Campos de concentração brasileiros: a segregação dos pobres na seca de 1932
Apesar de a temática dos campos de concentração ser usualmente associada ao holocausto , o Brasil teve esta experiência posta em prática no nordeste brasileiro
Apesar de a temática dos campos de concentração ser usualmente associada ao holocausto e ao nazismo, o Brasil teve esta experiência posta em prática no nordeste brasileiro, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial.
A caatinga, o semiárido, o nordeste brasileiro, o sertão nordestino, muitas vezes usados como sinônimo, se referem a uma região tipicamente brasileira e com características particulares e específicas. O nordeste brasileiro, principalmente na região da caatinga (bioma), com clima semiárido é vítima de constantes estiagens. Estas estiagens levam a secas que assolam o sertão e o povo sertanejo. No Brasil tivemos 3 grandes secas em fins do século XIX e início do século XX, com especificidades e segredos que a história se negou – até então – a revelar. Nesta coluna, hoje, trago uma parte esquecida (ou escondida) da história brasileira: a história dos campos de concentração construídos no Estado do Ceará para aprisionar os retirantes sertanejos durante as secas do início do século XX. Uma história de atrocidades, preconceito estatal e segregação da população pobre. Uma história de dor, fome, doenças, mortes e perda da dignidade humana.
AS SECAS DE 1877 E 1915
Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem? […] Assunto tão delicado e perigoso por suas implicações políticas e sociais que até quase os nossos dias permaneceu como um dos tabus da nossa civilização – uma espécie de tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável para ser abordado publicamente [...] Quais são as causas ocultas desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente.
Josué de Castro, no livro “Geografia da Fome”. 8ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Josué de Castro, autor de Geografia da fome, um dos autores mais renomados na tratativa deste tema, questionava já em 1946, ano de publicação da primeira edição desta obra, o porquê de o tema ter se tornado assunto proibido ou desaconselhado para escritores e pesquisadores. Na historiografia, até tempos bem recentes, muito do que foi escrito, o foi feito pelos vencedores, de forma parcial e com o intuito visível de condicionar os pensamentos para favorecimento de um dos lados de cada uma das histórias contadas. Há pouco mais de um século, as coisas começaram a mudar nesse sentido e hoje contamos com historiadores e historiadoras dispostos a trazer à tona aquilo que por muito tempo foi contado sob um viés e que agora começa a ser desmascarado, e aquilo que por muito tempo foi tema proibido ou esquecido na escrita da história. Não foi diferente com a história da fome neste país, e não é diferente com a história dos campos de concentração brasileiros que foram renegados ao esquecimento (proposital), mas que agora serão aqui expostos e analisados. O Brasil possui um bioma que só existe neste país: a caatinga. A caatinga, típica da região nordeste brasileira que conta com o clima semiárido, abarca cerca de 70% de nosso território nordestino e 11% do território nacional. Sua origem vem do tupi guarani e significa “floresta branca”, caracterizando a natureza do local, que durante as secas perde o verde e se transforma em um sem fim de galhos secos e terra rachada. Com o clima semiárido, a caatinga sofre constantemente com estiagens e longos períodos de seca, fazendo com que sua vegetação seja também de característica única. Muitas das espécies vegetais encontradas na caatinga só se desenvolvem nesta região, e possuem características bem específicas de adaptação ao clima seco e à falta de chuvas, bem como ao solo raso, pedregoso e arenoso do local. Por passar por longas estiagens, a caatinga, em função da seca, sofre com a propagação da fome e da miséria sertaneja, causadas pela falta de produção alimentícia, pela falta d’água e pela morte dos animais criados para fins de alimentação. Na história brasileira recente alguns períodos se destacaram no tocante à seca, à fome e à morte. Em 1877 o nordeste brasileiro viveu um período de seca em que se passaram mais de três anos sem cair uma gota sequer de chuva, provocando a morte de meio milhão de pessoas, levando mais de cem mil pessoas a migrarem para a Amazônia e cerca de 70 mil pessoas a migrarem para outras regiões do país. Ainda no governo Imperial, esta seca deixou o sertão nordestino praticamente despovoado. Doenças, fome, alimentação venenosa, desidratação extrema, diversos foram os motivos, mas todos tiveram o mesmo fim: a fuga e a morte. A história se repetiu em 1915, já sob o governo republicano, onde mais uma vez a estiagem e a seca forçaram os moradores da região da caatinga a juntarem seus poucos pertences e fugirem em busca da sobrevivência. Em 1915, foi realizada a primeira experiência de construção de um campo de concentração no Brasil para alocar as famílias retirantes do sertão nordestino. O governador do Ceará na época, temendo que a