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    Décio Lima

    Presidente do Sebrae Nacional

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    As migalhas do capitalismo

    Um sistema onde a fortuna dos 26 mais ricos equivale ao patrimônio dos 50% mais pobres do mundo é inviável. É preciso que o capitalismo seja reinventado de modo a repartir as "migalhas"

    As migalhas do capitalismo (Foto: Ubirajara Machado/MDS)

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    Muitos dos conceitos clássicos foram modificados com a chegada do que se convencionou chamar de Modernidade. Um deles é o de sociedade, o qual em sua origem latina dizia respeito à associação amistosa de seres humanos e que adquiriu um significado variado e distante do inicial. Por isso costumo usar, para me referir aos coletivos humanos, a expressão "vida humana associada".

    E, como essa vida humana associada é muito complexa e variada os cientistas sociais costumam criar modelos, tipos ideais, para tentar interpreta-la. Max Weber parece ter sido o pioneiro nesse modelo de análise.
    Assim é aceitável que se examine a condição humana associada em quatro dimensões: política (poder); econômica (ter), cultural (saber) e social que deveria ser a esfera do pertencimento, do compartilhamento, da solidariedade entre humanos.

    Aristóteles ao afirmar que os humanos são animais políticos por natureza e que a felicidade só seria alcançada no convívio na "polis", apontava a dimensão política como sendo a principal e as demais estariam como que incrustadas na tessitura coletiva e nenhuma delas seria um sistema auto regulado.

    Somente com o advento da Idade Moderna (Século XV) a economia (do grego "oikos nomos" – as normas da casa) tornou-se a dimensão reguladora dos indivíduos em associação e o Mercado com a sua "mão invisível", encarregado da satisfação das necessidades individuais, atendendo a "Lei da Oferta e da Procura", passou a gerir a vida humana associada.

    Em suma o "Mercado" passou a ser a nossa instituição central, possibilitando a acumulação de capital e a propriedade privada –nascia assim o Capitalismo e uma nova classe social a burguesia.

    A crença central era a de que buscando maximizar o seu benefício privado, cada pessoa estaria inconscientemente contribuindo para o bem-estar coletivo. Ao buscar o lucro, ou seja seguindo os valores desprezados pela sociedade feudal – ambição, avareza, ganância – um agente econômico estaria promovendo o desenvolvimento e o crescimento da riqueza do seu país.

    Muitos outros conceitos caros à humanidade foram modificados. Talvez o exemplo mais marcante foi denunciado por Marcuse, no momento em que ele apontou que a liberdade assumiu o significado de liberdade da economia.

    Esse novo "modelo" proporcionou marcante desenvolvimento econômico, científico e tecnológico e o sucesso inicial não permitia a percepção dos termos decrescentes do bem-estar humano e dos problemas ambientais que assolam o capitalismo e, portanto, não ensejavam o questionamento eficaz à validade do sistema.

    Hoje, contudo, a miséria humana e ambiental é gritante e inegável. A realidade deixa claro que é absolutamente inadiável uma "delimitação dos sistemas sociais" (usando uma expressão cunhado por Guerreiro Ramos).

    O capitalismo e as suas formas mais sutis como o neoliberalismo precisam ser reconstruídos para propiciar mais equidade, mais solidariedade, aceitando que ao menos as "migalhas" do desenvolvimento estejam ao alcance de todos e todas.

    Para o bem dos capitalistas é preciso que entendam que não existe economia sem as pessoas, sem povo, ou sem os "consumidores" (na linguagem característica e reducionista do mercado).

    Em suma, mesmo que sejam minimamente, com a disponibilização da "migalhas do capitalismo" para a maioria é possível construir um melhor, mais justo e humano. Em termos práticos já vivenciamos experiências positivas nesse sentido. ​

    O Brasil entre 2001 e 20014 foi um exemplo marcante (uLULAnte) de que é possível alcançar desenvolvimento econômico com um mínimo de justiça social; que é possível socializar a política, a cultura, o conhecimento; que é factível construir formas de propriedade privada com propriedade estatal, de cooperativas, e, sobretudo, de estabelecer mecanismos de regulação que possam direcionar o crescimento da economia para o benefício da maioria e ao mesmo tempo de respeitar os limites da natureza.

