Antonio Gramsci e o fascismo – Parte II
Gramsci teve que lidar no cárcere com o fascismo em seu momento de estabilização e enraizamento cotidiano
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Terceira fase. Os cadernos (1928-1935)
Entre 1948 e 1951 saíram os seis volumes da edição temática dos Cadernos do Cárcere. A organização coube a Felice Platone sob supervisão de Palmiro Togliatti. Somente em 1975 os cadernos seriam editados de acordo com a organização deixada pelo próprio Gramsci, aos cuidados de Valentino Gerratana.[i]
Depois da edição crítica, os avanços da crítica filológica revelaram facetas diversas do pensamento de Antonio Gramsci. Conceitos que outrora foram decisivos nas formulações de seus leitores ou nos partidos políticos tornaram-se questionáveis, tais como bloco histórico, a díade base e superestrutura,[ii] arditismo, subalternos, sociedade civil e até mesmo hegemonia. O que não quer dizer que foram invalidados.
Consenso e coerção foram utilizados de forma dicotômica e não processual e, por isso, houve todo um amplo debate sobre uma suposta imprecisão conceitual de Gramsci na delimitação entre estado e sociedade civil. As polêmicas que envolveram os autores dos anos 1970 tiveram em duas intelectuais um momento forte do debate sobre hegemonia, bloco histórico etc: Christine-Bucci Glucksmann[iii] e Maria Macciochi.[iv]
Também Hughes Portelli[v] e Perry Anderson adentraram o debate e este escreveu uma crítica a Antonio Gramsci baseada na edição Gerratana.[vi] Como se percebeu depois, Perry Anderson cotejava termos idênticos sem perceber que as noções que os fundamentavam eram diferentes de acordo com a evolução que Antonio Gramsci vivenciou na sua produção;[vii] a concepção de hegemonia sinalizava um conflito e não um fato posto. O substrato comum daquelas autoras e autores era a retomada da discussão sobre o fascismo, especialmente Glucksmann e Anderson.
Nos anos 1970, a luta armada urbana e um terrorismo de direita clandestinamente apoiado no estado reavivaram o tema do fascismo.[viii] Quando Enzo Santarelli organizou uma coletânea de textos de Antonio Gramsci sobre o fascismo, em 1974, ele escreveu que o neofascismo se alimentou na própria sociedade pós fascista.[ix] O ciclo de expansão capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial havia se esgotado, o neoliberalismo influenciava os governos e questionava o papel do Estado; a política e a cultura foram redefinidas; a financeirização afetou as relações internacionais entre centro e periferia; e, por fim, a economia experimentou uma revolução produtiva. Esse foi o contexto em que se discutiram as ideias de Antonio Gramsci sobre estado e sociedade civil, classes subalternas, fordismo e fascismo.
Na época de Antonio Gramsci também se impunham novas exigências produtivas e mudanças culturais que ele tratou sob a rubrica “americanismo e fordismo”. Para ele, a crueldade do fascismo nascia das novas relações de produção e da necessidade de uma guerra de posição internacional contra a classe trabalhadora.
O fascismo marcou a passagem a uma nova forma organização produtiva. O liberismo, escreveu Antonio Gramsci, “é uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não expressão espontânea, automática, do fato econômico. Portanto, o liberismo é um programa político destinado a mudar, quando triunfa, o pessoal dirigente de um Estado e o programa econômico do próprio Estado, isto é, mudar a distribuição da renda nacional”[x].
Não há portanto, uma contraposição do Estado contra o mercado. Acreditar nisso, seria reproduzir a própria ideologia liberal. Portanto, o fascismo não é estatizante ou liberal, simplesmente responde à forma de intervenção estatal mais adequada à economia capitalista num dado momento histórico. Liberalismo e fascismo são modalidades da revolução passiva.
