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    Ricardo Antunes

    Professor da Unicamp e sociólogo do trabalho

    9 artigos

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    Capitalismo pandêmico

    Professor de Sociologia do Trabalho da Unicamp, Ricardo Antunes apresenta seu novo livro

    (Foto: Reuters)

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    Por Ricardo Antunes

    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    Capitalismo pandêmico é resultado de vários textos escritos nestes últimos anos. Seu núcleo principal é composto de dois pequenos livros publicados no exterior (um deles saiu no Brasil como e-book), além de um conjunto de artigos. Em boa parte, foram concebidos sob o impacto da pandemia. Relutamos em publicar alguns no Brasil, pois foram planejados para leitoras e leitores do exterior. Agora, sob a forma de livro impresso, talvez possam fazer algum sentido, agrupados como notas críticas de um período tão lúgubre de nossa história.

    Não foram nada fáceis estes “anos pandêmicos”. Por dias e meses (e já no terceiro ano de Covid-19) nem sequer sabíamos como poderia ser o dia de amanhã. O nosso, o dos nossos e, especialmente, o da enorme humanidade que labora dura e cotidianamente para sobreviver.

    É imperioso destacar que as consequências da pandemia foram e ainda são abissalmente desiguais e diferenciadas, quando se tem o acento de classe. Justamente aquele que a apologética dominante tenta obliterar para desqualificar. Ao mesmo tempo que não para de intensificá-lo, diuturnamente, para mais e mais acumular. Até durante a pandemia. Para, depois, dormir em paz com sua falsa consciência.

    Basta lembrarmos que foi nas periferias que as trabalhadoras negras e os trabalhadores negros, além das comunidades indígenas, sofreram os mais altos índices de letalidade por Covid-19. Precisamente a população mais pobre, que trabalha na informalidade e suporta os mais altos níveis de desemprego.

    Nossa classe trabalhadora, que começava a acreditar que o pior já passara, que padecera os maiores infortúnios de sua história, não podia imaginar o tamanho da regressão que a esperava. Como se não bastassem os vários séculos de escravização, persistente até os nossos dias como verdadeira praga. Como se não fossem suficientes os incontáveis massacres que se sucedem. As distintas formas de sujeição. Os morticínios que reaparecem cotidianamente nas comunidades das periferias, agredidas pela violência da polícia de classe e de raça. Como se tudo isso já não fosse mais do que suficiente, novas tragédias vêm se somar a essa histórica condição que mescla e intensifica exploração, expropriação e espoliação. Em plena era de expansão das tecnologias de informação e comunicação.

    Nem bem a pandemia começou, a classe trabalhadora, especialmente em suas parcelas mais penalizadas, logo se tornou a “candidata número 1” à contaminação e à morte. A letalidade que sofreu, nos períodos mais duros da pandemia, revelou a preconceituosa preferência de classe, gênero, raça e etnia presente na expansão do vírus.

    Despossuída de quase tudo, a classe trabalhadora que labora na informalidade, em sua esmagadora maioria, não poderia fazer isolamento. Perderia sua única fonte de sobrevivência. Como seria possível exercer trabalhos intermitentes, se muitas atividades econômicas fecharam suas portas ou estavam em lockdown?

    Não é demais recordar que as classes burguesas comemoraram com festa e champagne quando o tenebroso Temer aprovou a contrarreforma trabalhista. Um vilipêndio que se anunciava mistificadoramente como “modernização” para ofuscar o embuste, puro e duro. O que, segundo o impostor, geraria milhões de empregos foi responsável não só por muito mais precarização e desemprego, como também pelos níveis de mortalidade que atingiram a população trabalhadora mais pauperizada, que se encontra à margem da legislação protetora do trabalho.

    E foi exatamente essa mesma classe que preencheu em maior quantidade as valas dos cemitérios das periferias, abertos diuturnamente durante as piores fases da pandemia. Foi esse proletariado pobre que majoritariamente padeceu e morreu asfixiado nos corredores dos hospitais no Amazonas, sem ter o direito de respirar o último oxigênio. Que não pôde esperar pela vacinação, postergada ao máximo pela aberração do pandemônio de Bolsonaro, enquanto milhares morriam contaminados.

    Em nenhum canto desse grande e estranho mundo, poderíamos imaginar que nossa vida cotidiana, em meio às comemorações da passagem do ano da graça de 2019 para 2020, pudesse se encontrar, poucas semanas depois, mergulhada em uma crise sanitária sem precedentes e de amplitude global.

    Ao contrário da greve da morte, anunciada na ficção de José Saramago,[1] o que fevereiro de 2020 nos deu foi o risco iminente da morte para todos e todas que lutavam contra a aberração do negacionismo.

    Num só golpe, começamos a nos defrontar com a antecipação precoce da morte. E que, até o presente, já dizimou quase 700 mil pessoas no Brasil e mais de 6 milhões no mundo, números que são reconhecidamente subnotificados.

    Uma vez mais, nosso país voltou ao seu secular normal: um passo à frente e dois para trás. No presente, esses dois passos para trás vão se expandir em incomensurável regressão.

    Vidas foram (e estão sendo) destroçadas, direitos são extirpados, misérias são intensificadas e desigualdades exacerbadas. As liberdades, aquelas que estávamos letargicamente conquistando desde o fim da ditadura militar de 1964, entraram em rota de enorme retrocesso.

    Foi esse cenário que gerou a ideia deste livro, dividido em três partes, de modo a melhor articular os capítulos.