história da seca de 1877 se repetisse e percebendo a debandada do povo da caatinga rumo à Fortaleza – capital do Estado – buscando melhores condições de vida, decidiu pela criação de um campo de concentração onde pudessem enviar os retirantes que se deslocavam do interior. No Bairro atualmente chamado São Gerardo, em Fortaleza, construiu o que ficou conhecido como o “campo de concentração do Alagadiço”. Eis a primeira experiência brasileira com campos de concentração e com a segregação posta em prática de forma concreta e documentável. O povo sertanejo viveu um processo de segregação e de estratificação onde se encaixava nas subclasses de pobres e miseráveis que habitavam o país; porém nunca antes haviam sido criados locais com o intuito específico de separá-los do restante da população, a população urbana e com recursos. A capital cearense já possuía um sem fim de vidas que andavam pelas ruas de Fortaleza pedindo esmola e vivendo da caridade. Entretanto, aprendeu durante a Seca de 1877 que a mão de obra sertaneja esfomeada poderia ser utilizada para a construção de obras públicas e para ser empregada de forma análoga à escravidão, trabalhando, literalmente, em troca de alimentação. Em 1877, se consolidou a ideia de que a seca poderia ser proveitosa para a burguesia cearense que encontrava ali braços baratos (eufemismo) para o trabalho. Em 1877, a grande quantidade de flagelados retirantes fez com que a mão de obra se tornasse excedente e para resolver o problema do excesso de população se dirigindo à Fortaleza iniciou-se um intenso processo de migração destes retirantes para outras regiões do país. Na seca de 1915, contudo, percebendo que o envio desta mão de obra barata para as demais regiões dificultava o processo de conseguir mão de obra posteriormente, já que os braços trabalhadores haviam sido enviados para fora do Estado, fez com que a burguesia cearense e o poder público (aqui podendo ser considerados quase como sinônimos) investissem em novas formas de tratar o tema dos grandes deslocamentos de flagelados para a região da Capital.
A SECA DE 1915: A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE APRISIONAMENTO
[…] esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível êxodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as intermináveis filas dos retirantes “como se fossem uma centopeia humana”. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos, “deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas, desfibrados e fétidos pelo efeito da autofagia.
Josué de Castro, no livro “Geografia da Fome”. 8ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Cada nova seca enfrentada pelo nordeste brasileiro trazia novas faces e novos métodos para suas possíveis soluções. A seca de 1877, que matou meio milhão de pessoas e levou mais de 150 mil pessoas a migrarem para outras regiões do país, fez com que o sertão ficasse praticamente despovoado. Entretanto, uma parte desta população foi mantida em Fortaleza para trabalhar como mão de obra em serviço análogo à escravidão.
A experiência de 1877 de despovoamento da região fez com que o acesso à mão de obra barata nos períodos subsequentes a esta seca fosse dificultada. Os governantes e a burguesia precisavam de uma solução para que o deslocamento sertanejo não deixasse como legado a falta de braços para o trabalho nos períodos subsequentes. Era preciso criar alternativas que conseguissem abarcar tanto a questão da superpopulação de esfomeados vagando pelas ruas da capital Fortaleza, quanto a questão da mão de obra necessária para o trabalho quando a seca acabasse. Eram tão numerosos os retirantes que se aglomeravam na capital cearense que não havia trabalho para todos, mas a experiência já havia mostrado que os enviar para outras regiões trazia consequências que não agradavam a burguesia cearense. Seguindo esta linha de pensamento, em 1915 foi realizado o primeiro experimento com campos de concentração no Estado. A seca de 1915 teve como diferencial a construção das estradas de ferro que possibilitaram que os retirantes as tivessem como alternativa para chegarem à cidade e pudessem manter uma mínima condição de saúde física para o trabalho. Já que a emigração agora era vista como um prejuízo para o Estado e para sua economia, era necessário criar alternativas para evitar que estes retirantes partissem para outras regiões; entretanto, sem permitir, ao mesmo tempo, que estes pudessem se acomodar nas ruas da capital. Usando como pretexto dar suporte e auxílio aos retirantes sertanejos, o governo constrói o campo de concentração do Alagadiço nos arredores do centro de Fortaleza. Aludiam a questões como a saúde a tranquilidade públicas nos discursos de justificativa para a criação do campo de concentração. Aludiam à ajuda humanitária aos flagelados moribundos e esfomeados que precisavam de auxílio governamental. Porém, ou obviamente, não falavam do verdadeiro propósito desta construção: impedir a chegada dos retirantes à capital Fortaleza protegendo-a da feiura da fome e da miséria e da imundície da falta de higiene dos retirantes sem recursos. Além