Brasileiro não pode ser premiado
O Brasil é, objetivamente falando, um país-continente – em termos territoriais, demográficos e econômicos. Para ser realmente uma grande nação, falta-nos, entretanto, o sentimento subjetivo da grandeza
Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Nelson Rodrigues já dizia que o brasileiro é um pobre e indefeso ser, um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. O brasileiro ostenta tranquilidade, gosta de celebrar, cultiva a alegria. É a sua superfície. Mas essa superfície festiva mal esconde um lado triste, sombrio, soturno. Eis a verdade: o brasileiro carrega na carne e na alma séculos de decepções e humilhações. O povo, enraizado na escravidão; a elite, enraizada na subserviência colonial.
Portanto, nada mais inverossímil, ninguém mais canhestro do que um brasileiro premiado ou homenageado. O americano ou o europeu recebe uma homenagem com fleuma e até relativo tédio. Tédio, no mínimo. Às vezes, até esnoba a premiação. Jean Paul Sartre deu-se ao luxo de recusar o Prêmio Nobel de Literatura. A Rainha Vitória, em protesto contra o tráfico negreiro clandestino, recusou a Grã-Cruz do Cruzeiro, a condecoração máxima que lhe fora concedida por D. Pedro II. Rejeitou a medalha subdesenvolvida e ainda adotou ares de imensa superioridade moral. D. Pedro, coitado, eurocêntrico como era, sentiu o golpe.
Dei toda essa volta para falar um pouco do meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. O título, reconheço, sugere obra de ficção, pura e irresponsável ficção. Afinal, este país que não cabe supostamente no quintal de ninguém, elegeu paradoxalmente um presidente que cabe no quintal de qualquer um. Esse paradoxo mirabolante explica talvez o sucesso que teve o livro. Dos que publiquei é o mais vendido e já caminha para uma segunda edição, ampliada e atualizada. O Brasil está no seu nadir – e o brasileiro, de brios feridos, gosta de ser lembrado da grandeza natural da sua pátria. Eu, como idiota da objetividade, tenho proclamado insistentemente os fatos incontestáveis em que se apoia a nossa grandeza natural.
O Brasil é, objetivamente falando, um país-continente – em termos territoriais, demográficos e econômicos. Junto com apenas quatro outros países – Estados Unidos, Rússia, China e Índia – o Brasil integra as listas das dez maiores nações em termos de área, população e PIB. Não é fácil integrar esse pequeno grupo. A Alemanha ou a França, por exemplo, estão entre as dez maiores economias, mas não entre os dez maiores territórios ou populações. O Canadá e a Austrália estão entre os dez maiores em extensão geográfica, mas não fazem parte do grupo de dez maiores PIBs e populações. O Brasil, em suma, é um gigante. Fato, não argumento.
Veja bem, leitor, eu disse “objetivamente falando”. Para ser realmente uma grande nação, falta-nos, entretanto, o sentimento subjetivo da grandeza. E é esse ingrediente subjetivo que potencializa e energiza os fatores objetivos. É ele que transforma os dados brutos em realidade elaborada. Sem ele, a realidade é uma massa amorfa e inerte. O brasileiro não só não tem esse sentimento, como sofre, ao contrário, de nanomania, da mania de ser pequeno, como notou Celso Amorim. Toda vez que o Brasil levanta a cabeça, aparece, barulhenta, uma multidão de brasileiros a denunciar a nossa suposta mania de grandeza. Ora, ora, não temos nem o sentimento quanto mais a mania de grandeza. A nanomania é a nossa desgraça. E por isso mesmo a grandeza brasileira, subjetivamente frágil, apenas “objetiva”, precisa ser proclamada de cinco em cinco minutos.
O brasileiro deveria, na verdade, passar por toda uma educação que revalorize o país, sua cultura, seu povo, suas peculiaridades e sua diversidade. Uma educação sentimental, um gigantesco esforço para ensinar-nos o amor-próprio – requisito indispensável para o desenvolvimento humano, tanto individual quanto coletivo. E um esforço que nos transmita, também, as qualidades que precisamos adquirir para entrar plenamente no século 21 – inclusão social, distribuição de renda e riqueza, respeito ao meio ambiente, aos direitos humanos e aos elementos básicos do Estado democrático de direito.
Não quero ficar aqui fazendo homenagens triviais a valores que deveriam ser evidentes por si mesmos, que deveriam dispensar explicações. Mas, não. Tudo, tudo precisa ser repisado, ensinado e re-ensinado, pois nada é invulnerável ao tempo. Nem mesmo nas democracias mais maduras, muitas das quais têm sofrido, a olhos vistos, os efeitos corrosivos do tempo histórico. Figuras folclóricas como Donald Trump e Boris Johnson não teriam chegado à liderança de seus países se essa corrosão não fosse uma realidade.
Mas volto a “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Nem sabia, mas o livro foi inscrito pela editora LeYa no Prêmio Jabuti, o principal prêmio literário brasileiro. Um dia, recebo a notícia de que ele entrou para o rol dos finalistas. Vibrei. Algumas semanas depois, chega outra notícia: o livro passou para a etapa final, ficando entre os cinco finalistas da categoria de ciências sociais. A alegria foi ainda maior, e fiz questão de compartilhá-la com familiares, amigos e conhecidos, valendo-me das redes sociais. A recepção foi encorajadora.
Na quinta-feira da semana passada, tivemos a cerimônia de premiação. O vencedor na categoria ciências sociais foi uma coletânea de ensaios sobre os 130 anos da República. Nada menos que 38 autores, entre os quais três membros da Academia. Como concorrer, solitária e individualmente, com uma obra escrita a 76 mãos?
Mas, enfim, não quero dar uma de despeitado. Estou contente com a condição de finalista de tão importante prêmio. Declaro, sem falsa modéstia, que já me sinto bem contemplado. Nem sei se merecia tanto.
E, no entanto, leitor, a verdade bem brasileira é que acordei no dia seguinte da premiação tão desamparado, tão órfão do Jabuti. Pensei, por outro lado, que no dia em que um livro como o meu for premiado e consagrado será um sinal pequeno, mas seguro de que o país está mudando e superando suas humilhações seculares. Afinal, o que é o “Brasil não cabe no quintal de ninguém” senão um ensaio de 440 páginas a favor do país e da sua grandeza e contra nosso arraigado complexo de vira-lata e suas variantes.
Quanto ao prêmio em si, declaro, solene e de peito estufado: brasileiro não pode ser premiado. Nunca e jamais! Premiar um brasileiro chega a ser uma desumanidade. Se o livro tivesse sido declarado vencedor, eu teria dado arrancos triunfais de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues. E terminaria na tenda de oxigênio do hospital mais à mão.
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Versão ampliada e atualizada de artigo publicado na revista “Carta Capital” em 27 de novembro de 2020.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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