Buenas ideias embaladas numa rede paraibana
É por isso que votar 13 é a maior expressão da consciência de classe. Apesar do ódio xenofóbico que joga brasileiros do sul e sudeste contra o nordeste
O domingo clareou agradável comigo embrulhado na rede nova de dormir que pendurei na varanda. A rede foi a realização de um sonho antigo. Não vou detalhar aqui toda a minha trajetória até poder estar aqui balançando na rede, apenas digo que a sensação é de finalmente estar no oásis depois de percorrer uma longa jornada no deserto.
A simpática ambulante que me vendeu o precioso artigo destacou sua qualidade e que procedia da Paraíba, terra conhecida pela fabricação de boas redes.
Aqui balançando preguiçosamente na minha rede paraibana, rememoro passagens que vivi nos últimos dias de eleição sobre essa dicotomia entre trabalhar e descansar. O nordeste é visto como a terra da vadiagem em contraponto com o sudeste e sul que supostamente “carregam nas costas” sua indolência. Essa visão de mundo hostiliza o descanso e o lazer como vadiagem ou vagabundagem.
O termo “vagabundo”, segundo especialistas da comunicação que analisam as redes sociais, é mais impactante que “genocida”, tanto que estes mesmos especialistas orientam os opositores ao atual mandatário da República a exaltarem sua vadiagem e não se deterem no fato de suas ações terem ocasionado a morte desnecessária de centenas de milhares de pessoas. Por incrível que pareça, milhões de pessoas se revoltam mais com um vagabundo do que com um genocida. Esse fato me é bastante intrigante.
O que significa essa ojeriza tão profunda a não trabalhar? Tirei da minha estante o livro de Jessé Souza sobre a classe média no espelho e de lá veio algumas pistas. Ele enriqueceu sua análise com entrevistas que trazem a trajetória de vida de personagens reais que compõem esse Brasil desafiador que vivemos. Por exemplo, um gerente paulista de uma rede de lojas de roupas femininas. Observe que ele não é o dono da rede de lojas, mas está num cargo de gerência. Não é o burguês, o empresário. Mas está num posto privilegiado e sonha um dia ser o patrão. É o perfeito oprimido que fala com a mente do opressor, como nos ensinou Paulo Freire.
O entrevistado em questão estava muito entusiasmado com a candidatura de Flávio Rocha para presidência da República. Para quem não o conhece, Flávio é dono das lojas Riachuelo.
À época da entrevista, o empresário anunciara sua candidatura. Há poucas semanas atrás, este mesmo senhor esteve com Lula num evento público com muitos empresários, que trataram o candidato como se presidente já fosse. Ou seja, o ídolo do nosso entrevistado já está negociando com o PT, mas nosso personagem destila todo o seu ressentimento contra o que ele enxerga como vagabundagem a ser combatida no país, tendo o PT como grande inimigo. Ele acreditava na candidatura de Flávio por achar que o mesmo poderia acabar com os privilégios dos funcionários públicos, por exemplo.
Como um funcionário público vai trabalhar bem se não puder ser demitido? Faz sentido a revolta do entrevistado contra a impossibilidade da demissão como instrumento de coação. Uma funcionária sua, que secretamente tem admiração pelo PT, revela o orgulho do gerente em demitir imediatamente todo o funcionário que descobre ser de esquerda. Que não sairá de seu bolso um tostão para financiar esquerdopata, ele fala.
Por que são vagabundos. Vagabundo, portanto, é o trabalhador coberto por direitos que impedem a pequena tirania que ele exerce diariamente com seus “colaboradores”. Se funcionários públicos pudessem ser demitidos, a CPI da COVID-19 não poderia descobrir irregularidades do governo na compra das vacinas, como as denunciadas pelo servidor concursado do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda, que alegou ter sofrido pressões atípicas para liberar recursos fora da previsão contratual a empresas. À época, o atual candidato a governador do RS apoiado por Bolsonaro Onyx Lorenzoni, era chefe da Casa Civil e foi a público ameaçar o servidor. Nem mesmo Ônix pôde demiti-lo. Mas é esse o desejo que está por trás dessa palavra “vagabundo”. Vagabundo é todo aquele que não se submete à tirania dos patrões e chefes e ainda tem a ousadia de ter momentos de lazer e descanso.
“O Brasil tem que dar um grande salto para frente agora, com todos os vagabundos e corruptos na cadeia, chegou a hora de fazer isso”, disse o gerente ao entrevistador Jessé Souza. A prisão de Lula foi o ápice da glória do ressentimento pela punição dos que se recusam a obedecer.
Lula falou que é candidato para que o trabalhador possa voltar a comer picanha e tomar cerveja na sua folga. Uma certa classe média que pensa como o gerente citado aqui define esse modesto desejo pela diversão na folga como vagabundagem, o suficiente para despertar um ódio tirânico herdado de nosso triste passado escravocrata.
Vivemos um país brutalizado. Boa parte dos que trabalham vivem jornadas diárias superiores a 12h, sem qualquer garantia de repouso remunerado, licença por saúde, nada disso. Essa brutalidade só é possível com uma ética brutal, a ética pelo trabalho dioturno, sem descanso ou possibilidade de qualquer prazer ou ócio. Para que isso funcione, o maior demônio que habita no inconsciente coletivo é o vagabundo.
O maior pecado possível é não trabalhar, mas mesmo assim milhões de brasileiros não tem um emprego porque simplesmente não existe emprego. E é justamente essa multidão de desempregados que pressiona aqueles que estão ocupados a trabalhar sem descansar e sem ter qualquer opinião que desagrade seus chefes.
É por isso que votar 13 no segundo turno é hoje a maior expressão da consciência de classe. É algo extraordinário. Apesar da ameaça de prisão, de demissão. Apesar do ódio xenofóbico que joga brasileiros do sul e sudeste contra brasileiros do nordeste.
Mesmo com todos esses obstáculos, o desejo de um país em que a maioria possa comer seu churrasquinho e dormir numa tarde de folga balançando na rede no conforto de sua casa sem ser xingado de vagabundo pode vencer. Falta pouco.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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