pelo mapa teórico do verbete “fascismo” do Dicionário Gramsciano. Spagnolo, Carlo. “Fascismo”, in: Liguori, G. e Voza, Pasquale. Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo, 2017, p.283.

    [viii] Negri, Antonio. “Primeiras observações sobre o desastre brasileiro”, in https://revistacult.uol.com.br/home/antonio-negri-desastre-brasileiro/.

    [ix] Felice, Renzo De. Mussolini il Fascista. La Conquista del Potere. 1921-1925. Torino: Einaudi, 1995, p.759.

    [x] Chabod, Federico. L´Italia Contemporanea. Torino: Einaudi, 1961, p. 64.

    [xi] Borkenau, Franz. Pareto. México: FCE, 1978, p. 8.

    [xii] Blinkhorn, Martin. Mussolini and fascist Italy. London: Routledge, 1997, p.22.

    [xiii] Carocci, Giampero. Storia d´Italia dall´Unità ad Oggi. Milano: Feltrinelli, 1975, p.250.

    [xiv] Apud Bercovici, Gilberto. “A administração pública dos cupons”, Terra redonda, 06 de setembro de 2020.

    [xv] Blinkhorn, Martin. Op. cit, p. 34.

    [xvi] Weill, S. A Condição Operária e outros Estudos sobre a Opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

    [xvii] Togliatti, P. Lições sobre o Fascismo. São Paulo: Lech, 1978.

    [xviii] Gramsci aprofundará o estudo da natureza bizarra do discurso fascista no cárcere através das rubricas “lorianismo” e “brescianismo”, como veremos.

    [xix] Fresu, Gianni. “Gramsci e o Fascismo”. Praxis e Hegemonia Popular. N. 4. Rio de Janeiro, jan. julho 2019, pp. 9-20. Vide também: Barbosa, Jefferson. “Gramsci e a Crítica do Fascismo”, in: https://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/trabalhos2015/jefferson%20barbosa%2010383.pdf. Acesso em 3 de fevereiro de 2020.

    [xx] Em 1930 August Thalheimer escreveu uma análise do fenômeno partindo de O 18 Brumário de Marx. Para ele, o bonapartismo era diferente do fascismo, porém expressava o mesmo processo pelo qual a burguesia abandona sua sobrevivência política nas mãos de um ditador para salvar sua existência econômica. Thalheimer diz que “o pequeno burguês fascista quer um governo forte. Governo forte significa ampliação do funcionalismo. Mas ele exige ao mesmo tempo uma economia de gastos públicos, isto é, uma limitação do funcionalismo (…). É preciso acabar com o abuso do dia de oito horas e com o disparate dos direitos do operário na fábrica. Ordem na fábrica! Que se termine com o presente do Estado aos trabalhadores à custa do pequeno burguês, como o pão e os aluguéis baratos etc”. Thalheimer, August. Sobre o Fascismo. Salvador: CVM, 2009, p. 35. Ele percebeu aquilo que Gramsci já havia enunciado em “A Crise Italiana”.

    [xxi] Processo de unificação italiana. A revolução inacabada da qual falava Alfredo Oriani, cujo livro foi prefaciado por Mussolini. Oriani se opunha à Itália artificial burguesa e apoiou o Popolo d`Itália (nome do jornal de Mussolini, depois que ele foi excluído do socialista Avanti).

    [xxii] Bauer tratou o fascismo como um resultado de um “peculiar balanço de forças de classes”. No informe ao Comitê Central de agosto de 1924, Gramsci caracterizou o fascismo como o resultado de um “determinado sistema de relações de força existente na sociedade italiana”. Gramsci Antonio Gramsci. La costruzione del Partito Comunista. Turim: Giulio Einaudi, 1978, p. 33.

    [xxiii] Algo tematizado por Poulantzas no conceito de “fascistização”.

    [xxiv] Fabbri, Luigi. La Contro Rivoluzione Preventiva. Milano: Zero in Condotta, 2009, p.96.

    [xxv] A atração que a alta sociedade sente pelo submundo do crime foi bem demonstrada por Hannah Arendt posteriormente. Arendt, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 229 e 274.

    [xxvi] Czerwińska-Schupp, Ewa. Otto Bauer (1881-1938). Chicago: Haymarket Books, 2018, p.313.

    [xxvii] Eco, Umberto. “O Fascismo Eterno”, in: Id. Cinco Escritos Morais. Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.

    [xxviii] Todos os artigos de Gramsci aqui referidos podem ser consultados em Gramsci, A. Escritos políticos. 2 volumes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

    [xxix] Gramsci, A. Socialismo e Fascismo. L`Ordine Nuovo, 1921-1922. Torino: Einaudi, 1966, p. 205. Uma reavaliação do blanquismo em Lussu, Emilio. Teoria da insurreição. Lisboa: Ulmeiro, s/d.

    [xxx] Spriano, P. Storia del Partito Comunista Italiano, V. I, Torino, Einaudi, 1967, p. 147.

    [xxxi] Ainda assim a tentação insurrecionalista levou o Komintern a preparar ações armadas na Estônia e na Bulgária.

    [xxxii] Togliatti escreveu as teses sindicais e a tese sobre a situação italiana e a bolchevização do partido. Mas trata-se de um documento coletivo apresentado pela nova maioria partidária. Agosti, Aldo. Togliatti: Uomo di Frontiera. Torino: Utet Libreria, 2003, p. 76.

    [xxxiii] Spriano, P. Togliatti. Milano: Mondadori, 1988, p. 76.

    [xxxiv] Na preparação para uma edição especial de 1951 da revista PCI Rinascita, marcando “Trinta anos de vida e lutas do PCI”, Togliatti instruiu seus camaradas que não deveria haver menção às idéias de Bordiga, “nem para atacá-las”. Broder, David. “Wrongly overlooked thinker”; Weekly worker, 23.07.2020, in https://weeklyworker.co.uk/worker/1309/wrongly-overlooked-thinker/#fn4.

    [xxxv] Clementi, Andreina de. Amadeo Bordiga. Torino: Einaudi, 1971, p.235.

    [xxxvi] A ironia histórica é que, depois da reviravolta de Salerno (svolta di Salerno, abril de 1944), os comunistas foram o fiel da balança que permitiu a “neutralização” da hipótese revolucionária e a formação de um governo de unidade nacional.

    [xxxvii] Del Roio, Marcos. “Gramsci e Togliatti diante do fascismo”. Crítica Marxista, n. 50, Unicamp, 2020.

    [xxxviii] Del Roio, Marcos. Os Prismas de Gramsci. São Paulo: Xamã, 2005, p. 141.

    [xxxix] Droz, J. H. Il Contrasto tra L’Internazionale e il PCI. 1922-1928. Milano: Feltrinelli, 1969, p.237.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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