Antonio Gramsci recorreu inicialmente à revolução passiva para interpretar a ascensão burguesa desprovida do radicalismo jacobino. Uma espécie de revolução – restauração, na expressão que Antonio Gramsci retira do historiador Edgard Quinet, em que a modernização das forças produtivas é levada a cabo, evitando a Revolução Francesa (no caso do liberalismo do século XIX) e a Revolução Russa (no caso do fascismo do século XX).
Ele tratou principalmente do Risorgimento italiano, mas deixou claros indícios de que também o fascismo poderia ser tratado naquela chave de interpretação, evidentemente reformulada. A Revolução Passiva exclui a participação autônoma das camadas populares através de suas próprias organizações, as quais são destruídas e suas lideranças são decapitadas ou cooptadas (transformismo). A radicalidade jacobina é substituída pela iniciativa legislativa, organização corporativa e mudanças profundas na organização econômica para “acentuar o elemento plano de produção (…) sem com isso tocar a apropriação individual ou grupal do lucro”. No Risorgimento a saída para o impasse político foi a do liberalismo conservador. Nos anos 1920 foi a do fascismo, única força capaz de “integrar a Itália ao ritmo dos padrões de acumulação imperialista”.[xi]
No caso do fascismo italiano o corporativismo é a tentativa de um caminho médio, entre a planificação soviética e economia de mercado. O estado seria uma “holding” que preenche a diferença entre a renda nacional e o consumo, colocando a poupança pública à disposição da grande indústria, contornando os vários tempos de rotação do capital fixo, fornecendo crédito ou investindo diretamente no médio e longo prazo, “realizando aquelas funções que nos Estados Unidos foram levadas a cabo de forma espontânea pela própria burguesia”.[xii]
A ala sindicalista do fascismo (em geral formada por ex-sindicalistas revolucionários), liderada por Rossoni, ambicionava uma única organização de trabalhadores e empresários (sindicalismo integral) que subordinaria as grandes indústrias em uma unidade com setores médios, operários agrícolas e industriários e pequenos empresários.[xiii] No entanto, o corporativismo foi o modelo alternativo ao sindicalismo integral.
Embora previsse uma espécie de cogestão da economia, na prática a política corporativista incorporou a Cofindustria no estado e manteve os empresários no despotismo privado em suas empresas. Isso significou dar-lhes o controle de um órgão estatal[xiv] e as corporações se tornaram órgãos monopolísticos.[xv] “O Estado criado por Rocco exaltava o aspecto da coerção, o totalitarismo mirava e exaltava o aspecto do consenso”.
Embora nunca tivesse se realizado plenamente, a hipótese totalitária de Mussolini buscava o “anulamento da separação liberal entre estado e sociedade civil, a total integração da segunda no primeiro”[xvi], exatamente o inverso da proposição gramsciana. Antonio Gramsci não usava o termo totalitário apenas num sentido negativo. A palavra era usada pela oposição antifascista italiana e pelo próprio regime. Em Gramsci pode significar tanto a tentativa fascista de abolir as demais organizações e satisfazer as demandas sociais dentro de um “único centro homogeneizador” (o estado absorve a sociedade civil), quanto a solução comunista em que é a sociedade civil que absorve o Estado[xvii].
Antonio Gramsci percebeu que o corporativismo congelava as classes num nível elementar (sócio profissional) e incorporava a necessidade de planificação econômica num espaço institucional controlável. Assim se realizava a meta de uma economia regulada, sem violar a propriedade privada e o lucro.
Há que ressaltar que “a reflexão gramsciana é cautelosa e não conclusiva, privilegiando hipóteses explicativas ao invés de esquemas generalizantes”.[xviii] Não há nada definitivo no que diz respeito ao fascismo. Decerto, a observação empírica levou Gramsci a considerar um papel saliente do estado, mas ele também recorreu ao conceito de revolução passiva para tratar de uma modernização sem revolução baseada nas forças espontâneas da sociedade civil: o americanismo. Neste caso, preservava-se o estado liberal. O liberalismo era entendido não segundo a ideologia do livre cambismo, e sim como o tipo de intervenção estatal que propicia o ambiente para a livre iniciativa do capital que alcança por si mesmo a fase monopolista. Mas muitas dessas afirmações são acompanhadas de interrogações, variantes e verbos no tempo condicional.
