As Américas e a civilização
Sociólogo e professor da USP Ricardo Musse tece considerações sobre o livro de Darcy Ribeiro
Por Ricardo Musse
(Publicado no site A Terra é Redonda)
As Américas e a civilização foi o segundo de uma série de estudos sobre a “antropologia das civilizações” realizados por Darcy Ribeiro durante o exílio. Trata-se, conforme o próprio autor, do livro mais importante da série, pois aborda diretamente o tema que a motivou: as causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos.
Escrito em 1967 e atualizado dez anos depois, As Américas e a civilização destoa completamente do que se pratica hoje em antropologia. O descompasso fica patente tanto na pauta dos conteúdos – a formação e o processo evolutivo das civilizações – como na pretensão de tornar essa disciplina uma ciência abrangente, dotada da capacidade de unificar a totalidade das ciências humanas.
O livro certamente inspira-se no modelo, em voga na época, dos amplos panoramas históricos-culturais da antropologia neo-evolucionista americana. Propõe-se, no entanto, a submeter essas teorias a uma “revisão crítica”, contestando a naturalidade com que apresentam o processo de desenvolvimento humano, bem como o viés eurocêntrico que as orientam. Tarefa executada com o auxílio do marxismo, incorporado em uma perspectiva heterodoxa, e da primeira “teoria da dependência”, a de André Gunder Frank.
As Américas e a civilização pode ser descrito como uma espécie de elo perdido entre os estudos pioneiros de Gunder Frank e os trabalhos atuais sobre a geopolítica do sistema mundial. Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein privilegiam o acompanhamento do processo de acumulação, na chave braudeliana da “longa duração”. José Luís Fiori, seguindo os passos de Maria da Conceição Tavares, destacou o par “poder e dinheiro” e mais recentemente o papel das guerras entre as nações. Darcy Ribeiro, antes deles, procurou entender a desigualdade das nações como um resultado da defasagem dos processos civilizatórios.
O livro não se exime de apresentar uma teoria global do desenvolvimento histórico, desdobrada num esquema que classifica as sociedades conforme seu estágio na evolução sociocultural. A tipologia adota como eixo o “sistema adaptativo”, isto é, o modo como cada sociedade “atua sobre a natureza no esforço de prover sua subsistência e reproduzir o conjunto de bens e equipamentos de que dispõe”. A isso se conecta um “sistema associativo” (o conjunto de normas e instituições da vida social) e um “sistema ideológico” (composto de saberes, crenças e valores). As etapas da comparação correspondem, assim, ao desencadeamento de sucessivas revoluções tecnológicas: agrícola, urbana, do regadio, metalúrgica, pastoril, mercantil, industrial e termonuclear.
A precariedade e vulnerabilidade desse esquema evolutivo são, no entanto, contrabalançadas pela riqueza do material utilizado na composição do livro. Darcy mobilizou as mais diversas fontes: etnográficas, arqueológicas, históricas, econômicas, políticas, sociológicas etc. O conceito que congrega a ordenação dos conteúdos é o de “povos”. Estes são compreendidos não tanto como uma determinação (ou como cruzamentos) étnica ou cultural, mas como resultantes da interpenetração de sociedades com diferentes estágios civilizatórios.
A interpenetração das culturas decorrente da expansão européia teria conformado três tipos de povos na América. “Povos-testemunho” são os descendentes modernos das civilizações autônomas astecas, maias e incas: os mexicanos, guatemaltecos, bolivianos, peruanos etc. Os “povos novos” derivam da junção, no empreendimento colonial, de brancos, negros e índios, situação predominante no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, nas Antilhas etc. Já os “povos-transplantados” correspondem às nações modernas criadas pela migração de populações européias: Canadá, Estados Unidos, Uruguai e Argentina.
Essa tipologia procura mapear os diferentes graus de incorporação aos modos de vida da revolução mercantil e da civilização industrial. Fornece pistas importantes, embora nem sempre as decisivas, para a compreensão de questões cruciais da história da América como o sentido da colonização, a desagregação do império espanhol em uma diversidade de nações e as causas da desigualdade nos padrões de desenvolvimento.
Se algumas partes do livro, como a exposição de sua ossatura conceitual, envelheceram, o ideal que o anima, uma ciência empenhada na superação das defasagens históricas, continua mais que nunca atual.
(Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno mais!, em abril de 2007.)
Referência
Darcy Ribeiro. As Américas e a civilização. São Paulo, Companhia das Letras. 528 págs.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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