Às vítimas da ditadura de 1964, o presente reparado! Por um futuro sem recalques
Edval Nunes da Silva Cajá, estudante e cientista social pela UFPE, preso e torturado pela Polícia Federal em 1978, está certo ao defender uma Comissão da Verdade da UFPE
.Sou grato ao prof. Flavio Brayner por várias gentilezas entre tantas, como nas apresentações dos meus livros que publiquei sobre a UFPE, na minha banca para prof. Titular que a conduziu com maestria e nas agradáveis conversas sociais de finais de semana. Sou leitor assíduo dos seus textos publicados no Jornal do Commercio, e sempre faço comentários, elogiando-os. Mas esse último incomodou-me bastante. Fiquei muitíssimo afetado.
A reflexão que pretendo desenvolver aqui não é apenas uma crítica a uma opinião manifestada no Jornal do Commercio (Aos vencedores, o passado!) pelo meu amigo e professor Flávio Brayner, mas uma crítica a uma concepção conservadora que ainda prevalece até hoje, sobretudo diante da ditadura e de seus representantes – apenas algumas passagens de seu texto terei que comentar. O luto ainda não foi realizado, apenas o jogamos para debaixo do tapete. É o que ele fez e o que fazem com ele. Apesar de aparentemente ser uma questão local e circunstancial, ela não o é, mas sim nacional e estrutural. As resistências nas universidades com as Comissões de Verdade pela reparação ao período ditatorial foram gritantes. Aqui na UFPE, nem começou e nem existe a Comissão, mas apareceram as “resistências” contra uma proposta de retirada do nome do auditório do Centro de Educação (CE) da UFPE, Carlos Maciel, interventor do Movimento de Cultura Popular (MCP) na ditadura de 1964, e do Conselho Estadual de Educação, um dos seus membros.
Alguns argumentos de Flávio já estavam circulando no CE e, provavelmente, deve circular em outras universidades: retirar o nome é um apagamento da história. Esse argumento no CE, num pequeno grupo, é recorrente. É o senso comum do conservadorismo. Esse argumento é tão improcedente que um professor propôs a seguinte alternativa: retirar o nome do interventor, escolher um novo nome para o auditório como expressão de um debate democrático e transparente e, ao lado do novo nome, acrescentar os dizeres: “Aqui jaz Carlos Maciel, interventor do MCP, que deu nome a esse auditório por muito tempo com a conivência de docentes antigos, inclusive do próprio Flávio” (a elaboração dessa mensagem é de minha sagacidade e não do professor). Nesse caso, ao proceder assim, a história não seria “apagada”.
Como disse anteriormente, é inconsistente afirmar que a retirada de um nome (uma homenagem), uma obra, um monumento estaria “apagando” a história. Um nome ou um monumento nunca foi “a” história, mas um fragmento discursivo hegemonizado e materializado em celebração. O conhecimento história implica, obrigatoriamente, interpretação. Por isso, a retirada de uma homenagem não é um “apagamento”, pois o nome (Carlo Maciel) não “é” a história – é muito limitado identificar a história com um simples nome. Carlos Maciel é a imposição de uma força político-ideológica que apagou (literalmente!) milhares de pessoas pela força da violência física.
Essa proposta de retirada do nome não é polêmica, nem pura divergência. Ela não é cognitiva no sentido de uma disputa de ideias. Ela é de “resistência”. Só resiste quem tem algo a defender. No caso exemplificado, é o instituído, a ordem, a tradição autoritária. Alguns docentes propuseram-me que eu elaborasse um texto, já que venho pesquisando a UFPE e a ditadura há alguns anos, de modo a ajudar no debate, uma vez que eu estava na posição de um “especialista” na área. Recusei essa proposta conservadora, pois sinaliza que o problema é intelectual, de especialistas. E não é. Ela é de ordem política e ideológica. É de escolha. É de valor. Transformar esse ponto em diletantismo intelectual é uma concepção política e de intelectualidade. Dito isso, o final do texto do prof. Flávio Brayner ilustra bem a sua escrita peculiar: transformar um tema público em uma escolha individual. Isso é política, e não estilo de escrita.
A posição da retirada do nome não diz respeito ao foro íntimo quando ele sugere “recuso-me a erigir minha própria vida sobre um cemitério”. Ele pode fazer isso com a sua imagem, enquanto estiver vivo ou delegar a alguém para cuidar de sua imagem. Mas não é essa a discussão. Os mortos e torturados da ditadura não tiveram essa “opção”. Esse tom sarcástico, de fato, manifesta sua expressão política, sem anunciá-la. Essa posição nada mais é do que uma escolha. Assim, sua aparente “neutralidade” se desfaz quando recorre à conjunção subordinativa adversativa: “tenho imenso respeito pelas vítimas..., mas, como disse Émile Cioran....”. Os linguístas já chamam a atenção de que, nesse recurso discursivo, o importante não é a primeira formulação, mas a que a sucede: no caso citado aqui, indiferente aos crimes da ditadura e suas vítimas, o que me interessa, diria ele, é que não quero “erigir minha vida sobre o cemitério”.