O partido fascista
Antonio Gramsci entendeu os partidos como a trama privada do Estado. Eles dependem do grau de homogeneidade e consciência dos vários grupos sociais. O partido é uma escola da vida estatal, que mimetiza o órgão político que deseja conquistar.
O movimento de formação dos estados suprime autonomias anteriores e se desdobra, uma vez instaurado como poder “acima” da sociedade, nos partidos e na sociedade civil, reconhecendo-se como realidade no mundo. Como se cada um deles fosse um pequeno estado em potencial, cabendo ao moderno príncipe permitir o reencontro da unidade da idealidade do estado e da objetividade da sociedade civil. O moderno príncipe não é um partido em abstrato, mas histórico, concreto. Quando falamos em partido ou estado isso é muito abstrato, embora pareça simples. Por isso mesmo para a dialética o simples é uma abstração e não o complexo.
Só depois de um percurso de análise histórica é que os partidos da Itália se tornam complexos, resultados de muitas determinações, logo concretos. Para Antonio Gramsci, na Itália os jornais constituíam os verdadeiros partidos. Ele desvia o foco dos partidos formais, que foram destroçados pela guerra, pela falência do liberalismo e pelo fascismo. Não há como não fazer uma analogia com o uso dos meios de comunicação de massa e das redes sociais por fascistas do século XXI.
Antonio Gramsci se voltou ao partido em sentido amplo e não formal. A certa altura afirmou que a própria igreja foi obrigada a tornar-se partido. Já o partido fascista era primitivo. Ele resultou da tradição econômico corporativa das classes dominantes italianas. Há uma citação do fascista Balbo que estabelece um paralelismo entre o fascismo e o comunismo como movimentos capazes de agir fora da legalidade no âmbito da crise do regime parlamentar liberal: “Mussolini agiu. Se não o tivesse feito, o movimento fascista teria perpetuado a guerrilha civil por décadas e não se exclui que outras forças, que militaram, como a nossa, fora da lei do Estado, mas com propósitos anárquicos e destrutivos, acabariam se beneficiando de neutralidade e impotência”.[xix]
Como fascista, ele atribuiu ao adversário aquilo que ele mesmo realizou: a tarefa da destruição. E ocultou os meios, pois o fascismo só agiu na ilegalidade com a cumplicidade do aparelho estatal, enquanto isso era impossível para seus opositores. Uma vez no poder, o fascismo tendeu a usar a ilegalidade e não se preocupou em instituir um novo direito. Gramsci afirmou que Mussolini serviu-se do estado para dominar o partido e do partido, em momentos difíceis, para dominar o Estado.[xx]
Ele sugeriu que a fase primitiva do partido de massas se expressou no líder carismático. A “doutrina se apresenta aos aderentes como qualquer coisa de nebulosa e incoerente, que necessita de um papa infalível para ser interpretada e adaptada às circunstâncias”[xxi]. Este partido não nasceu e se formou sobre “uma concepção de mundo unitária porque não expressa uma classe historicamente essencial e progressiva, mas na base de ideologias incoerentes e desarrumadas (arruffate), que se nutrem de sentimentos e emoções”. O partido fascista expressava classes que, embora em dissolução, ainda tinham certa importância social e se aferravam ao passado para se proteger do futuro.
Tratava-se de uma variante policial de dominação, sem atividade teórica e doutrinária. O partido fascista podia exercer uma função de polícia para proteger a ordem, mas não se tratava de um moderno príncipe capaz de estabelecer uma nova relação de forças estável. O fascismo confirma a subalternidade cultural e econômica de um país, embora use a ideia de nação para dissolver as classes sociais no seu discurso. Isso é possível quando elas estão paralisadas.
