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    Myrlla Muniz

    Cantora, compositora e professora de canto popular, membro da Academia de Letras e Música do Brasil na cadeira de Dominguinhos, mestra em Musicologia e doutoranda em Literatura pela UnB. https://youtube.com/@MyrllaMuniz

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    Brasília, capital do silêncio

    Não é um elogio. A cidade já foi a capital do rock, que revelou Renato Russo e Cássia Eller, mas hoje o governo local menospreza seus artistas

    Teatro Nacional de Brasília, fechado há mais de dez anos (Foto: Divulgação/Secec-DF)

    A cada data importante referente à Brasília, acordamos bombardeados com a publicidade ufanista que a coloca como a capital da cultura e das artes. Vivemos na cidade mais moderna, patrimônio da humanidade. Temos a melhor qualidade de vida do país e, pasmem, vivemos em um mar de tranqüilidade, cercado de misérias por todos os lados. Uma pergunta se impõe:  por que vivemos este ufanismo desmedido? Vejam a festa de comemoração do aniversário da cidade. Quem aguenta este show brega?

    Quem paga estes milhões de reais pela apresentação destas duplas sertanejas geradas pela indústria cultural? Nós, realmente, merecemos isto? É isto que nos faz a capital da cultura? Afinal, breguice também é cultura? O povo só gosta mesmo do que é ruim e caro, do que pulula nos caldeirões dos Hucks,  dos Mions, dos Sílvios Santos, dos Rauls Gil? Só é bom para esta cidade o que os empresários do entretenimento impõem a preço de ouro? Não tem valores artísticos esta terra? Onde estão os seus cantores e cantoras, os seus músicos e os seus compositores? Não tem cultura popular esta cidade? Onde estão os seus violeiros, as suas duplas caipiras, as suas folias, as suas curraleiras? Brasília não representa o encontro de todos os brasis? Então, onde estão as manifestações mais belas e mais profundas das culturas populares deste país?

    Ufa! Enquanto se arrastam nas programações oficiais os shows de futilidades para inebriar o "grande público" da periferia, como forma de consolá-lo pela exclusão e pelas misérias, os artistas de Brasília, ou que escolheram Brasília como sua cidade, amargam uma triste realidade. Para estes artistas nunca há vagas nos grandes shows feitos com o dinheiro público. Por que então tanto falso elogio com uma cidade que nos exclui? Onde estão as políticas públicas? Onde está a Secretaria de Cultura? O que fazem com tantos milhões? Apenas shows de qualidade duvidosa para servir de publicidade e enganar o povo? Por que não fazer a mesma publicidade da orquestra Sinfônica ou dos cursos internacionais da Escola de Música de Brasília?

    Para não faltar com a verdade, em uma terra onde a mentira e o engodo político parecem ser a tônica dominante, esclareço que uma banda da cidade foi convidada para tocar no show de aniversário de Brasília. Qual o cachê? De graça e dando graças a Deus pela oportunidade de "aparecer" e divulgar o seu trabalho.

    Se, por um lado, temos o Fundo de Apoio à Cultura, que nos permite realizar alguns trabalhos, a realidade é que não nos divulgar em shows públicos é como nos lançar no lago Paranoá, é como nos condenar à não-existência. Por que estes artistas não são convidados a lançarem seus trabalhos nos shows públicos financiados pela Secretaria de Cultura? 

    Enquanto isto, no Ceará, no Piauí, na Bahia, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Alagoas, no sul do país, em qualquer outro estado, às vezes mais pobres do que Brasília, existem políticas públicas para músicos locais. Por lei, são incluídos na programação, para fazerem a abertura de shows com artistas de repercussão nacional. Por que só Brasília tem que assistir a este show de desvalorização dos seus artistas?

    Nem tudo está perdido, diria o otimista crônico. Afinal, resta para os músicos, compositores e cantores locais a possibilidade de tocar nos bares à noite, a troco de algumas moedas. Até mesmo este difícil, mal pago e degradante mercado está correndo risco, com a lei do “silêncio”, que cala os artistas mesmo em locais sem vizinhança, como o Eixão do Lazer, que foi proibido, voltou, mas ainda corre risco. 

    A solução seria usar mais os espaços como o palco da Ermida Dom Bosco, o Parque da Cidade e o Setor de Diversões. Já houve vida cultural intensa nesses locais, mas os atuais governantes parecem querer negar o que foi planejado pelos fundadores da cidade. O que explica o Teatro Nacional estar fechado há tantos anos?

    Onde os artistas da cidade irão cantar? Como sobreviverão? Pedindo esmolas na Feira do Guará ou em frente à Secretaria de Cultura? Quem são as pessoas que trabalham nestes órgãos de cultura? O que sabem eles da excelência da arte que os artistas brasilienses produzem? Eles nem sequer nos conhecem, apesar de, constantemente, enviarmos currículos, e nos inscrevermos a cada nova administração. 