Ninguém retira uma homenagem para se “libertar”, mas para fazer justiça. O autor inverte os termos do debate: os ditadores serão “apagados” pelas vítimas do presente. Ora, foram as vítimas que foram apagadas literalmente. Essa posição política, sustentada por meu amigo Flávio Brayner e outros conservadores, defende a continuação do apagamento. Elas só passaram a existir e serem vistas com muita luta e um livro inaugural intitulado Brasil nunca mais, de Dom Paulo Evaristo Arns. A partir desse livro, tivemos conhecimento do massacre que vários brasileiros sofreram nos porões da ditadura. Os professores que ficam buscando subterfúgio com as palavras, minimizando a dor do Outro e a busca pela Justiça, têm que assumir que esse livro não deveria ter sido publicado, pois ele tenta “apagar” a imagem positiva da ditadura. A questão que se coloca neste caso é: quem está apagando quem? A realidade desses docentes é a sua própria imagem.
Ora, esse problema não tem relação direta com a perspectiva decolonial. O próprio autor reconhece que existe uma disputa das fundações, de uma das quais ele é um dos maiores defensores já expostos em vários textos: a da República – por sinal, racista: um ano após a proclamação da República, a capoeira foi proibida. Há inúmeros exemplos do racismo praticado pela República, inclusive durante a ditadura de 1964: monitorava as monografias que tratavam do racismo e perseguiam seus autores. A ditadura militar defendia a democracia racial de Gilberto Freyre. Bolsonaro defende a ditadura e sua tradição. Homenagear alguém é fundar possibilidades de significação. No caso aqui, retirar a homenagem é combater a tradição autoritária, machista, racista, misógina, etc. Além de uma luta, é um processo permanente do Eu com o Outro, pois não há um lugar de “libertação” a chegar.
A emergência da área de investigação decolonial surge na década de 1990, enquanto essa discussão já estava pautada desde as décadas de 1970 e 1980, nas Ciências Sociais. Logo, não procede querer intelectualizar esse tema fazendo referência ao domínio “decolonial”, insinuando que é contrário a essa perspectiva teórica. A Justiça de Transição, com outros nomes, mas com preocupações semelhantes, da qual ele desdenha, surge nessa época das ditaduras da América Latina. A nossa anistia política é um golpe dos militares com a conciliação dos civis. Tratar os militares como iguais às suas vítimas é uma afronta aos torturados e perseguidos pelos militares.
É secundária identificar a origem da reivindicação de retirada de nomes de homenageados dos colonizadores e de ditaduras, se decolonial, pós-colonial, moderna, etc., mas a minha/nossa relação com o passado e o presente deve ser em favor de uma posição explícita que não aceite a manutenção de um nome de um interventor da ditadura, de forma sarcástica. Defendê-la ou omiti-la é também uma forma de defesa, mas, repito: não há neutralidade.
Não existe intelectual neutro. Sempre falaremos de um lugar: de classe, de gênero e de etnicidade. Os seus textos revelam isso e professores em discussão sobre esse assunto manifestaram-se nessa perspectiva. O intelectual não vive nas nuvens com os deuses. Os intelectuais não manipulam as palavras livremente, expressando apenas seu conhecimento “puro”. Talvez, nessa escolha, esteja uma dimensão narcísica que o intelectual cria de si mesmo: está acima de todos e de tudo, podendo “livremente”, enquanto vários estão subjugados na escravidão, pensando e defendendo qualquer coisa por sua “natureza” “intelectual”. Contudo, como já disse, essa questão não é de ordem “intelectual”, porém política - de escolha! Somos responsáveis pela nossa escolha, pela nossa decisão. Como diz Johan Huizinga, na sua filosofia do Homo Ludens, sempre que nos for exigido agir, teremos que escolher uma ética, uma moral.
Prefiro citar Paul Ricœur, em vez do filósofo niilista que o querido Flávio referenciou, Cioran (afinal, em tantas medidas, o niilismo pode virar cinismo!), que elenca três dimensões ético-políticas sobre o “dever” da memória no seu livro A memória, a história, o esquecimento: 1) “fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não a si”; 2) a ideia de dívida implica a de herança, já que “somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam”; 3) “reparação à vítima” aos que estão endividados, pois “a vítima em questão aqui é a vítima outra, outra que não nós”.
Pelos estudantes mortos (na UFPE foram sete, até onde se sabe), torturados, desaparecidos e todas as vítimas dessa República sanguinária, escolho a retirada do nome do interventor do auditório e que se faça uma discussão coletiva, democrática e transparente com todos que compõem o Centro de Educação da UFPE (e, por que não, com a UFPE), tratando o passado com justiça pelo presente.
Por isso, Edval Nunes da Silva Cajá, estudante e cientista social pela UFPE, preso e torturado pela Polícia Federal em 1978, está certo ao defender uma Comissão da Verdade da UFPE.
Por uma Comissão da Verdade da UFPE.
Tortura nunca mais. Ditadura nunca mais.
Evson Malaquias de Moraes Santos
Prof. Titular do DAEPE/UFPE
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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