Lorianismo
Antonio Gramsci teve que lidar no cárcere com o fascismo em seu momento de estabilização e enraizamento cotidiano. Um dos volumes da clássica biografia de Mussolini, escrita pelo historiador Renzo De Felice, recebeu o título de Os anos do consenso. 1929-1936.[xxii] Uma escolha provocativa deliberada que atribuía o consenso a um regime fundado na coerção e na ilegalidade. Provocação incômoda para a própria democracia italiana pós-fascista que jamais se “desfascistizou” por completo.
O fascismo desafiou os seus adversários porque não contrapunha a eles uma ideologia coerente, fosse esta definida negativamente, como falsa consciência ou positivamente, enquanto concepção legítima da vida e do mundo. Como já vimos anteriormente o fascismo é apenas ação, segundo Mussolini. E sempre oportunista. O próprio Hitler insistia que se deve dirigir às massas não com argumentos, provas e conhecimentos, mas com sentimentos e profissões de fé. Para Mussolini, que tinha um preparo político anterior maior que o de Hitler, doutrinas não passavam de expedientes táticos.
Antonio Gramsci não estava só quando perscrutou em 1935 a natureza irracional do discurso fascista. Wilhelm Reich escreveu Psicologia de massas do fascismo em 1933, voltando-se ao conteúdo afetivo e irracional da adesão ao fascismo[xxiii]. O Behemoth de Franz Neumann é de 1944. Nele o autor demonstrou que toda declaração nazista carecia de consistência. Era um oportunismo absoluto onde cada afirmação procedia da situação imediata e era abandonada quando a situação mudava.[xxiv]
Tratava-se de um discurso em que as palavras mantinham relação arbitrária com as supostas realidades às quais se referiam. Por isso, não havia coerência nos significados ou na sequência daquilo que era enunciado, apenas na técnica de manipulação. O objetivo da manipulação é apenas a perenização da própria manipulação. A forma não importa, o estilo é rude. Como pregação, o fascismo é a “divinização do fato consumado” e por isso pouco importa que ele tenha sido republicano primeiro, monarquista depois e republicano novamente.[xxv]
Essa aparente “filosofia” que vem de baixo, do dia a dia, é parte da forma bizarra que sempre acompanhou estratos intelectuais que se sentiam marginalizados.[xxvi] Sempre há um tipo intelectual que cultiva teorias excêntricas, posições reacionárias e oportunistas, dissimuladas de progressistas e científicas que distorce evidências empíricas para chegar a resultados extravagantes.
Para se compreender a mensagem compósita do fascismo é mais importante estudar essas figuras marginais da literatura e da ciência, mas que tiveram acolhida pública em suas épocas, do que os nomes que ingressaram no cânone literário. Achile Loria, hoje um autor desconhecido, foi um exemplo para Antonio Gramsci. O senso comum não é resultado da baixa escolaridade. Na esfera do cotidiano todos nós somos seres humanos “comuns”, onde agimos imediatamente, sem reflexão. Juristas, oficiais superiores, professores universitários, lideranças políticas e científicas ofereceram seu respaldo ao fascismo porque não vinculavam seus estudos e sua profissão ao conjunto da sociedade.