    Em resumo os governos populares no Brasil mostraram que mesmo num ambiente capitalista é possível gerar um mínimo de equidade – de extrair "migalhas do capitalismo". E não foi somente aqui. Uruguai, Bolívia, Alemanha, a maioria dos países nórdicos e a recente experiência portuguesa (com a sua geringonça) provaram, na prática, que é sim possível combinar princípios do capitalismo e do socialismo.

    Contudo, considerando que o ceticismo cartesiano prepondera, entendo que é preciso mostrar fatos e dados concretos para relembrar um Brasil que agora se esvai, que se perde, vítima do obscurantismo que se abateu sobre a nação nestes últimos anos.

    Informações disponibilizados pela BBC, pelo IBGE, pela ONU e muitos outras organizações, materializam a combinação de uma economia forte com uma ambiente socialmente responsável. Vou procurar sintetizar nas quatro dimensões anteriormente citadas. A saber:

    Dimensão Econômica - em 2002, o Brasil era a 13ª economia em termos de PIB em dólar (Banco Mundial e FMI), chegou a ser o 6º em 2011, ultrapassando a Grã-Bretanha;

    Dimensão Social (justiça social) - no índice de Desenvolvimento Humano da ONU (IDH) de 0,649 em 2000 chegou 0,755 indicando melhora significativa. Em relatório de 2015 a ONU registrou o Bolsa Família como modelo de programa social bem sucedido – "desde que o programa foi lançado, 5 milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza".

    Outro indicador, o coeficiente Gini (vai de 0 a 100, onde 0 representa total igualdade), nos cálculos do Banco Mundial, passou de 58,6, em 2002, para 52,9, em 2013 (último dado disponível). Em 2014, um relatório da ONU sobre o tema também registrou uma queda significativa da desigualdade no Brasil na última década, com o Gini passando, nos cálculos das Nações Unidas, de 54,2 para 45,9.

    Nessa época a ONU registrou que o aumento real do salário mínimo (80% entre 2003 e 2010), além de outros programas de transferência de renda como decisivos para a queda da desigualdade social.

    Aliás, os especialistas consultados pela BBC colocaram que o grande legado de 13 anos do PT foi no que se refere às políticas sociais.

    Dimensão cultural (educação) - entre 2003 e 2014 foram criadas 18 novas universidades federais e 173 campus universitários, praticamente duplicando o número de alunos, fato que mereceu comentário do Eurásia Group: "considero a expansão do acesso a educação como parte do legado social positivo (dos anos de governo do PT), embora certamente falte melhorar a questão da qualidade."

    ​O protagonismo desse período foi reforçado com a descoberta do pré-sal e sua participação efetiva nas BRICS. O mundo tinha os olhos voltados para o Brasil.​

    Entretanto a fixação de um certo estamento na visão ultrapassada da vida humana associada, aderente ao pensamento de que "o homem é o lobo homem" (Hobbes) e forte de tendência ao imperialismo de alguns dos países centrais, em conluio com uma elite equivocada e de mente colonizada, nos levaram a um retrocesso inimaginável que agora abarrota as manchetes com notícias desoladoras.

    Estão propondo reformas que negam até mesmo "as migalhas", propostas que deformam o convívio, principalmente nas áreas trabalhista e previdenciária, mas que também disseminam o ódio e o preconceito presentes na mente e na agenda daqueles que desconhecem que esse capitalismo não cabe mais, que está em seus estertores.

    A demonstração efetiva de que mesmo que somente as "migalhas" seja repartidas podem gerar uma revolução (no sentido de mudança rápida) ficou entranhado no DNA das gentes e mundo afora já começam movimentos de reação à barbárie da ganância. Povo na rua na França, no Brasil, a vitória socialista recente na Espanha, a Bolívia onde ocorre um projeto de transformação política, social e econômica, há 12 anos, são a prova de que os ventos da esperança estão a cada dia mais fortes.

    O ex-Presidente Lula dizia: "se, ao final de meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida." À época esta era a noção de "migalha" hoje é muito mais, segundo os "Titãs":

    A gente não quer só comida
    A gente quer comida, diversão e arte
    A gente quer saída para qualquer parte
    A gente não que só dinheiro
    A gente quer inteiro e não pela metade.

    Enfim, um sistema onde a fortuna dos 26 mais ricos equivale ao patrimônio dos 50% mais pobres do mundo é inviável. É preciso que o capitalismo seja reinventado de modo a repartir as "migalhas".

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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