Aos ombros da pobreza
Com as independências formais das colônias, a exploração e a opressão não acabaram. O domínio militar e administrativo direto foi substituído por um domínio indireto: os mercados, as multinacionais e sobretudo as dívidas
Já muitas vozes levantaram a questão, como o escritor Almeida Garrett no século XIX, sobre quantos pobres são necessários para fazer um rico. É menos comum aplicar esta abordagem ao sistema internacional: quantos países pobres são necessários para fazer um país rico?
No debate sobre as desigualdades internacionais e o desenvolvimento importa realçar os mecanismos passados e presentes que criaram e mantêm a situação da riqueza e da pobreza no mundo. Ouvimos frequentemente uma narrativa que defende que os países estão em diferentes estágios de desenvolvimento e que se não houvesse alguns problemas (má governação, etc.) eles poderiam subir as escadas do desenvolvimento. Lá chegarão (dizem eles)... se cumprirem as receitas ditadas pelos países mais ricos e pelas instituições internacionais. Só que esta conversa é em grande medida um engano. O desenvolvimento e a riqueza dos países mais ricos foi construída e mantida à custa dos mais pobres. Importando também realçar a sua distribuição desigual ou muito desigual dentro dos países ricos.
A imposição de relações injustas e mesmo a pilhagem têm sido frequentes ao longo da história. Foi a expansão imperial dos países capitalistas ocidentais que permitiu às suas economias ganharem impulso e dinamismo. Os países colonizadores e sobretudo as suas classes dominantes apropriaram-se de terras e recursos naturais, introduziram o mercado e obrigaram as populações nativas a trabalhar em prol da acumulação capitalista. Apenas a forma mais impiedosa de exploração capitalista pôde garantir a essas classes dominantes as taxas de super-lucro obtidas. Sem menosprezar a exploração dos trabalhadores dos países centrais, os trabalhadores dos países periféricos foram super-explorados e suportaram níveis de degradação humana e materiais difíceis de imaginar. Foram obreiros da riqueza e da paz social nos países centrais.
Com as independências formais das colônias, a exploração e a opressão não acabaram. O domínio militar e administrativo direto foi substituído por um domínio indireto: os mercados, as multinacionais e sobretudo as dívidas. Através do comércio mundial e da troca desigual, os países capitalistas avançados trocaram menos por mais trabalho. Pressionando a redução de preços das matérias-primas e outras exportações dos países “em desenvolvimento” conseguiram reduzir os custos de produção e o custo de vida nos países “desenvolvidos”, facilitando a formação de capital.
Este modelo gerou sobretudo lucros excepcionais para as empresas ocidentais e a base fiscal para os respectivos Estados. Os países ex-coloniais pagaram uma parte significativa do sucesso dos países capitalistas avançados do pós-guerra na Europa, nomeadamente o desenvolvimento do Estado Social ou de Providência.
Muitos países “em desenvolvimento” na segunda metade do século XX viram as suas economias destruídas por dívidas e por programas de ajustamento estrutural ditados pelo Fundo Monetário Internacional. É neste quadro que se continua a pressionar esses países a abrir totalmente os seus mercados e a privatizarem as suas indústrias e recursos naturais. A consequência é que o saque continua e ficam ainda mais dependentes.
É muito difícil subir ou melhorar a posição no sistema mundial. Tentar subir cumprindo as receitas de “mercado ‘livre’ e privatizações” é um erro (muitas vezes forçado) em que caem os países “em desenvolvimento”. Os países pobres e menos pobres que o fazem estão condenados a perpetuar a sua submissão e pobreza.
Num tempo em que a própria lógica e sentido do desenvolvimento começa a ser questionado pela sua relação com a crise ecológica e climática global é fundamental que os países, num quadro de cooperação internacional, ganhem autonomia e resiliência face ao capital transnacional e suas imposições. É fundamental travar o comboio do desenvolvimento capitalista que nos conduz ao desastre para abrir possibilidades de um futuro de bem-estar humano e sustentabilidade ecológica.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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