O discurso excêntrico é uma das fontes fascistas que descortina uma nova maneira de operar no debate público e que retoma o tema da traição dos intelectuais, mas não a la Julien Benda, porque não se propõe uma volta à ciência pura e desinteressada[xxvii]. Na verdade não se propõe nada[xxviii]. O fascista não esconde o que pensa. Sua mentira está no todo e não nas partes necessariamente. Há nele o vil interesse, sem dúvida, mas também uma fé quebrada, um conjunto desconjuntado que é proclamado quando os intelectuais da esquerda abandonam o universal e se tornam técnicos do saber, contando o número de artigos de seus curricula. Ele não planeja o encontro do povo com a filosofia. Ele confere estatuto “teórico” ao senso comum, à “filosofia do homem médio”, incoerente e desagregada. Diferentemente de Gramsci não há nenhuma ideia de encontrar no senso comum um “núcleo sadio” através de uma ação recíproca entre a teoria e a concepção popular. É o contrário: não se trata de elevar a crença do homem comum, mas de lhe conferir o estatuto de uma filosofia fake.
A técnica consiste em oximoros, generalização de casos teratológicos, uso de ideias contraditórias e incoerência narrativa. Um dos últimos Cadernos do Cárcere, escrito em 1935, é dedicado exatamente ao “lorianismo”. Não há como não se pensar no astrólogo brasileiro Olavo de Carvalho[xxix]. Como ele, Achile Loria apresentava ideias esquisitas; propunha, por exemplo, que se combatesse a fome lambuzando as asas dos aviões com visgo, o que permitiria aos pobres comerem os pássaros que ficariam grudados nos aviões. Loria era um intelectual do tipo “medalhão” (para empregar a expressão de Machado de Assis). O “lorianismo” remetia ao positivismo e ao oportunismo[xxx], apresentando-se até como progressista. O “brescianismo”, ao contrátrio, tipifica um grupo de literatti diletantes, reacionários e ideologicamente confusos, como o padre jesuíta Bresciani.
Mesmo artistas e intelectuais festejados podem ter traços de lorianismo, tais como a “covardia moral e civil” e o conformismo. As duas rubricas escolhidas por Antonio Gramsci podem servir de inspiração para responder à pergunta: como tratar aquilo que é bizarro, monstruoso, irracional, mas dotado de poder de influência?
Antonio Gramsci indica que se trata de “uma pesquisa de história da cultura, não de crítica artística”, e o traço mais saliente que ele questiona nos autores examinados é que eles “introduzem um conteúdo moral exterior” às suas obras e não respeitam regras internas metodológicas, afinal são ecléticos, focalizam o destinatário da mensagem, fazem propaganda, jamais ciência ou arte.
O lorianismo é uma categoria de análise das transformações moleculares, imperceptíveis, inconscientes e espontâneas que se cristalizam em resíduos que a política não recolhe. Esses rejeitos da civilização burguesa no passado não tinham significado algum, mas agora (1935) assumiam uma forma. Esta se define como especial (não existiu antes), voluntária (assumida coletivamente), sistemática (de massa) e terrorista. Ao elencar essas características do fenômeno loriano Gramsci não poupa a “responsabilidade daqueles que, podendo, não impediram”.
A questão que se apresentou a Antonio Gramsci é que todos os movimentos por ele estudados podiam apresentar algum traço positivo: a filosofia de Croce, o liberalismo, o reformismo, as religiões etc. O cesarismo pode ser regressivo ou progressivo, mas o lorianismo nada tem de positivo.[xxxi] É com essa categoria que ele se refere ao nazismo enquanto “lorianismo monstruoso”. Como combater um fanatismo cego ao qual falta uma concepção de mundo e de Estado? No último acréscimo que escreveu aos seus cadernos, Gramsci comparou o nazismo a manifestações de brutalidade e ignomínia e que enchia a vida cultural de gases asfixiantes.[xxxii]
Os “aspectos deteriorados e bizarros” constituem uma mentalidade de grupo e correspondem, portanto, à traços da cultura nacional. O principal é a ausência de organicidade, ou seja, de pesquisa e estudo sistemático.
