As florestas e os biomas queimam mais uma vez no Brasil e no Sul Global em plena pandemia
Nunca foi fácil defender as florestas e outros biomas em um país assolado pela dinâmica do capitalismo dependente no Sul Global. Esse desafio se intensifica no Brasil após o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro
A pandemia global se expressa no Brasil como um verdadeiro pandemônio. Já são mais de 108 mil mortes registradas no Brasil pelo COVID-19 na terceira semana de agosto resultado de profunda negligência e intencionalidade de um governo que nega a ciência, privilegia bandos e abandona as pessoas à própria sorte em meio a uma crise estrutural do capitalismo. O atual governo possui inspirações fascistas e opera sob tutela militar planejando um futuro de autoritarismo crescente no país. Enquanto isso, o desmonte social e ambiental literalmente coloca fogo no Brasil. Enquanto alguns aspectos dessa tragédia sejam mais possíveis de reversão a partir das lutas sociais (mesmo que com sequelas), a destruição da Natureza no Brasil demanda atenção e ação coletiva sob uma perspectiva internacionalista. Lembremos que estamos no país que possui a maior floresta do mundo, o maior rio do mundo e uma parcela muito importante da biodiversidade do planeta. O futuro da vida na Terra também está em jogo quando consideramos o Brasil de hoje.
Nunca foi fácil defender as florestas e outros biomas em um país assolado pela dinâmica do capitalismo dependente no Sul Global. Esse desafio se intensifica no Brasil após o golpe parlamentar, midiático e jurídico de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, que foi hackeada a partir dos métodos mais avançados de análise de dados em massa da internet (big data), estudos avançados de psicologia comportamental e a produção e difusão de conteúdo falso a partir das mídias sociais. O governo de extrema-direita agravou o desmonte ambiental com a destruição de políticas para combater o desmatamento, tentativas de fraudes estatísticas, perseguição de servidores públicos e discursos inflamados de Jair Bolsonaro que encorajou o avanço do agronegócio sobre as florestas e territórios indígenas, validando tanto o desmatamento quanto as queimadas que vêm em seguida.
Durante o período mais intenso de queimadas de 2019 na Amazônia tanta fumaça foi lançada na atmosfera que escureceu São Paulo no meio da tarde – uma cidade localizada mais de dois mil quilômetros da floresta. Naquele período, de acordo com o Relatório do Desmatamento 2019 produzido pela MapBiomas, 12.187 quilômetros quadrados de floresta foram destruídos, o equivalente a oito vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Como essa quantidade é difícil de dimensionar, considere que, em média, no ano de 2019 a cada minuto os biomas brasileiros perdiam o equivalente a 3 campos de futebol profissionais de vegetação nativa. Esses números escandalizaram pessoas no mundo todo que gritaram por mudanças mas, um ano depois, não apenas os números não diminuíram, mas quase triplicaram em alguns meses de 2020 em plena pandemia.
Vale ressaltar que a Amazônia não é o único bioma em risco no Brasil. Mais de 30% do desmatamento brasileiro no ano de 2019 aconteceu no cerrado (a savana de maior biodiversidade em todo o mundo) e, agora em 2020, o pantanal também está passando por uma crise muito grande com o número de queimadas triplicando nesse ano, ultrapassando os 7500 focos na terceira semana de agosto. Essa é a maior quantidade de focos dos últimos 14 anos, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e levou governos locais a declararem estado de emergência, tamanha a gravidade do que está acontecendo lá.
Quando se intensificam as queimadas no Brasil acontece muita especulação sobre a origem do fogo e também muitas denúncias internacionais. Quando essas denúncias foram maiores em 2019, o governo se defendeu inicialmente dizendo que os dados estavam errados. Bolsonaro em seguida fez pressão sobre o diretor do instituto governamental que registra e analisa os dados de queimadas e acabou demitindo-o quando ele não aceitou emitir um relatório subsequente negando as informações anteriores. O atual ocupante da cadeira presidencial no Brasil disse que a informação real estava em um relatório da NASA mas. meses depois, a própria NASA reconheceu que, na verdade, os dados do Brasil que estavam corretos. E mais: pela coragem e pela integridade o Dr. Ricardo Galvão, ex-presidente do INPE, ele foi eleito um dos cientistas do ano pela renomada revista internacional Nature.
Sem conseguir esconder os dados nem convencer as pessoas de que a floresta úmida estava pegando fogo espontaneamente, Bolsonaro mudou de versão para acusar as ONG´s, os povos indígenas e até o Leonardo DiCaprio de cometerem as queimadas para fragilizar o governo internacionalmente. Todo esse esforço midiático buscava ocultar que a queimadas, de fato, são parte do cotidiano do agronegócio e parte de seu modelo de negócio no Sul Global.
Como estratégia de landgrab o agronegócio avança sobre territórios indígenas, parques nacionais, unidades de conservação e outros territórios utilizando a técnica chamada por eles de “correntão”, que é uma imensa corrente conectada a dois bulldozers que vai derrubando todas as árvores em seu caminho. Após derrubada a floresta, é comercializada ilegalmente a madeira mais valiosa e o restante é deixado para secar por 3 a 4 meses, quando é então queimada para reduzir a matéria e o solo tornar-se propício para a pecuária, uma etapa transitória até que o terreno esteja preparado para receber a monocultura de, na maioria dos casos, soja transgênica para exportação enquanto commodity. Muitas vezes o fogo avança também sobre a floresta nativa, destruindo aquele ecossistema permanentemente, levando-o a um processo de savanização.
