Argentina: a Igreja Católica move suas peças
"Reforçar o social em um país onde a miséria explode"
A Igreja Católica argentina, majoritária e de grande peso –embora com perda de membros– nesse país sul-americano, vem reiterando suas críticas ao governo de Javier Milei pela explosiva exclusão social. Uma visão com a qual o Vaticano também parece concordar.
Como contexto, os insultos históricos de Milei ao seu compatriota, o Papa Francisco: "Ele tem uma afinidade com ditadores de esquerda...; ele está do lado de ditaduras sangrentas", disse ele em setembro de 2023, quando era candidato, pouco antes das eleições presidenciais (https://www.youtube.com/watch?v=mQ30YStCTMg). Ele também o acusou de ser o "representante do maligno (o diabo) na terra" e de promover o comunismo (https://www.youtube.com/watch?v=3J4aHCBrTdQ). Meses depois, já eleito, Milei baixou o tom de seus ataques, tentou normalizar as relações com o Papa, o visitou no Vaticano e o convidou formalmente a visitar seu país de origem em curto tempo.
Um ano após o início do novo governo, tudo indica que "Francisco, que tem uma enorme experiência política, não quer romper com o governo e que também não quer polarizar as relações", explica Washington Uranga, jornalista do diário argentino Página 12 e um dos analistas mais reconhecidos sobre questões eclesiais latino-americanas. No entanto, há fatos claros que o Papa não fica calado quando é necessário falar: "Francisco foi muito claro ao denunciar a repressão contra as várias mobilizações que ocorreram no ano passado na Argentina; recorda a vigência do tema Memória-Verdade-Justiça, e insiste repetidamente na necessidade de priorizar a justiça social". Às vezes, acrescenta Uranga, Francisco fala diretamente, protegendo, assim, os bispos nacionais. Outras vezes, envia mensagens críticas por meio deles e, quando procede dessa maneira, "é evidente que em alguns casos gera um claro incômodo ao governo, que, por outro lado, paga o preço de não ter quadros de primeira linha para administrar as relações com a Igreja Católica. Não tem sequer funcionários importantes ligados aos setores conservadores da mesma, o que constitui um déficit evidente. Talvez a vice-presidenta Victoria Villarruel seja a única que teria esse perfil, mas dadas as profundas contradições que tem com Milei, ela não pode assumir o papel oficial de diálogo com a hierarquia católica".
A Igreja Católica argentina –como reflexo da política do Vaticano– reiterou repetidamente a necessidade de priorizar as questões sociais, olhando nos olhos de um governo que com seu plano econômico aumentou a pobreza, um cataclismo social que hoje afeta mais de 55% dos quase 47 milhões de habitantes.
Tipo de xadrez: mover peças com estratégia
Ao mesmo tempo, o Papa Francisco continua fazendo nomeações ou propondo nomes de um peso simbólico muito particular. Em novembro passado, por exemplo, com o voto democrático de seus pares, os bispos argentinos, o arcebispo da cidade de Mendoza, Marcelo Colombo, foi eleito presidente da Conferência Episcopal daquele país. Conhecido por seu compromisso social e influenciado em sua formação por Jorge Novak, um dos poucos prelados que, entre 1976 e 1983, se opôs abertamente à última ditadura militar.
Quase ao mesmo tempo, Gustavo Carrara, ligado aos padres de favelas que trabalham nos bairros mais marginalizados do país, foi nomeado para chefiar a poderosa Caritas nacional. O Vaticano também o consagrou arcebispo de La Plata, capital da Província de Buenos Aires, que com mais de 18 milhões de habitantes constitui a maior concentração populacional do país.
A nomeação de Ángel Rossi como arcebispo da cidade de Córdoba, segundo o analista Uranga, "significou uma verdadeira revelação". Recompensa a prática social desse jesuíta, que pouco depois foi consagrado cardeal pelo Papa.
Para Uranga, a evidência de que o Papa "vem reconfigurando o cenário da Igreja na Argentina" não termina com essas nomeações, tão afins à sua própria visão: por exemplo, entre outras, "a nova geração de bispos, particularmente na área metropolitana de Buenos Aires, que são bergoglianos, muitos deles relativamente jovens e com muito compromisso social", não deixam dúvidas sobre o projeto de renovação e atualização geracional da hierarquia argentina como um compromisso com o futuro assumido por Roma.
Essa visão é compartilhada pelo sacerdote Marcelo Ciaramella, da diocese de Florencio Varela (na Província de Buenos Aires), e membro ativo do Grupo de Sacerdotes na Opção pelos Pobres. Para o padre Ciaramella, "não há dúvida de que Francisco tentou com algumas de suas nomeações marcar uma linha social".
Voz profética
A pergunta ao padre Ciaramella tenta saber o real peso que essa visão de compromisso social tem hoje na Igreja Católica argentina, em uma situação marcada pelo aumento exponencial da miséria e da exclusão.