Todavia, uma atitude loriana nos esconderijos sociais de supostos gênios incompreendidos não é o problema que importa. A carreira do próprio Loria indica que havia falhas no sistema cultural e, por oportunismo ou interesse pessoal, intelectuais estabelecidos o apoiaram. Ao citar imensos volumes medíocres que puderam ser acolhidos pelas editoras, Antonio Gramsci diz: “a responsabilidade do sistema é aqui evidente”. Einaudi, por exemplo, usou seu poder editorial e intelectual para fazer uma “Bibliografia di Achille Loria”. Além disso, a falta de uma crítica permanente àquelas bizarrices permitiu que Loria sobrevivesse no mundo intelectual. A continuidade e a persistência propiciaram que ele fosse avaliado pela quantidade de títulos, “nestes tempos de civilização quantitativa”, acrescentou Gramsci.
As bizarrices não derivam apenas de pretensões individuais, mas de ausência de filtro cultural e institucional. Até pessoas bem formadas em algumas cometem erros e isso é normal. Mesmo os erros crassos podem ser reconhecidos e corrigidos. Antonio Gramsci cita o caso de um autor de livros patrióticos que confundiu a “casa dos partos” – uma ruína dos partos, um povo asiático – com uma clínica ginecológica romana. A questão ali é que os equívocos não eram filtrados pelo sistema universitário ou outro equivalente. O lorianismo é um filtro invertido que rejeita tudo o que é sistemático e decanta tudo o que é “impuro”.
Loria desenvolveu, por exemplo, a teoria “sobre o grau de moralidade de acordo com a altitude em relação ao nível do mar, com a proposta prática de regenerar os delinqüentes levando-os às altas camadas atmosféricas em imensos aeroplanos, corrigindo assim uma proposta anterior de construir os presídios em montanhas elevadas”. Essas maluquices também correspondiam a um substrato “cultural” e a tradições que retornavam continuamente.
O problema não está no “falar sobre qualquer coisa”, embora isso possa ser um índice de lorianismo. Intelectuais são continuamente convocados a opinar na esfera pública diante de temas vários. O próprio Antonio Gramsci abordou muitos assuntos diferentes nos Cadernos do Cárcere. Mas ele o fez com uma intenção unitária e mesmo aqueles textos que eram para seu próprio esclarecimento estavam subordinados a um método. Os lorianos sempre estão nos seus “esconderijos de gênios incompreendidos” e sua ambição intelectual se mescla com a esperança de “vender suas tolices”. Mas ignoram as noções de coerência e método e a razoabilidade do bom senso.
O antifascismo
Antonio Gramsci emitiu opiniões de caráter prático imediato, segundo alguns presos políticos[xxxiii] e sabe-se que suas relações com os comunistas não foram sempre amistosas.[xxxiv]. Mas suas divergências tinham uma natureza muito mais profunda. Ele não acreditava que o pensamento moderno fosse apenas expressão da decadência burguesa e aspectos da cultura dominante poderiam ser desenvolvidos. É nesta retomada que reside a brecha no lorianismo, o qual se joga sobre novos movimentos para pervertê-los.
O lorianismo, enquanto a degenerescência da filosofia positivista da técnica, permitiu e justificou o elemento central do fascismo: o terrorismo. A luta contra isto exige que a negação de cada elemento da velha civilização seja feita segundo a perspectiva da superação da cisão entre filosofia e senso comum, que potencialize a prática e não reduza a teoria a mais uma técnica. Para Antonio Gramsci, a própria esquerda poderia ser acusada de aceitar essa desumanização. Líderes socialistas tinham atitudes lorianas, como Turatti.[xxxv]
Em termos de nosso tempo, não é possível propor transformações sociais que não sejam universalizadas também enquanto consciência social. A política, mesmo “de esquerda”, que não serve para aproximar dirigentes e dirigidos, filosofia e senso comum, teoria e prática, é aquela que se reduz à gestão técnica dos conflitos sociais. Ela consegue atrair adeptos hoje e perdê-los amanhã para o fascismo porque suas elaborações não se tornam uma cultura política, ou seja, uma rede compartilhada de produção e circulação de práticas, organizações, teorias, valores, ideais, sentimentos etc.
