Autofagia militante
"Direitos, afinal, são obstáculos para quem quer lucrar com o desespero"
Nos últimos tempos, dois mantras têm circulado no cotidiano brasileiro: "não vou me aposentar" e "o SUS não presta". À primeira vista, essas afirmações parecem simples expressões de frustração, mas carregam em si algo mais profundo: a negação da política e o esquecimento das conquistas históricas que marcaram gerações de trabalhadores. Ao aceitarmos essas ideias com resignação, ignoramos que a aposentadoria e a saúde pública são frutos de lutas sociais e políticas que garantiram direitos básicos. Transformamos, assim, direitos em ilusões e nos tornamos cúmplices de um discurso que esvazia a noção de coletivo em benefício de interesses privados.
A crença de que a aposentadoria é inalcançável faz parte de um projeto maior. Transformar o futuro em algo incerto é a chave para manter a população complacente no presente. Quando repetimos, quase como uma prece, que nunca vamos nos aposentar, retiramos a pressão sobre o sistema que deveria nos garantir dignidade na velhice. Ao invés de reivindicar o fortalecimento do regime solidário, que protegeu gerações, nos resignamos ao desmanche dele em nome de supostas "responsabilidades fiscais". No lugar disso, nos oferecem draconianos planos de previdência privada, inacessíveis para a maioria, enquanto propagam a ideia de que aposentadoria não é um direito, mas um privilégio reservado a poucos.
No caso da saúde pública, o cinismo atinge níveis ainda mais alarmantes. O SUS, uma das maiores conquistas sociais do Brasil, é atacado sem piedade. E por quem? Pelos mesmos que não teriam condições de pagar por um plano privado, mas que, por desinformação ou desencanto, compraram a narrativa de que o serviço público é sinônimo de incompetência. Mal sabem que a alternativa não é um sistema milagroso de eficiência, mas sim um mercado ávido por transformar doenças em lucro. Sem o SUS, a morte se tornará uma moeda de troca para aqueles que não puderem pagar por consultas ou medicamentos. E, como na previdência, essa retórica começa a moldar a crença de que saúde pública gratuita também é privilégio.
Ambos os discursos—o da aposentadoria como utopia e o do SUS como inimigo—são peças de um quebra-cabeça mais amplo: o desmonte do conceito de direitos como algo inalienável. Direitos, afinal, são obstáculos para quem quer lucrar com o desespero. Quando o pessimismo e a desinformação se transformam em cultura, fica mais fácil para as corporações de saúde e para os fundos de previdência privados apresentarem seus produtos como "soluções". É uma espécie de mágica perversa: o que deveria ser garantido a todos vira mercadoria para poucos, enquanto a própria população começa a repetir que direitos são luxos que o Brasil não pode pagar.
No fim, o que está em jogo é a escolha entre o coletivo e o individual. Entre um sistema que funciona, apesar de suas falhas, e a barbárie do lucro acima de tudo. Aqueles que negam a aposentadoria e o SUS hoje serão os mesmos que sentirão a falta de ambos amanhã, quando a velhice e a doença baterem à porta. Mas, até lá, os que lucram com esse estado de coisas estarão confortáveis, observando de longe como os direitos viram pó e o desespero vira mercado. E, ironicamente, tudo isso com a nossa conivência militante.
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