Sem pretender cálculos matemáticos ou medir porcentagens, o religioso reconhece que "há uma Igreja mais próxima do povo na prática pastoral, na proximidade com os sofrimentos do povo, na ajuda solidária apoiando projetos de inclusão e assistência". Mas, que também existem "notórias contradições entre setores e interpretações sobre o papel da Igreja no meio do povo". E ele avalia que são poucos os religiosos que tendem a "tomar partido público em defesa do povo sofredor". Ou seja, aqueles que "assumem verdadeiramente uma voz profética diante das flagrantes injustiças que vivemos tanto na esfera econômica e social quanto em termos de crimes ambientais que são cometidos em detrimento dos trabalhadores e dos grupos mais empobrecidos de nossa sociedade".
Uma realidade que se reflete, segundo Ciaramella, no episcopado, que em geral "tende a usar uma linguagem enigmática e tardia ou que não é pronunciada de forma alguma". Assim passa com muitos outros religiosos, cuja ignorância da doutrina social da Igreja é impressionante. Com a circunstância agravante de que essa doutrina está repleta de princípios teóricos que, embora muito válidos, não integram uma análise profunda da realidade nem incidem nesses princípios para que se convertam em prática pastoral.
BOX - Parte 2
Desafios da nova liderança católica na Argentina
Sergio Ferrari
O padre Marcelo Ciaramella, além de seu compromisso político e social diário nas bases, tem uma visão analítica –histórica e atual– da Igreja Católica argentina, à qual serve há 40 anos, aniversário que acaba de comemorar em 15 de dezembro. Em 2021, a Universidade Nacional de Quilmes (província de Buenos Aires) publicou sua tese que resume uma parte dessa visão intitulada "As Cumplicidades Eclesiásticas do Genocídio Econômico da Ditadura (1976-1981). Igreja e neoliberalismo na ditadura", dissertação de seu mestrado em Ciências Sociais e Humanas com foco em economia.
Pergunta: A eleição do arcebispo Marcelo Colombo como presidente da Conferência Episcopal Argentina (CEA) pode ser interpretada como um passo em direção a um maior compromisso social por parte da hierarquia?
Marcelo Ciaramella (MC): A priori pode ser interpretado como um sinal a favor de uma pastoral social comprometida com os pobres, mas estou convencido de que a única verdade é a realidade. Daqui a um tempo, poderemos ver o que nos diz essa realidade, que nesse momento é bastante sombria e humilhante para o povo argentino. Conheço muito bem o Marcelo Colombo. Somos amigos, quase contemporâneos, e compartilhamos muitos momentos juntos. Quando ele foi nomeado bispo, em 2009, foi uma celebração muito sincera, que experimentei quase em primeira pessoa. Naquela época, ele atualizou a figura de nosso amado bispo Jorge Novak, fundador e prelado histórico da popular diocese de Quilmes, na Província de Buenos Aires, e um duro oponente da ditadura argentina. Marcelo e eu fomos ordenados por Novak. Ele nos transmitiu seu testemunho de serviço e amor pelos pobres, a valorização inegociável dos direitos humanos e a comunhão fraterna com outras perspectivas religiosas, o que popularmente chamamos de ecumenismo.
Pergunta: O novo presidente da CEA será capaz de manter essa visão progressista em uma posição sujeita a tantas pressões eclesiais e políticas?
MC: Acho que ele vai tentar. Ele é uma pessoa honesta e comprometida com o Evangelho. Sei que não será fácil para ele articular a burocracia institucional e o Evangelho em um organismo tão complexo. Mas, há o ensinamento de Dom Novak, que nunca renegou a colegialidade episcopal ou falou mal em público de seus colegas, mas que nunca deixou de dizer em voz alta o que sua consciência cristã e pastoral exigia dele, com palavras diretas, julgamentos precisos e sem se deixar intimidar pelo poder. Em uma das primeiras e mais recentes entrevistas após ser eleito presidente dos bispos argentinos, Marcelo foi claro ao afirmar que toda reforma econômica deve ser feita com a inclusão do povo, ou seja, sem excluir socialmente os mais necessitados e frágeis (https://www.elcohetealaluna.com/boton-modo-novak/).
Pergunta: Quais são os desafios mais complexos do novo presidente da CEA em um contexto político-social tão polarizado?
MC: O arcebispo Colombo tem dito claramente que respeitará a institucionalidade democrática e as autoridades eleitas pelo povo, mas que não deixará de apontar as situações que afetam a vida da sociedade. Esse é o grande desafio: ser profetas, denunciar a injustiça e o pecado estrutural ao lado das vítimas. Ou seja, além de caminhar e edificar a Igreja a partir dos pobres, ser profeta e sempre proclamar o Evangelho, denunciando a injustiça e os crimes econômicos, sociais e culturais de governos como o atual, de Javier Milei.
Tradução Rose Lima
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