“Como reagir?”, indaga-se Antonio Gramsci. No longo prazo por uma nova escola; no curto prazo, criando aversão “instintiva” pelo lorianismo com o senso do ridículo, já que o bom senso pode ser “despertado por uma boa alfinetada”, como ele escreveu. Suas palavras anti lorianas mais conhecidas resumem a atitude diante do fascismo: “De resto, todo colapso traz consigo desordem intelectual e moral. É necessário criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e não se exaltem em face de qualquer tolice. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”.
Para acessar a primeira parte do artigo clique em https://www.brasil247.com/blog/antonio-gramsci-e-o-fascismo-parte-i
Notas
[i]A edição brasileira dirigida por Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sergio Henriques, embora ampla, não seguiu os critérios da edição Gerratana e não publicou integralmente os textos escritos na prisão.
[ii] Balsa, Javier. “Uma Avaliação das Leituras Filológicas da Obra de Gramsci e Seus Possíveis Aportes para as Estratégias Políticas”. Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 5, p. 82-104, Ago/Dez, 2019.
[iii] Bucci-Glucksmann, Christine. Gramsci e o Estado, 2ª ed. Rio: paz e terra, 1980.
[iv] Macciochi, M.A. A Favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
[v]Portelli, Hughes. Gramsci e o bloco histórico. Rio: paz e terra, 1977.
[vi] Anderson, P. “As Antinomias de Gramsci”, in Crítica Marxista. S. Paulo: Joruês, 1986. A crítica de Anderson a Gramsci começa em sua obra historiográfica mais importante. Sua hipótese do absolutismo como regime feudal centralizado contrariou a leitura clássica marxiana e marxista do Estado Moderno como árbitro que permitiu a convivência da nobreza fundiária e de uma burguesia ascendente no âmbito das monarquias “nacionais”. Ao atacar toda a leitura do Estado feita por Maquiavel e a do próprio Marx, assumidas por Gramsci, ele também considera equivocado todo o questionamento de Gramsci sobre o Renascimento e o Risorgimento. Anderson, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Trad. Suely Bastos. São Paulo: Brasiliense, 2 ed, 1989, p. 169.
[vii] Francioni, G. L´Officina gramsciana. Napoli: Bibliopolis, 1984, p. 198.
[viii]O cinema de Pasolini, Ettore Scola, Costa Gavras, Elio Petri, Liliana Cavani e outros documenta isso.
[ix]Santarelli, Enzo. “Prólogo” in Gramsci, Antonio. Sobre el Fascismo. Mexico: Era, 1979, p.30.
[x]Gramsci, Quaderni, cit., p.1589.
[xi]Ruviaro, Débora. e Siqueira, Mirele H. “O debate gramsciano sobre o fascismo: uma fascismo à brasileira?”, O Social em Questão, ano XXIV, n. 51, set dez 2021.
[xii]Bianchi, Alvaro. “Revolução passiva: o pretérito do futuro”, in https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo127A_Bianchi_23.pdf. Acesso em 10 de agosto de 2020.
[xiii]Carocci, Giampiero. Storia d’Italia dall’Unità ad Oggi. Milano: Feltrinelli, 1975, p. 255.
[xiv]Carocci, G. op. cit., p. 256.
[xv]Salvatorelli, Luigi. Sommario della Storia d’Italia. Torino: Einaudi, 1974, p. 500.
[xvi]Carocci, G. op. cit., p. 267.
[xvii]Ruviaro, Débora. e Siqueira, Mirele H. “O debate gramsciano sobre o fascismo: uma fascismo à brasileira?”, O Social em Questão, ano XXIV, n. 51, set dez 2021.
[xviii]Cf. Bianqui, Alvaro. Revolução passiva: o pretérito do futuro, in https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo127A_Bianchi_23.pdf
[xix]Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1975, p. 808.