Ao mesmo tempo que é necessário desmentir a versão de que os incêndios seriam espontâneos ou que não seriam parte do modelo destruidor do agronegócio, também é necessário fazer uma reflexão mais detalhada a respeito da responsabilidade maior sobre esses incêndios. Afinal, o Brasil, país do Sul Global em um capitalismo dependente é quem dá a última palavra sobre sobre seu papel na divisão internacional do trabalho? É necessário considerar que é o centro do capitalismo quem mais se beneficia dessa situação.
Um artigo publicado na revista Science demonstrou que 20% da soja e 17% da carne importada pela União Europeia do Brasil tem origem em áreas desmatadas. O mesmo se pode dizer com a madeira e até com as riquezas obtidas por esse modelo considerando a concentração do mercado do agronegócio nas transnacionais do veneno, das sementes transgênicas, na indústria do maquinário, na logística, transporte e comercialização de commodities e em toda a engenharia financeira especulativa por trás desse modelo. Considerando todas as faces do agronegócio, pode-se dizer que ele é destruidor ambientalmente, injusto socialmente e, caso fossem consideradas todas as externalidades terríveis que gera e todos os subsídios governamentais que recebe, seria também evidenciado que é deficitário economicamente (a série de vídeos no canal Bem Vivendo** busca demonstrar exatamente isso).
Enquanto o Brasil vai ladeira abaixo nas suas relações de exploração, opressões e destruição da Natureza, a floresta vai perdendo o seu papel fundamental para a vida na Terra e para as futuras gerações. Em 2018 o IPCC publicou um relatório sobre o papel das florestas na regulação do clima no mundo, demonstrando que as florestas captam 25% do carbono que é jogado anualmente na atmosfera, além de toda a biodiversidade, o papel no ciclo da água por conta da evapotranspiração das folhas jogando umidade na atmosfera (no caso da Amazônia a quantidade de água transportada pelos ventos para o restante do continente ultrapassa o volume do próprio Rio Amazonas ao ponto que o fenômeno é chamado de “rios voadores”).
Além de perder o seu potencial regenerador do planeta, a derrubada e a queima das florestas emitem uma quantidade imensa de carbono. Uma vez que a floresta captura carbono, apenas na Amazônia existe carbono equivalente a 100 anos de emissões dos Estados Unidos. Outro problema grave é a pecuária de alta intensidade que ocupa o território desmatado e queimado e emite metano (28 vezes mais potente que o dióxido de carbono para o efeito estufa). Então, finalmente, após o gado avançar novamente floresta adentro, os fertilizantes industriais utilizados para permitir o monocultivo de soja emitem óxido nitroso (298 vezes mais potente que o CO2). Ao contrário da maioria dos países do mundo, o setor que mais emite carbono no Brasil não é a energia nem o transporte: é o agronegócio, que se não for parado pode, em nome do lucro a curto prazo, acabar com a possibilidade de vida em abundância para todas as futuras gerações.
É nosso dever ecossocialista e internacionalista resistir à destruição promovida pelo capitalismo e suas expressões no Brasil e em todo o Sul Global. Isso passa por uma defesa dedicada dos territórios e dos povos indígenas e outros povos tradicionais, que por 520 anos desde a invasão europeia dão sua vida em defesa da Natureza. Passa também por um enfrentamento ao andar de cima para construir mecanismos de Poder Popular e democracia direta que considerem a humanidade como parte da Natureza e nunca mais submetam o ecossistema ao sistema.
A Grande Transição que precisamos construir demandará investimento público, desmercantilizando a vida e o futuro, promovendo práticas ecológicas nas cidades, no campo e na floresta com educação ambiental verdadeira, que é aquela que nos mostra o senso de urgência de nossa missão histórica de acabar com toda forma de exploração, todas as opressões e a destruição do planeta. Tendo o ecossocialismo como nosso horizonte estratégico podemos fazer as Revoluções do século 21, transformar o sistema e construir uma sociedade do Bem Viver.
(Esse texto é uma versão em português do artigo do mesmo autor publicado em inglês na Global Ecosocialist Network no dia 11 de agosto de 2020)
** Série sobre o agronegócio no canal Bem Vivendo:
Episódio 1 – O AGRONEGÓCIO pode ser SUSTENTÁVEL? https://www.youtube.com/watch?v=n_Ihiu3FtCg
Episódio 2 – O AGRONEGÓCIO é moderno e JUSTO socialmente? https://www.youtube.com/watch?v=KGrWVF2-UvE
Episódio 3 – O AGRONEGÓCIO é mesmo o MOTOR da ECONOMIA? https://www.youtube.com/watch?v=gRSAsu-yn3A
Episódio 4 – O AGRONEGÓCIO faz parte de um projeto POLÍTICO? https://www.youtube.com/watch?v=4fnWnXWDnZk
Episódio 5 – (vai ao ar na próxima semana - 23 a 29 de agosto)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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