Bastilha e Borba Gato
"Parece que Safatle não conseguiu sacar nenhuma reflexão sobre os motivos da incapacidade de as revoluções baseadas na violência construírem formas democráticas depois do fim dos antigos regimes", escreve o professor de Ciência Política da UFMG Leonardo Avritzer
Por Leonardo Avritzer
(Publicado no site A Terra é Redonda)
No último final de semana, o Brasil assistiu a um ato que tem sido realizado em diversas partes do mundo: a destruição ou remoção de estátuas de personagens violadores de direitos ou símbolos das desigualdades. No nosso caso, foi ateado fogo à estátua de Borba Gato, um dos chamados “bandeirantes”.
Os bandeirantes, tal como mostrou recentemente Edison Veiga em um artigo para a BBC Brasil, são uma construção histórica paulista do final do século XIX. Fernão Dias, Borba Gato, Raposo Tavares, entre outros, não se chamavam de bandeirantes e eram considerados como sertanistas. O Instituto Histórico Geográfico, patrocinado por Dom Pedro II e sediado no Rio de Janeiro, os considerava uma espécie de bárbaros do sertão.
O principal responsável pela transformação dos sertanistas – ou, porque não dizer, dos bárbaros que detinham exércitos privados e escravizavam indígenas – foi Augusto Taunay, não apenas com a sua história dos bandeirantes. O culto aos bandeirantes foi posteriormente reforçado pela Revolução de 1932 e pelo monumento às bandeiras no Ibirapuera, como bem aponta Paulo César Garcez Marins em entrevista à BBC Brasil. Hoje sabemos que os bandeirantes são parte central da narrativa paulista, dando nome ao próprio palácio do governo e a diversas rodovias no estado.
Existe, de fato, uma questão da apropriação de símbolos e o questionamento daquilo que se procurou ressaltar nos bandeirantes. Esta é a raiz da recente polêmica sobre Borba Gato, com o episódio de queima da estátua localizada na Zona Sul paulistana. A estátua materializa o discurso oficial do desbravador que expressava o projeto político das elites do estado, que procurou ignorar os crimes dos bandeirantes – reconhecidos pelo Instituto Geográfico, órgão do Império, ainda no século XIX.
Não há dúvidas que cabe um questionamento a Borba Gato e aos bandeirantes. A pergunta é: qual a linguagem desse questionamento e se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa histórica.
Vladimir Safatle, em texto publicado em A Terra é Redonda, confunde uma questão com a outra ao afirmar o direito inalienável de derrubar estátuas. O autor compara o fogo na estátua de Borba Gato à derrubada da Bastilha e afirma: “Quando caiu, a Bastilha não era mais que um símbolo. Mas foi a queda do símbolo, foi um ato simbólico por excelência, que abriu toda uma época histórica. A modificação na estrutura simbólica é modificação nas condições de possibilidade de toda uma era histórica”.
Discordo de Safatle. A teoria política que ele usa é no mínimo pobre e, muito provavelmente, bastante equivocada. Mobilizo duas autoras da teoria política para discutir com Safatle: Hannah Arendt e Judith Butler.
Em seu clássico Da Revolução, Hannah Arendt critica a ideia de revolução em Marx, na qual Safatle se inspira para fazer o seu elogio da violência. Arendt mostra que existe na política uma diferença significativa entre destruir e construir, diferença essa que a revolução francesa não enfrentou adequadamente. O preço pago por isso foi alto. O argumento é simples.
Diz Hannah Arendt: “quando os homens da Revolução Francesa diziam que todo o poder reside no povo, eles entendiam por poder uma força natural cuja fonte e origem se situava fora do domínio político, uma força que, na sua própria violência tinha sido libertada pela revolução e varrido todas as instituições do antigo regime… Os homens da Revolução Francesa não sabendo distinguir entre violência e poder… abriram o domínio político a esta força pré-política e natural da multidão e foram varridos por ela tal como o Rei…” (Da Revolução, p. 179, Editora Moraes).
Acho o argumento de Arendt claro, a violência não é uma categoria da política e quanto mais a política a utiliza, mas problemas ela terá na construção de uma ordem democrática posterior. Assim, o impulso de destruir a estátua de Borba Gato não conduz àquilo que Safatle quer. Para ele, “destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador… Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá”. Ou seja, para Safatle, a forma violência que, tal como Arendt, considero não política, não faz nenhuma diferença no processo de construção de um novo país. Acho que faz sim e que alternativas devem ser buscadas.
Recentemente, a teórica política feminista Judith Butler publicou um livro chamado A força da não violência. No texto, Butler reelabora o argumento arendtiano. Ela diz: “Argumentar a favor da não violência requer que sejamos capazes de estabelecer uma diferença entre a violência e não violência”. No entanto, o mais importante para Butler é uma forma de reconhecimento de uma relação social que vai além do individualismo e expressa a capacidade de constituir novas relações. (The force of nonviolence, Verso, p. 9).
Assim, Butler parece estar procurando algo bastante diferente do defendido por Safatle, que é a tentativa de constituição de uma inter-relação ética entre indivíduos baseados em reclamos de reconhecimento da igualdade e da diversidade. Há uma diferença importante entre Butler e Arendt. A filósofa de Berkeley reconhece algo que ela denomina de “grievability” (reclamação de sofrimentos sofridos). Ou seja, a constituição de formas de igualdade implica em um acerto de contas com injustiças presentes e passadas.
É essa categoria que nos remete à discussão das estátuas de Borba Gato ou do general Lee, recentemente retirada em Nova Orleans, e de muitos indivíduos cujos nomes foram retirados de prédios, como foi o caso do ex-presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, que teve o seu nome retirado de um prédio na Universidade de Princeton da qual ele foi reitor. Judith Butler mostra que a “grievability” não pertence apenas àqueles contra os quais injustiças foram cometidas, mas pertence também aos vivos. São os vivos que estão reclamando a justiça para os injustiçados que já não estão entre nós.
Associar Butler e Hannah Arendt mostra um caminho que esta discussão pode trilhar. Trata-se sim de rever o passado e as injustiças do passado. Porém, revê-las deve necessariamente passar por categorias que não utilizam a violência porque o objetivo dessa revisão é a construção de uma ordem democrática e igualitária. Portanto, o ato de revisão e o ato de construção devem ser compatíveis e a violência não é compatível com a política democrática.
Vladimir Safatle não chega nem mesmo a tocar esse problema. Ele se situa em uma tradição que teve muito mais êxito em destruir regimes indesejáveis do que em construir regimes baseados na igualdade, na diversidade e na democracia. Parece que Safatle não conseguiu sacar nenhuma reflexão sobre os motivos da incapacidade de as revoluções baseadas na violência construírem formas democráticas depois do fim dos antigos regimes.
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