[xx]Id. ibid., p. 233.
[xxi]Id. ibid., p. 233.
[xxii] Felice, Renzo de. Mussolini il Duce. Gli anni del consenso. 1929-1936. Torino: Einaudi, 1974.
[xxiii]Reich, Wilhelm. Psicologia de Massa do Fascismo. Lisboa: Escorpião, 1974, pp. 35, 79, 93 e 95.
[xxiv]Neumann, F. Behemoth. Mexico: FCE, 2005, p. 57.
[xxv]Fabbri, Luce. Fascismo: Definição e História. São Paulo: Microutopias, 2019, p.19.
[xxvi]Nos contextos de reação política eles são retirados do “auto exílio” imaginário e conseguem uma incidência inversamente proporcional à profundidade de seus escritos que podem juntar numa obra só uma pretensa erudição shakespeareana com a acusação a uma subclasse de pessoas sexualmente irresponsáveis e economicamente inseguras produzida pelo discurso esquerdista acadêmico. No Brasil Paulo Francis e depois dele outros menos dotados cumpriram esse papel. Na Grã Bretanha por exemplo: Dalrymple, Theodore. Nossa cultura… ou o que restou dela. Trad. M. Righi. São Paulo: É Realizações, 2015.
[xxvii]Benda, Julien. A Traição dos Intelectuais. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Peixoto Neto, 2007. Vide também: Boto, Carla. “Traição dos intelectuais”. Revista USP, São Paulo, 2009.
[xxviii]Para Benda, o intelectual podia até ser partidário desde que defendesse o universal, a verdade e a justiça. Bobbio lembrou que isso seria mais fácil a alguém de esquerda porque o intelectual da direita não pode admitir que por trás de honra e pátria defende interesses pessoais e de sua coterie. Bobbio, Norberto. Os Intelectuais e o Poder: Dúvidas e Opções dos Homens de Cultura na Sociedade Contemporânea. São Paulo, Unesp, 1997.
[xxix]Vide: Secco, L. “Gramscismo: Una Ideología de la Nueva Derecha Brasileña”, Revista Política Latinoamericana, nº7, Buenos Aires, julio-diciembre 2018.
[xxx]Buttigieg, Joseph. “O método de Gramsci”. Tradução: Luiz Sérgio Henrique in: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=290. Acesso em 28/07/2019.
[xxxi]Badaloni, Nicola. “Gramsci: a filosofia da práxis como previsão”, in Hobsbawm, Eric (Org). História do marxismo. Volume X. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.117.
[xxxii]Id. ibid., p.119.
[xxxiii]Giuseppe Ceresa fez um relato a respeito: Ceresa, G. “Gramsci na Prisão”, Problemas, nº10, maio de 1948. Sandro Pertini fez uma alusão a um encontro com Gramsci. Pertini, Sandro. Sei condanne, due evasioni, Milano, Mondadori, 1982, p.181. Athos Lisa escreveu um relatório ao partido comunista. Lisa, Athos, “Discussão política com Gramsci, en la cárcel”, in: Gramsci, A. Escritos políticos (1917-1933), 4ºed, México, iglo XXI, 1990.
[xxxiv]De meados de 1931 até dezembro de 1933, Lo Stato operaio fez silêncio sobre Gramsci. L’unità atravessou o ano de 1932 sem uma única palavra sobre ele. Cf. Spriano, P. Gramsci in carcere e il partito, Roma: Riunitti, 1977, pp. 61-62.
[xxxv]O exemplo citado por Gramsci é ambíguo. Em 1919, Filippo Turati abordou simultaneamente a questão do direito das mulheres ao voto e o problema das prostitutas, chamadas de “assalariadas do amor” e “prestadoras de um serviço público e, por isso, mais honestas que a classe política”. Mussi, Daniela. “Antonio Gramsci e a questão feminina”, Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 31, n. 2. São Paulo, USP, 2019.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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