Brasil entrou na Rota da Seda sem declarar que aderiu
De maneira hábil e paciente, Lula fortaleceu os laços com o maior aliado comercial do Brasil e, ao mesmo tempo, escapou de gerar desconforto com os EUA
Por Guilherme Paladino, correspondente do Brasil 247 em Beijing – No noticiário brasileiro, predominam manchetes destacando os 37 acordos firmados entre Brasil e China na reunião de ontem (20) entre os presidentes Lula (PT) e Xi Jinping, mas sempre com uma ressalva: "sem uma adesão brasileira à Nova Rota da Seda".
Na versão meramente oficial e protocolar da história, tal ressalva é correta. De fato, o Brasil não assinou o Memorando de Entendimento necessário para que um país seja membro da Iniciativa Cinturão e Rota, o mais ambicioso projeto internacional lançado por Xi em seu mandato [sobre o qual você pode entender mais clicando aqui].
No entanto, ao analisar a lista de todos os acordos firmados no Palácio da Alvorada na tarde desta quarta-feira, chama a atenção o de número 2 - que só não estava no topo porque deu espaço à declaração conjunta entre os líderes dos dois países. Tal acordo se trata do "Plano de Cooperação para o estabelecimento de sinergias entre o Programa de Aceleração do Crescimento, o Plano Nova Indústria Brasil, o Plano de Transformação Ecológica, o Programa Rotas da Integração Sul-americana, e a Iniciativa Cinturão e Rota".
Acordo Brasil-China x Memorando de Entendimento do Cinturão e Rota
A princípio, já se nota que a Iniciativa do Cinturão e Rota (a Nova Rota da Seda) é explicitamente mencionada no título do referido acordo. Contudo, indo para além do título, o teor de seu conteúdo também impressiona pela semelhança com o teor do Memorando de Entendimento para a adesão ao Cinturão e Rota.
Por exemplo, o documento de adesão do Equador à Nova Rota da Seda diz que as partes são "guiadas pelos princípios de ampla consulta, contribuição conjunta e benefícios compartilhados" e "respeitarão os interesses fundamentais e as principais preocupações mútuas, aprofundarão a confiança mútua e a cooperação para o desenvolvimento comum e a prosperidade".
Já no documento assinado entre Brasil e China ontem, afirma-se que "os projetos a serem desenvolvidos serão definidos com base nos princípios de contribuições conjuntas e benefícios compartilhados" [...]" Além disso, também "identificarão projetos de interesse comum respeitando as necessidades e as particularidades de cada Parte".
Indo ao ponto principal, note o seguinte parágrafo do novo acordo Brasil-China:
"As Partes priorizarão o estabelecimento de sinergias entre suas estratégias nacionais de desenvolvimento em torno de cinco eixos principais: i) cooperação financeira; ii) ampliação da infraestrutura, a partir de projetos indutores do desenvolvimento; iii) desenvolvimento de cadeias produtivas, especialmente de alta tecnologia em setores como inteligência artificial, energia, saúde pública, digital, aviação civil e aeroespacial; iv) transformação ecológica, com destaque para os setores de energia, veículos, descarbonização e resiliência ambiental; e v) cooperação para transferência tecnológica e desenvolvimento de tecnologias estratégicas, promovendo a inovação".
É possível notar paralelos com o Memorando do Cinturão e Rota em quase todos os tópicos acima mencionados. Por exemplo, conceitualmente a Nova Rota da Seda é definida por meio das "cinco conectividades". Duas delas são: "conectividade de infraestrutura" e "conectividade financeira". O Memorando também diz, textualmente, que a Nova Rota da Seda tem o "objetivo de impulsionar o intercâmbio de bens, tecnologia, capital e pessoal, além do aprendizado mútuo com os países que compartilham o desejo de construir conjuntamente o Cinturão e Rota. A iniciativa busca promover o desenvolvimento coordenado e o progresso comum nos âmbitos econômico, social, ambiental e cultural (...)".
Ambos os documentos, inclusive, não estipulam sanções caso um dos países deseje encerrar o vínculo antecipadamente e possuem caráter quase simbólico, apenas registrando em um papel as intenções dos países em cooperar em diferentes áreas nos anos subsequentes.
Ajustes prévios à visita de Xi ao Brasil
Analisando os eventos anteriores à reunião entre Xi e Lula, é possível interpretar que a "adesão informal" do Brasil à iniciativa chinesa já havia sido acordada entre as partes. Vale lembrar que, há pouco mais de um mês, no dia 13 de outubro, uma delegação brasileira chefiada pelo ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, viajou a Pequim para "discutir os acordos que seriam fechados" na visita do líder chinês ao Brasil.
De acordo com a Folha de S. Paulo, o objetivo do governo brasileiro com a missão em Pequim era "ter algo concreto a ser anunciado", no âmbito da Nova Rota da Seda.
Um mês depois, ao chegar ao Brasil após deixar o Peru - onde participou da cúpula da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) -, o presidente Xi publicou um artigo nos veículos da imprensa brasileira no qual, em uma espécie de prenúncio, afirmou: "vamos promover continuamente o reforço das sinergias entre a Iniciativa Cinturão e Rota e as estratégias de desenvolvimento do Brasil".
Juntando todas as pistas, fica claro que todos os passos do dia de ontem já haviam sido ensaiados, de maneira conjunta, entre os dois países por muito tempo antes do evento principal. Assim, não há surpresa ou desapontamento pelo lado chinês com o fato de o Brasil não ter assinado o Memorando específico do Cinturão e Rota; muito pelo contrário: na verdade, os chineses deixam Brasília com algo até mais significativo.
O patamar da relação com o Brasil foi elevado oficialmente pela terceira vez, chegando agora ao nível de "Parceria Estratégica Global - Comunidade de Futuro Compartilhado, por um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”, um nível que nenhum outro país da América tem. Ademais, o documento assinado pelo presidente Lula permanecerá válido por um período de 10 anos, enquanto o Memorando de adesão ao Cinturão e Rota tem validade de apenas cinco anos.
E não são só os chineses que saem satisfeitos. Ganha também o Brasil: de maneira hábil e paciente, Lula fortaleceu de maneira histórica os laços com o maior aliado comercial de seu país e, ao mesmo tempo, escapou de gerar desconforto com os Estados Unidos, algo que poderia acontecer se a mídia estivesse propagando aos quatro ventos uma concretização da famigerada adesão à Nova Rota da Seda.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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