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    Donny Correia

    Um niilista de coração quente, é mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP, ensaísta e crítico de arte e cinema. É filiado à ABRACCINE E ABCA e autor de seis livros, entre poesia e ensaios. É criador do canal “Uma teia de ideias”, no Youtube.

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    O GABINETE DO DR. BOLSONARO, ou como destruir a cultura nacional mesmo sem saber o que é cultura

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    Hoje, vamos falar de um filme mal executado e montado com rara incompetência chamado Brasil. Descansem, não se trata da obra-prima de Terry Gilliam. Este a que me refiro é bem peculiar e seu enredo faz de O ritual dos sádicos, do mestre Mojica, um conto de fadas, em 2021.

    Mas, antes, cabe uma contextualização.

    Considerado inaugurador do horror psicológico no cinema clássico, O gabinete do Dr. Caligari, de 1920, é uma fábula doentia sobre um velho maluco, numa Alemanha do início do século passado, que apresenta uma espécie de show em feiras de variedades no qual exibe um sonâmbulo que desperta ao seu comando e obedece suas ordens sem distinguir o que é certo e o que é errado. Por isso, o Dr. Caligari acaba usando seu “mascote” para cometer crimes contra desafetos. Desmascarado por um rapaz cujo melhor amigo havia sido vítima do sonâmbulo, o velho já está pronto para ser encarcerado numa camisa de forças quando um plot twist revela ao espectador que, na verdade, Caligari é um diretor de hospício e o jovem que o havia desmascarado é o verdadeiro louco da história. Impotente, o rapaz é quem acaba encarcerado e, pior, sob os cuidados pessoais do velho. Uma pergunta não declarada paira ao final de O gabinete do Dr. Caligari: quem são, de fato, os loucos?Importante figura da Escola de Frankfurt, Siegfried Kracauer mergulhou em Caligari para redigir sua teoria sobre como o filme era uma alegoria de uma nação destroçada pela Guerra, adormecida e sob o controle mental de diversos grupos políticos em rota de choque, que implorava – no inconsciente coletivo – por um líder que guiaria a República de Weimar rumo ao progresso, mesmo que com mãos de ferro. Na conta dos estudos de Kracauer, entra, também, O gabinete das figuras de cera (1924), dirigido por Paul Leni, que reconta a vida de alguns déspotas da História a partir de suas estátuas que ilustram uma exposição. Estão lá Jack, o Estripador, Ivan, o Terrível e outros seres despóticos. De novo, o filósofo alemão aponta o subtexto niilista do filme, como uma antecipação do desejo alemão por eleger seu salvador, não importando sua origem ou pensamento.

    E este desejo foi atendido em janeiro de 1933, quando Adolf Hitler ascendeu ao poder, de maneira, digamos, mais ou menos democrática. O resto da História, conhecemos. O que poucos sabem é que, em sua obra literária, Mein Kampf, o emissário de Satanás na Terra ensina o leitor a exterminar a herança cultural do opositor não por meio da força bruta, mas por meio da bravata e da chacota. A ideia é desmerecer o oponente até que o alvo dos ataques acabe se autodestruindo por falta de ações afirmativas. Assim, o Estado estaria isento da má opinião pública e os inimigos terminariam por destruir uns aos outros, quase sem perceberem.

    Isto tudo soa bastante familiar, quando analisamos o trato dispensado a instituições como a Educação, a Arte e o Cinema no Brasil desde que os sonâmbulos foram às urnas, em 2018. Bolsonaro nunca escondeu o desejo de total extinção dos intelectuais, professores, artistas e cineastas, tudo aquilo que a ele lembra sua imbecilidade patente. Infelizmente, o que não faltaram foram lambedores de coturnos que se dispusessem a ajuda-lo na causa. Mas, há um problema. Muitos desses asseclas vieram justamente da classe que vêm ajudando a destruir. Como sabemos bem que num governo de matizes fascistas o poder pesa sua mão sobre os espaços que outrora geraram frustração pessoal nos donos da situação, é natural que tais agentes do bolsonarismo vissem a oportunidade de revanche. Vejamos as figuras de cera que já passaram por esta ceara.

    Roberto Alvim, cuja reputação no teatro o colocava em alta conta, mas que começou a dar sinais de destempero tão logo o presidente foi eleito, mostrou seus fetiches alucinatórios que misturam Wagner e Goebbels(!). Por isso, não vou nem comentar muito a respeito. Vou, apenas, lamentar por Wagner.

    Outro sobre quem não deveria comentar, mas vou, porque me afetou os planos de me tornar um funcionário público encostado: Abraham Weintraub, investigado, antes de fugir do país após sua saída do Ministério da Educação, assinou o congelamento dos concursos para docentes nas universidades públicas. O ex-ministro, analfabeto funcional, como seus posts bem revelaram, vinga-se do conhecimento que não conseguiu reter cuidando para que as gerações futuras também não o tenha acessível. Quando (des)administrava a pasta, era dado a vídeos engraçadinhos, como se o Ministério fosse um enorme Tik Tok com endereço no Planalto Central. Delírio.

