As Marias de Fortaleza
"O legado das Marias cearenses não é o de uma estátua fria e passiva, mas de mulheres em ação, moldando seu destino e o de todas as outras que virão depois"
Em algum lugar nas terras áridas da Palestina, há mais de dois mil anos, uma jovem chamada Maria tomou um lugar no imaginário da humanidade. No entanto, sua humanidade foi encoberta pelas camadas de simbolismo que lhe foram atribuídas: a mulher de carne e osso transformada em um ícone de submissão, sem a força de suas escolhas. Maria foi mais do que uma personagem passiva no plano divino. Ela desafiou o destino, aceitou o inaceitável e enfrentou o desconhecido — assim como tantas outras mulheres que, nas sombras, protagonizam suas próprias batalhas.
Séculos depois, nas terras áridas do Ceará, a figura de Maria Benigna emerge, outra jovem cujo legado se funde à devoção e à santidade. Aos 13 anos, Benigna foi brutalmente assassinada por um homem que tentou estuprá-la. Sua resistência à violência não evitou sua morte, mas sua história sobreviveu, tornando o sertão cearense um solo sagrado que abriga sua memória. Sua beatificação é um reconhecimento não apenas de sua pureza e fé, mas também da violência que ainda marca a vida de tantas mulheres. Tal como Maria, Benigna simboliza a resistência nas margens, ambas mulheres comuns que carregaram fardos incomuns.
Maria foi apropriada por aqueles que deformaram seu simbolismo em uma imagem de submissão passiva. Os católicos ultraconservadores, em seu desejo de consolidar o controle, desumanizam Maria, transformando-a em uma estátua sem vida, sem escolhas. Ela se torna distante, inatingível, uma figura perfeita demais para ser tocada pela mão humana. No outro extremo, os neopentecostais a odeiam fervorosamente. Não apenas pela devoção católica que ela inspira, mas pelo que Maria representa: uma mulher que, em silêncio, moldou destinos. Para eles, qualquer protagonismo feminino é uma ameaça. Em suas igrejas, o homem é o único Deus possível, e as mulheres ocupam sempre um segundo plano, coadjuvantes na narrativa masculina.
A canonização da Menina Benigna como mártir marcou o ano em que o Ceará passou a ter o dia 24 de outubro — data do brutal assassinato de Benigna — o Dia de Combate ao Feminicídio. Para aquelas que ousaram sobreviver — que cedem à violência para preservar suas vidas —, a dignidade não se perde, ela apenas assume outras formas, invisíveis, mas presentes. Cada mulher que sobrevive carrega consigo a coragem de continuar, apesar da brutalidade que tenta apagar sua força. Hoje, essa luta pela dignidade feminina continua viva na luta de Jade Romero, vice-governadora e secretária das Mulheres, que comanda uma cruzada para dar voz àquelas que sofrem em silêncio.
Enquanto o sertão cearense celebra o legado de Benigna e a história de Maria ressoa na devoção de milhões, um novo desafio se impõe sobre a luta pela dignidade das mulheres. Na capital do Ceará, o avanço contra a violência de gênero enfrenta uma ameaça: a ascensão de uma chapa política que dissemina desinformação e agendas conservadoras, minando os pequenos passos que o estado deu na proteção às mulheres. A aliança entre um evangélico neopentecostal e uma católica carismática representa mais do que uma simples coalizão política; reflete a tentativa de silenciar o protagonismo feminino e sabotar políticas de proteção.
André Fernandes, conhecido por minimizar o feminicídio e espalhar discursos misóginos, ao lado de Alcyvânia Pinheiro, que dissemina falsas alegações sobre o aborto, formam um eixo de retrocesso para os direitos das mulheres cearenses. Essa união ameaça desmanchar as conquistas alcançadas até agora, colocando em jogo o futuro de tantas vidas. Não se trata apenas de uma disputa política; está em jogo a dignidade e os direitos de todas as mulheres que dependem de políticas públicas reais para garantir sua segurança e autonomia.
Do outro lado do espectro político, a campanha de Evandro Leitão (PT) reúne os votos não-fascistas de Fortaleza, buscando consolidar uma frente progressista na cidade. Entre as figuras de destaque nessa coalizão estão Onélia Leite e Gabriella Aguiar. Onélia Leite, primeira-dama do estado, tem atravessado as portas de casas simples de Fortaleza, compartilhando café e cuscuz, mudando votos e construindo uma rede de proteção social que se opõe à indiferença brutal. Gabriella Aguiar, deputada estadual e candidata a vice-prefeita de Fortaleza, também desempenha um papel notável, mesmo enfrentando uma situação pessoal desafiadora: recém-parida há menos de 20 dias, ela continua participando ativamente da campanha, demonstrando a força mariana das mulheres.
Mesmo em um estado que frequentemente limita as mulheres a papéis de vices e primeiras-damas, elas têm demonstrado uma força e relevância política notáveis. Embora não ocupem o cargo máximo, Jade, Onélia e Gabriella contrapõem-se ao estilo misógino da chapa do Partido Liberal e relembram aquela Fortaleza comandada por mulheres fortes e de esquerda, como Maria Luiza Fontenelle e Luizianne Lins. Nesta luta outra Maria se soma: Maria da Penha, cujo nome se tornou símbolo da resistência contra a violência doméstica e que agora ajuda a combater o avanço fascista em nossa cidade. A onda vermelha traz esperança para essas Marias de Fortaleza, que não buscam veneração, mas sobrevivência. O legado das Marias cearenses não é o de uma estátua fria e passiva, mas de mulheres em ação, desenhando seu destino e o de todas as outras que virão depois.
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