    Na primeira parte, “A pandemia do capital”, o Capítulo 1 (“Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado”) é originalmente um e-book escrito a convite de Ivana Jinkings para a Boitempo (2020) e posteriormente impresso na Itália (2021) e na Áustria (2022). Nessas duas edições no estrangeiro, optamos por outro título: Capitalismo virótico parecia exprimir melhor a tese central. E foram elas que nos levaram a propor à Boitempo sua publicação impressa no Brasil, revista e atualizada.

    O Capítulo 2 (“O trabalho no capitalismo pandêmico”) é uma versão resumida do artigo publicado na revista Notebook, em seu número especial de lançamento.

    O Capítulo 3 (“Pandemia, direitos sociais e trabalho no Brasil: a metáfora do Bacurau”), publicado no Brasil, foi resultado dos nossos primeiros debates e reflexões sobre os múltiplos significados da pandemia.

    Na segunda parte, “Pandemia e pandemônio”, o Capítulo 4 (“A política da ca- verna: a contrarrevolução de Bolsonaro”) é baseado num pequeno livro, publicado na Itália e inédito no Brasil, escrito a convite da Editora Castelvecchi. Foi redigido no calor do horror, logo depois das eleições de 2018 e da posse do desgoverno.

    O Capítulo 5 (“Bolsonaro: os anos que já se foram e os que seguem”) dá conti- nuidade à análise do nosso pandemônio. Já publicado no Brasil, é um desdobramento do capítulo anterior, procurando melhor compreender os anos que se seguiram.

    O Capítulo 6 (“‘There is no alternative’”) oferece um desenho resumido da história do trabalho na formação social brasileira, indicando alguns desafios que teimam em se perpetuar.

    A terceira parte, “Do proletariado industrial ao uberizado”, enfeixa o livro e tem como fio condutor o estudo da classe trabalhadora. Apresenta algumas das princi- pais repercussões e consequências da introdução das tecnologias de informação e comunicação (TIC) no capitalismo da era digital, do qual uma das mais nefastas é o trabalho uberizado.

    O Capítulo 7 (“Luta de classes nas Américas: tão próximas e tão diferentes”) procura apresentar, sinteticamente, alguns dos principais traços presentes na luta de classes em nosso continente. Trata-se de versão bastante ampliada e alterada de um texto publicado em inglês e ainda inédito no Brasil.

    O Capítulo 8 (“Engels e a descoberta do proletariado”) nos permitiu revisitar a obra seminal de Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, e mostrar sua atualidade, dada a enorme regressão das condições de trabalho que estamos vivenciando em plena era informacional-digital.

    O Capítulo 9 (“Desvendando o receituário toyotista”) traz o prefácio à obra de Satoshi Kamata, Toyota, la fabbrica della disperazione, recém-publicada na Itália. Pela crítica contundente ao toyotismo no Japão, desde a primeira hora, esse texto se tornou um clássico, infelizmente ainda não editado no Brasil.

    O Capítulo 10 (“O trabalho na economia digital”) é o Prefácio que escrevemos, também para o público italiano, ao livro de Ursula Huws, Il lavoro nell’economia digitale globale, que oferece uma análise qualificada dos significados do trabalho e da economia digital no capitalismo atual, temática em que a autora tem se destacado.

    O Capítulo 11 (“Os novos laboratórios de experimentação do trabalho”) dá continuidade à temática anterior, mostrando como as grandes corporações vêm intensificando as práticas de precarização do trabalho, que já existiam antes da pandemia, mas têm se intensificado exponencialmente no presente.

    O Capítulo 12 (“Trabalho e igualdade substantiva”) finaliza o livro, procurando indicar alguns desafios na árdua batalha pela emancipação da classe trabalhadora no Brasil.

    Pandemia e pandemônio, um global e outro local, são os contornos de nossos trágicos tempos. Por isso, se tivesse que dar outro título a este livro, poderia intitulá-lo “Escritos pandêmicos”. Foi neste contexto que desenvolvemos a ideia de capitalismo pandêmico ou virótico. Destrutivo, letal e belicista, o sistema do capital finalmente assume sua forma pandêmica e nos traz uma sucessão de vírus horripilantes que são resultado de tantas devastações: da natureza, do trabalho e da própria humanidade. Essa é a fotografia sem retoques do capitalismo de nosso tempo.

    Devemos finalizar esta Apresentação” acrescentando que as elaborações aqui presentes se alimentaram de movimentos multiformes, sem que deles nos déssemos conta. Dos incontáveis debates e “lives”, cujo diálogo coletivo nos alimentou, beneficiou e fez pensar. Das infindáveis horas, dias e meses de solidão forçada, quando tudo parecia soçobrar e derreter. E ainda das tantas leituras literárias sobre as quais nos debruçamos, durante a solidão, para ver passar o tempo nesta “era das trevas”.

    Foi essa confluência que nos impôs a necessidade premente de refletir acerca dos porquês desses descaminhos. E de como, afinal, poderá ser possível superá-lo.

    As palavras finas de Valter Hugo Mãe exprimem muito bem esse sentimento: “A força das ideias era tanta que pensar se tornava uma disciplina do fogo. Pensar era um modo de arder”. Não sem antes indicar que “as ideias nunca terminariam à força de um golpe, por mais desaustinado que fosse desferido”.[2]

    Referência

    Ricardo Antunes. Capitalismo pandêmico. São Paulo, Boitempo, 2022, 152 págs.

    Notas

    [1] José Saramago, As intermitências da morte. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 14.

    [2] Valter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos. São Paulo, Globo, 2016, p. 169 e 54.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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