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    Marcelo Zero

    É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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    Asas cortadas

    Qual a relação dos EUA com um contrato feito pela Saab sueca com o governo brasileiro? Por que os EUA se intrometem num tema que envolve dois países soberanos?

    Embraer e Saab lançam linha de produção conjunta para caças Gripen no Brasil (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

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    Os EUA usam de temas aparentemente neutros e nobres para fazerem prevalecer seus interesses geopolíticos.

    Em geral, medidas e ações extremamente autoritárias e intrusivas, como sanções financeiras e econômicas, intervenções militares, mudanças de regime etc., são justificadas em nome da “promoção da democracia e dos direitos humanos”.

    No campo da competição geoeconômica, entretanto, há um tema que os EUA usam mais para defender seus interesses. Trata-se da corrupção.

    Em um cenário mundial de criminalização da política e dos sistemas de representação, essa vertente da luta geoeconômica internacional pode fazer um grande estrago, como o que aconteceu no Brasil, com a Lava Jato. O discurso populista contra a corrupção sempre faz muito sucesso.

    Sabedor desse potencial, recentes governos estadunidenses converteram a luta internacional contra a corrupção em um elemento central da nova política externa dos EUA. 

    Claro está que combater a evasão e os desvios fiscais propiciados por mecanismos vinculados aos denominados “paraísos fiscais” é algo positivo para todos os países.  

    Contudo, os EUA combatem, sobretudo, o que eles denominam de “corrupção estratégica”, isto é, aquela corrupção que seria promovida por governos supostamente “autoritários e corruptos”, como os China e da Rússia, com o objetivo de obterem maior influência econômica e política no mundo. 

    O combate a essa “corrupção estratégica” recai também sobre quaisquer países ou empresas que contrariem os interesses dos EUA.

    Isso não chega a ser propriamente uma novidade. A Alstom, ex-gigante francesa das áreas de energia e transporte foi forçada, devido a uma ação de corrupção promovida pela justiça dos EUA a vender seus ativos à General Electric, sua concorrente norte-americana, em 2014. O mesmo aconteceu com a Petrobras e com as grandes empresas de construção civil do Brasil.

    Agora, infelizmente, a ira do Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) recai sobre o acordo entre o Brasil e a Suécia para fabricação e venda do caça Gripen NG- (Gripen E e F), um equipamento estratégico para a renovação do poderio aéreo brasileiro e para o desenvolvimento de tecnologia nacional, no campo aeronáutico.

    Mas qual a relação que os EUA têm com um contrato feito pela Saab sueca com o governo brasileiro?  Por que os EUA se intrometem em um contrato bilateral que envolve dois países soberanos?

    É que a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte-americana que busca coibir que companhias (americanas ou estrangeiras) façam pagamentos a funcionários de governos em troca de vantagens a seus negócios, tem nítido caráter extraterritorial.

    De fato, para o Departamento de Justiça norte-americano (DOJ), os atos de corrupção investigados podem ter ocorrido em qualquer país, desde que a empresa mantenha vínculos, ainda que mínimos, com os EUA. Assim, enquadram-se nessa lei empresas que tenham ações em bolsas americanas, investimentos ou mesmo contas bancárias nos EUA.

    Ora, a Saab tem tudo isso. Portanto, está “sujeita” a essa lei e pode sofrer consequências de atos considerados “ilícitos” pelo DOJ. Afinal, essa lei é uma espécie de “Lava Jato Global”, atuando quase sempre a favor de interesses dos EUA.

    Claro está que há um dedo (ou muitos dedos) do “lavajatismo” nacional nisso tudo. A operação Zelotes, uma operação que questionou politicamente a lisura do contrato com a Saab, sem o menor resquício de provas ou evidências, e que foi arquivada em 2020, agora ressurge, como zumbi, em cemitério jurídico norte-americano.

    Independentemente da querela jurídica, as motivações geopolíticas e geoeconômicas da ação estão claras.

    Na concorrência pela compra dos caças, o então chamado Gripen NG derrotou o norte americano Superhornet (um F-18 da Boeing), além do francês Rafale, para desgosto do Departamento de Estado dos EUA. Afinal, foi uma compra bilionária, perdida pela indústria bélica dos EUA.

