"Boca de cabelo"

Dizem que no barbeiro tem acesso a resenhas políticas, e hoje (30/06) foi o meu dia. Chego cedo e logo consigo um atendimento, escolhendo meu corte de cabelo. O profissional que me atende de forma bem-educada não perde tempo e já executa o seu trabalho, fecho meus olhos e penso como foi a semana e os fatos políticos.

Na cadeira ao lado começo ouvir uma resenha do dono do salão que corta o cabelo de um cliente. Já noto que os dois são admiradores de Bolsonaro:

"Esse julgamento do Bolsonaro é uma verdadeira armação, ele será cassado. Tudo armado" - começa Orlando, o dono do estabelecimento.

Com um jeito de fala bem característico dos antigos malandros cariocas, o cliente, um senhor de meia-idade concorda, se apresentando como bombeiro aposentado.

" Meu camarada, o Bolsonaro estava com a faca e o queijo na mão, deu mole. Armaram uma “casa de caboclo" para ele. O Brasil se transformou nessa pouca vergonha aí com esse ladrão do Lula tomando conta de tudo. Se bobear ele será reeleito em 2026, tá comprando geral com esse bolsa família" - analisa o bombeiro que pede para Orlando também aparar seu bigode fino. "Acerta isso aí que estou com uma boca de cabelo, e a mulherada não gosta.

Sigo de olhos fechados refletindo sobre a conversa ao meu lado. De repente sinto um beliscão na minha orelha esquerda, meu barbeiro deu mole com a tesoura e me pede desculpa. “Tudo bem, meu caro, pode prosseguir" - digo.

O papo ao lado agora é sobre censura, e Orlando puxa mais um tema. " Tá vendo aí o absurdo estão querendo fazer que é fechar a Jovem Pan? Isso virou uma ditadura, fechar uma rádio porque ela só fala a verdade, isso é uma ditadura comunista " - afirma o nosso barbeiro "politizado".

"Gente boa, eu outro dia fiquei horrorizado com duas novinhas se beijando na rua. Um casal normal, hetero, se fizer isso na praça é preso, agora duas mulheres não, tá tudo liberado. No meu tempo não tinha isso não. Homem era homem, e mulher era mulher. Quando vi o barato delas se beijando pensei em dar um esporro nelas, mas fiquei com medo de ir preso, pois hoje não podemos nem reclamar dessa sem vergonhice. Sou conservador mesmo, sou um cara de costumes e de família, não admito essa putaria" - externa o "Boca de Cabelo".

E o tema de 8 de janeiro, a invasão bolsonarista aos três poderes em Brasília é o tema da vez. " Veja só aquele Coronel da PM que está preso há seis meses, sem ninguém saber qual foi o crime dele. Ainda tem mais de 600 pessoas, de bem, presas, sem qualquer tipo de direitos humanos. Estão presas por lutarem contra o comunismo, contra essa falta de moral e promiscuidade. Ninguém prendeu o general do GSI que abriu a porta do Palácio do Planalto. Hora só entraram porque a porta estava aberta!" - justifica Orlando.

"Pois é, se tem porta aberta até eu entro. Porta aberta pra mim é convite, não é gente boa?" Me indaga 'Boca de Cabelo' ao perceber que eu estava ligado na conversa.

Eu logo de pronto respondo. " Meu camarada depende da porta aberta. Essa aqui do salão é tranquila, mas essa aí de Brasília que vocês estão falando foi uma tremenda furada. Tem gente que gosta de ser bucha de canhão. Então enquanto existir otário, terá sempre um malandro tirando onda, certo meu camarada?". Filosofei.

Neste momento adentra ao salão um rapaz magrinho, negro, aparentemente sob efeito de drogas que logo se senta na cadeira vazia “Pô, quero cortar meu cabelo e não tem nenhum profissional disponível? " cobra o homem.

" Espere aí que ele está chegando" responde Orlando.

O "Boca de Cabelo", que também é negro, olha para o rapaz e pergunta: " ô cidadão você por acaso tem dinheiro para cortar esse cabelo?" - se metendo na conversa.

Já pegando uma escova para cabelo afro na cabeça, o rapaz responde. "Ô tio, tá pensando que tô de bobeira? Olha aqui a minha carteira. Tenho dinheiro sim" - mostrando uma nota de R$ 50.

Nisso meu barbeiro pega um espelho e me mostra como ficou meu cabelo. Pago, levando e me vou, mas antes falo para o "Boca de Cabelo", "Nem tudo é o que parece ser, mas digo que você tem um bonito bigode, um abraço." - me despeço, deixando o bombeiro aposentado e bolsonarista com um olhar incrédulo.