    Depois de Alvim, veio Regina Duarte, que pareceu mais instável em seu psicológico do que já havia mostrado em outras ocasiões públicas que também envolviam a política. “Eu tenho medo do PT”, dizia ela anos atrás. Como visto, com a ascensão de Lula, as terras de Regina foram tomadas, sua individualidade tolhida, sua pensão foi revogada e a estatização das emissoras de TV aboliram as telenovelas cujas tramas se desenrolam na classe burguesa do Rio de Janeiro. Coisas que comunistas fazem. Eu também teria medo, cara Regina...

    Quando secretária, no auge de seus descaminhos e desatinos, cantou “Pra frente Brasil” durante uma entrevista, conclamando o povo a esquecerem as mazelas e alegrarem seus corações. Não sei se ela se lembrou que o título do hino do tricampeonato foi ironicamente empregado por Roberto Farias numa de suas tantas obras-primas, que versava justamente sobre os porões da ditadura. É de se pensar num quadro grave de demência. E, aqui, diferente do parágrafo anterior, não estou empregando o sarcasmo. Me refiro à demência como a anomalia neurológica degenerativa que, aos poucos, leva o enfermo à perda da conexão com a realidade e consigo próprio, até a completa cisão. Quando demitida, especulou-se que Bolsonaro a recompensaria com a Cinemateca Brasileira. Senti um leve tremor nos olhos e algum movimento involuntário no maxilar. Achei que estava sofrendo um derrame. Felizmente, Regina Duarte não herdou a Cinemateca. Felizmente?

    Até aqui, enquanto a postura canhestra, o linguajar de botequim e as piadas de banco de praça já estavam naturalizadas, tendo no dono da bola a maior representação de vulgaridade sem culpa, o absurdo parecia apenas a constatação do que já se sabia. O elogio da imbecilidade estava apenas seguindo seu curso.

    Eis que surge o pináculo da incompetência, Mario Frias. O homem que pediu emprego ao presidente, ao vivo, na CNN, depois de ver-se inepto a atuar, cantar e modelar. Talvez seu auge como artista tenha sido a participação no elenco da clássica Senhora do destino, quando interpretou um deputado corrupto...

    Recentemente, lemos na mídia que seu comportamento como funcionário pago com nossos impostos é reprovável, repleto de assédio moral e que o secretário costuma ir ao trabalho armado, já que possui porte para isto. Também repercutiu a maneira como Raul Millet, historiador e primo de Frias, o definiu: “Inculto, folgado e bajulador”. Em sua gestão, os tramites na Ancine pararam, as verbas foram congeladas e os projetos passaram a sofrer com um “crivo de qualidade” de valores bem subjetivos. Mas, não só para o futuro se volta a mira telescópica da destruição cultural. Também é preciso pôr fogo no passado. E o passado do cinema brasileiro – grande parte já perdida em incêndios e inundações – está depositado na Cinemateca Brasileira. A entidade que a administrava em contrato com o governo foi descredenciada e os repasses estancaram. Hoje, o prédio jaz trancafiado e vazio, aguardando a fagulha que destrua um acervo de mais de 200.000 rolos de filme e farto acervo fotográfico e documental. A Cinemateca, até a primeira metade de 2020, mantinha uma plataforma online com diversas coleções de filmes à disposição de qualquer consulente. Consta que desde junho do ano passado, após uma queda de energia no bairro, o equipamento que mantinha o banco de dados no ar desligou e não foi religado até hoje. Trata-se de um botão numa CPU e nenhum dedo para apertá-lo. Mario Frias se daria melhor como blogueirinho da juventude integralista. Nas redes sociais, ele sabe até bloquear os contribuintes que pagam seu salário quando questionado sobre as ações que deveria estar tomando em prol da instituição.

    Neste palco semelhante ao horror do cinema de Weimar, Bolsonaro tem até um Dr. Mabuse para chamar de seu. Uma força sobrenatural que observa o tabuleiro de cima, uma éminence grise que odeia pobres, pretos e homossexuais, um astrólogo fracassado especialista em criar pós-verdades, um conselheiro tão eficiente que destruiu a história da diplomacia brasileira... Um negacionista de primeira hora que, vejam só, controlava suas marionetes desde a distante e idílica Virgínia e, metendo um atestado para furar filas, há poucos dias, está sob os cuidados do SUS, que se encaixa exatamente no tipo de estrutura que o “guru” sempre tentou aniquilar em seu discurso. É como diz o meme, “Enfim, a hipocrisia”.

    Como veem, até agora, a melhor definição do estado de coisas na cultura do país está em Joseph Conrad: “The horror! The Horror!”.

    E vejam que eu ainda nem mencionei a pandemia... 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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