da proteção da cidade contra a invasão dos famintos que se aglomeravam em suas ruas em busca de esmola ou de caridade, havia o medo que de que outra parte da história da seca de 1877 se repetisse: os saques e invasões cometidos pelos flagelados. Esfomeados e sem perspectivas de mudança deste cenário, durante a seca de 1877 várias foram as vezes em que os retirantes desesperados saquearam comércios e casas da capital em busca de algo que diminuísse sua fome. A agonia da fome desesperava os flagelados fazendo com que estes chegassem ao extremo de cometer crimes como roubos e invasões em busca de alimento. Diante deste cenário, os governantes e a elite cearense precisavam tomar medidas para conter estes perigos. Várias eram as possibilidades, mas a escolha foi a mais drástica e ordinária possível: aprisionar estes retirantes em determinado local impedindo-os de adentrarem Fortaleza. O campo de concentração do Alagadiço aprisionou cerca de oito mil pessoas durante o ano de 1915 e chegou ao fim em dezembro do mesmo ano, devolvendo ao sertão o povo que conseguiu sobreviver à varíola e à inanição. Uma análise, mesmo que superficial, desta experiência já demonstra seu fracasso. Além de não possuir a estrutura necessária para auxiliar de forma concreta a população de cerca de oito mil flagelados amontoados no campo de concentração do Alagadiço, a experiência ainda demonstrou que a falta destas condições mínimas acabava por levar muitos destes retirantes à morte. Entretanto, na seca de 1932 a história se repetiria com mais campos de concentração sendo construídos e muito mais mortes do que em 1915. O fracasso da experiência de 1915 não impediu que os governantes e a elite cearense a repetissem em 1932 com mais ênfase e mais força.
A SECA DE 1932: SEGREGAÇÃO, DOR E MORTE
“Não é mal de raça, é mal de fome. É a alimentação insuficiente que lhe não permite um desenvolvimento completo e um funcionamento normal. Não é a máquina que seja de ruim qualidade; e se o seu trabalho rende pouco, ela estanca e para a cada passo e se despedaça cedo, é por falta de combustível suficiente e adequado.”Josué de Castro, Documentário do Nordeste. São Paulo: Editora Brasiliense, 1959.
Durante a seca de 1932, se fez crescer a experiência dos campos de concentração para aprisionar retirantes, segregando-os do restante da população e impedindo-os de chegar à Fortaleza.
No ano de 1915, houve apenas um campo de concentração, o do Alagadiço. Em 1932 a experiência se ampliou e foram criados mais seis campos de concentração ao longo da estrada de ferro que cruzava o estado do Ceará, totalizando sete campos de concentração taticamente instalados com o intuito de impedir a chegada dos retirantes à capital.
Usando o pretexto de oferecer socorro às vítimas da seca que migravam do interior para a capital e oferecendo uma oferta ilusória de emprego na construção de barragens, os governantes e as classes dominantes de Fortaleza resolveram tomar atitudes urgentes. Neste momento o governo decide-se por concentrar os retirantes, através do Departamento Nacional de obras contra a seca - DNOCS, instalando sete campos de concentração estrategicamente pensados. Foram eles: o campo de concentração do Buriti, localizado no munícipio de Crato; o campo de Quixeramobim, mesmo nome do munícipio; o campo do Patu, localizado no município de Senador Pompeu; o campo de Carius, localizado no município de São Matheus; o campo de Ipu, localizado no município de mesmo nome; os campos do Urubu e do Otávio Bonfim, localizados no município de Fortaleza. Hoje somente o campo de concentração localizado na cidade de Senador Pompeu permanece como lembrança deste episódio cruel e triste de nossa história. Tombado como Patrimônio Histórico recentemente, suas ruínas que hoje são um sítio arquitetônico, são a única lembrança palpável desta tragédia vivida nos campos de concentração brasileiros. Locais onde a morte era uma constante. Falta de higiene, fome, doenças, miséria. Mais de 74 mil pessoas (segundo dados oficiais do DNOCS, entretanto acredita-se que o número real de flagelados aprisionados em 1932 seja muito maior que o oficialmente divulgado) foram presas nestes sete campos para serem impedidas de chegarem até a capital cearense. Segregação social dos miseráveis, preconceito estatal, dor e morte, doenças, corpos atirados em valas comuns, sem nome e sem sobrenome. A realidade da seca de 1932, retratada nos relatos dos sobreviventes que afirmavam: “morria gente todo dia, todo dia muita gente morria”. Eis um acontecimento desumano de nossa história esquecido – ou escondido – propositalmente, mas que vem ganhando espaço e sendo desmascarado pela História. Abandonados, aprisionados, esfomeados, doentes e frágeis, os retirantes ali detidos tinham como única alternativa resistir enquanto conseguissem. Muitos não conseguiram. Em memória das vítimas da fome nos campos de concentração cearenses escrevo hoje estas palavras. Para que, assim como os campos de concentração nazistas, nunca sejam esquecidos e para que nunca mais se repita.
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