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    Paulo Kliass

    Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

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    Campos Neto, Pix e Google

    Tudo indica tratar-se de uma enorme negociata, sempre às custas da grande maioria da população

    Sede do Banco Central, em Brasília 22/02/2022 REUTERS/Adriano Machado (Foto: ADRIANO MACHADO)

    O processo de financeirização que vem se aprofundando na economia e na sociedade brasileiras ao longo das últimas décadas tem provocado um conjunto amplo de consequências. A dominância do elemento financeiro sobre as demais atividades econômicas é bastante expressiva e termina por esmagar qualquer tentativa de se escapar à lógica das finanças sobre a produção, o comércio, os serviços e a cidadania.

    Um dos aspectos que derivam de tal movimento é o processo contínuo e robusto de bancarização das pessoas e das empresas. A disseminação das atividades cotidianas envolvendo algum tipo de dependência junto aos bancos ganhou ainda mais fôlego com o avanço da digitalização e do acesso cada vez mais universalizado aos telefones celulares e à rede de informática.

    As últimas informações divulgadas pelo próprio Banco Central (BC) apontam para uma ampliação crescente do número de pessoas que operam com contas bancárias, índice que atinge por volta de 90% do total de pessoas adultas. Por outro lado, o número de contas bancárias ativas supera a casa de 1,2 bilhão, número esse que engloba também as contas de natureza comercial. Esta tendência tem provocado mudanças significativas nos hábitos culturais e negociais de forma generalizada, com efeitos positivos de inclusão financeira e digital, mas introduzindo também um agravamento da dependência da população de forma geral aos bancos e ao universo do financismo.

    PIX e inclusão bancária - Concomitantemente a tal processo, o BC promoveu uma importante inovação tecnológica, que permitiu uma redução das despesas dos usuários com relação a uma parcela dos serviços prestados pela banca. Trata-se do sistema PIX, que propicia a realização de transferências interbancárias de valores monetários de forma ampla e gratuita. Afinal, até então os bancos cobravam valores elevados dos clientes para realizar uma modalidade semelhante deste tipo de serviço. A aceitação do novo modelo foi bastante expressiva e segmentos sociais até então bastante marginalizados da esfera bancária passaram a usufruir dos aspectos positivos de tal mecanismo de inclusão.

    No entanto, o fenômeno não passou desapercebido dos grupos interessados em elevar ainda mais os seus ganhos. Assim, teve início um movimento para eliminar a gratuidade de tais operações. Alguns dirigentes no interior do financismo mal escondem seus desejos para introduzir, de forma descarada, a mercantilização completa também neste segmento. Um ex-presidente do BC, Gustavo Franco, não esconde sua proposta de promover a privatização do modelo PIX. Diz ele:

    (...) “a gratuidade ajudou muito a disseminação do método. Mas alguém em algum momento vai fazer a conta de quanto vale o PIX e que não pode ser grátis por toda vida. Vai perceber que é uma empresa que vale um ‘dinheirão’ ” (...)

    Gustavo Franco e a privatização do PIX - Mas a intenção de se apropriar de informações relativas às movimentações efetuadas no interior do sistema bancário e financeiro vai muito além. Trata-se de transformar em termos legais e institucionais tudo aquilo que já é efetuado de forma irregular e à margem de uma regulamentação pública inexistente. Refiro-me ao volume impressionante de dados que as grandes empresas do sistema - as chamadas “big techs” - manipulam e comercializam sem qualquer autorização ou conhecimento por parte dos usuários.

    Com a palavra o próprio banqueiro, que manifesta um sincericídio sem a menor preocupação com a repercussão escandalosa daquilo que termina por expressar na entrevista:

    (...) “Isso é uma discussão de valor do trabalho parecida com a do começo do século XIX. Ninguém duvida que uma amostra de seu sangue é um dado pessoal seu, um pedaço de seu corpo. Agora os seus dados com seu banco, sua saúde, eles não são parte do seu corpo. É dado transacional, e sua transação bancária é tanto sua como do seu banco” (...)

    Desta forma, tudo indiuca que esse tipo de concepção parece ter avançado sobre o corpo e a mente do atual Presidente do BC, Roberto Campos Neto. Não satisfeito com os aspectos positivos trazidos pelo modelo do PIX, ele resolveu inovar nos últimos dois meses que ainda lhe restam no cargo. Sob o pretexto de uma suposta modernização do sistema, ele propõe uma mudança radical na concepção do mesmo. Trata-se de introduzir a possibilidade de realizar as transferências pelo processo de aproximação física do telefone celular, sem a necessidade de digitar as informações no aparelho. Até aí, em tese, nada problemático. Afinal, trata-se de promover uma inovação que já existe em outras operações e que viria a facilitar a vida dos cidadãos.

    Campos Neto e o favorecimento da Google - O ponto é que Campos Neto tem anunciado aos quatro ventos que tal novidade vai ser efetuada em uma parceria do BC com uma das gigantes do mundo de dados e do universo digital, a Google. Uma loucura! Imaginem qual seria o valor potencial a ser oferecido de bandeja a uma das maiores empresas do mundo a troco de nada. Tudo indica tratar-se de uma enorme negociata, sempre às custas da grande maioria da população, em benefício da apropriação privada de informações públicas e sigilosas.

    A decisão de conferir a exclusividade no manuseio e na operação de um sistema que movimenta quase 230 milhões de operações a cada 24 horas é um crime contra a maioria da sociedade. Afinal, segundo as estatísticas divulgadas pelo próprio BC, em apenas um dia o PIX tem movimentado algo que se aproxima a R$ 120 bilhões. Isso significa uma soma mensal superior a R$ 3 trilhões. O nível de escândalo de é de tal ordem que o Presidente do BC deixou para os 45 minutos do segundo tempo de seu mandato à frente do órgão a divulgação de sua intenção de realizar tal falcatrua. Segundo ele,

    (...) "Não é que vai estar tudo funcionando na semana que vem, porque as pessoas precisam entrar, cadastrar (...) Mas vai estar funcionando muito em breve, ele é implementado meio de forma faseada" (...)

    O anúncio já foi realizado de forma ampla em um evento com a participação de Campos Neto e Presidente da Google Brasil, Fábio Coelho.

    As relações incestuosas entre o capital financeiro e uma parcela da alta tecnocracia ocupando cargos estratégicos à frente do Estado é antiga. No entanto, o grau de ousadia que essa gente adota na implementação de arremedos de políticas públicas de modo a favorecer o grande capital é mesmo impressionante. A sociedade brasileira precisa demonstrar, de forma urgente, toda a sua indignação frente a esse tipo de negociata.

    Com a palavra Gabriel Galípolo, que foi indicado pelo Presidente Lula para substituir Campos Neto à frente do órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro. Ele já teve seu nome sabatinado e aprovado pelo Senado Federal e deve tomar posse no novo cargo a partir de janeiro do ano que vem. O futuro dirigente não pode passar pano para tal medida e precisa urgentemente se posicionar a favor de uma discussão ampla e transparente a respeito de tal favorecimento inexplicável a um dos maiores conglomerados globais.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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