    Irão nos convencer de que não temos talento suficiente para nos apresentar ao público local? Se realizamos shows em outros estados, por que não aqui? Se somos aplaudidos quando, com redobrados esforços, realizamos os nossos shows nestas cidades, e muitas vezes até no exterior, por acaso, são falsos os aplausos que recebemos? Por que então nos negam palco em nossa própria terra? 

    Onde estão as entidades que nos representam? Por que não brigam por nossos interesses? Por que não denunciam esta negação artística pela Secretaria de Cultura nos jornais da cidade? Estamos fazendo história quando nos omitimos e deixamos de questionar este descaso? O que é esta omissão? Covardia? Medo de sermos retaliados por "brigar com o poder"? Acaso, não vivemos em uma democracia, em um estado de direito? Não somos cidadãos do Distrito Federal? Não pagamos os nossos impostos? 

    Ora, retaliados já somos, não existindo enquanto artistas nos eventos governamentais que deveriam ser do povo, pelo povo e para o povo. 

    Quem diz que o povo só gosta do brega e de coisa ruim mente. "Biscoito fino para o povo", já berravam os manifestos modernistas, no século passado. Onde estão o "Projeto Arte por toda parte ", “Temporadas Populares”, “Cabeças”, “Pixinguinha” e outros que, no passado, beneficiavam artistas locais. Não eram perfeitos, mas davam voz e vez a quem também merece.

    Pensei muito antes de decidir tornar esta carta pública. Meus amigos, colegas de profissão e quadros da universidade, com quem convivo, já sabiam da minha posição, que exponho em fóruns de debate e em outros eventos acadêmicos.

    Penso que o Brasil 247, este espaço nobre do jornalismo brasileiro, é o veículo ideal para avançarmos neste debate. Brasília precisa valorizar seus artistas. Convido todos a colaborar com esse manifesto, comentando, compartilhando e dando sugestões. Enfim, se juntando nesta luta pela vida, pela arte e pela democracia. Digamos sim!

    O que poderá ocorrer com a sua divulgação? Talvez nada aconteça em uma terra onde as exceções fazem as regras. De qualquer forma, diante de mim mesma, não conviverei com a culpa de ter calado, de ter me omitido. 

    No Ceará, de onde vim com 23 anos de idade para estudar, costumava ver movimentos de artistas nos jornais "metendo o pau" no secretário de Cultura de plantão, por causa dos seus erros, e eles ficavam "pianinho" porque sabiam o peso desses manifestos.  

    Em 2024, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura autorizou a captação de mais de R$ 306 milhões para projetos culturais submetidos à Lei Rouanet. Como serão usados estes recursos? Terá o pessoal da música a mesma organização do pessoal de cinema e de outras áreas nas reivindicações de políticas públicas? Que tipos de projetos nós queremos? Pelo que lutamos? Brasília é capital de que mesmo? Capital da música brega financiada pelo Erário?

    Dando aulas na Escola de Música de Brasília, via os meus alunos, muitos deles com grande talento, sonharem com um mercado que não existe. Que tempos escuros são esses que estamos vivendo? A arte, essa necessidade premente, vital, parece sufocada pelo cimento concreto de uma modernidade tardia que sufoca nossa humanidade. Os dias vão se passando, naquele clima Planalto Central: "ame-o ou deixe-o", e todo mundo vive sonhando com as férias, para esquecer o vazio e o tédio. O que podemos fazer? Alguém tem uma idéia? Vamos nos mobilizar! Músicos de Brasília, onde estão? 

    Algum jornal terá coragem de fazer uma grande reportagem tornando públicas as nossas reivindicações e as nossas angústias? Interessa à imprensa a arte que fazemos?

    Desculpem, mas não acho que Brasília está tratando bem os seus filhos e os que se fizeram filhos desta cidade construída por braços, corações e mentes chegados de todas as regiões deste país continental. É sofrível a vida cultural nesta cidade. 

    A maior parte dos acontecimentos artísticos de relevo, em Brasília, acontece por iniciativas de outras instituições (com ingressos a preços moderados), ou mesmos empresas privadas, que cobram, na maioria das vezes, ingressos proibitivos para o povo e mesmo para a classe média. E a Secretaria de Cultura, o que promove mesmo?

    Só podemos falar de valorização da cultura e das artes, em Brasília, quando formos capazes de amar e valorizar as nossas próprias manifestações culturais e artísticas. Brasília pode sim ser a capital cultural deste país bonito chamado Brasil, mas isto só será possível quando tivermos uma nova mentalidade, uma nova compreensão, a generosidade de quem se abre para a celebração da vida e do encontro da diversidade. 

    A cultura não é apenas entretenimento e manipulação de consciências.

    Esta é a minha contribuição para o 1o. Fórum de Cantoras do Distrito Federal, que se realizará dia 11 de novembro, na Casa Thomas Jefferson. Que seja um espaço de reflexão e de busca de soluções efetivas. 

    Parabéns ao Instituto Caminhos Abertos (ICA), de Renata Jambeiro, que, em parceria com a ABÈBÈ, de Ester Braga, teve esta iniciativa.

    Temos que romper a espiral do silêncio.


    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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