    A Saab pretende criar no Brasil uma plataforma de exportação global dos produtos de defesa e segurança feitos pela companhia. A intenção é tornar o país um centro de produção e venda de itens para outras nações, em parceria com a indústria local. Podem ser os próprios caças ou outros equipamentos da empresa. A associação sueco-brasileira poderia, portanto, competir com os EUA em outros mercados. 

    O novo Gripen, além de moderno e versátil, tem custo comparativamente baixo de aquisição e manutenção, constituindo-se, do ponto de vista técnico, em opção confiável e viável para países que querem renovar sua frota de caças, mas que não desejam gastar grandes fortunas com isso. 

    Ao contrário das empresas estadunidenses, a Saab enfatiza acordos de transferência de tecnologia e parcerias industriais com clientes de exportação, como é feito no caso brasileiro. O Gripen pode ser personalizado, conforme os requisitos do cliente. Os operadores também têm acesso ao código-fonte e documentação técnica do Gripen, permitindo que atualizações e novos equipamentos sejam facilmente integrados. Trata-se de um outro paradigma, mais cooperativo, de relação industrial e estratégica.

    A indústria bélica da Suécia, bastante independente, do ponto de vista tecnológico, evidencia grande dinamismo recente. O preço das ações da Saab disparou, mais que triplicando, desde fevereiro de 2022. Os pedidos explodiram. O fabricante sueco investiu € 150 milhões em sua capacidade de produção. Várias fábricas serão construídas na Suécia e no exterior, principalmente na Índia e no Brasil. Está se tornando uma concorrente de peso.

    A indústria aeronáutica militar brasileira, de um modo geral, também está incomodando os EUA. O revolucionário KC-390, cargueiro militar multimissão desenvolvido pela Embraer, compete com os Hércules e os Super Hércules da Lockheed, um projeto originário da década de 50 do século passado, que vem sendo requentado há décadas. A possibilidade do KC-390 ser comprado por países como Índia (até 80 aeronaves) e a Arábia Saudita, além das vendas já realizadas para países da OTAN, evidentemente não é do agrado dos EUA.

    A fusão entre a Boeing e a Embraer não saiu, por desistência de última hora da primeira empresa. Agora, a Embraer está processando a Boeing por danos comerciais.

    Entende-se, portanto, o contexto dessa ofensiva dos EUA contra a Saab e o Brasil.

    Não obstante, mesmo sem o concurso dessa lei extraterritorial contra a “corrupção”, os EUA têm o poder de obstaculizar o contrato entre a Saab e o Brasil.

    Qualquer exportação de tecnologia militar norte-americana pode ser vetada pelo governo os EUA, por motivos políticos idiossincráticos. Basta uma executive order e uma desculpa esfarrapada.

    Ora, o Gripen tem tecnologia estadunidense embarcada.

    Essa aeronave usa o motor GE F414G, derivado do General Electric F404-400 e fabricado “sob licença” pela Volvo Aero. Tal licença, entre outras, poderia ser revogada para os caças vendidos ou fabricados no Brasil. 

    No atual quadro da “nova guerra fria”, o Brasil, assim como o resto da América Latina, é visto como área de influência exclusiva dos EUA.  Não é conveniente, para os interesses dos EUA, que o Brasil se converta em uma potência militar regional de relevo, capaz de concorrer, com parcerias como a da Saab, com a indústria bélica estadunidense, em algumas áreas.

    A política externa brasileira, independente e universalista, que recusa os ditames da “nova guerra fria” e aponta para um mundo multipolar e mais simétrico, tem pontos de divergência com os EUA e aliados, como no caso da Ucrânia e Oriente Médio. 

    Os EUA vêm o mundo essencialmente como um jogo de “soma zero”. Para que eles ganhem, é necessário que outros percam. Seu fortalecimento depende do enfraquecimento de terceiros. Apenas parceiros muito próximos, como Israel, escapam dessa lógica excludente e belicosa. Ainda estão nos tempos do unilateralismo inconteste do início deste século. Não percebem ou não aceitam o novo mundo multipolar que está surgindo, de forma irreversível.

    A águia estadunidense quer voar sozinha.

    Quer cortar as asas de concorrentes, ainda que modestos.

    Não conseguirá.  

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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