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    Ricardo Musse

    Professor do departamento de sociologia da USP

    14 artigos

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    Capitalismo sem peias

    "Duas apresentações do livro de Ricardo Pagliuso Regatieri, um relato dos debates sobre o caráter do nazifascismo entre os membros da Escola de Frankfurt", escrevem os professores Gabriel Cohn e Ricardo Musse

    (Foto: Reprodução)

    Por Gabriel Cohn e por Ricardo Musse*

    (artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)

    A Teoria Crítica da Sociedade tornou-se um bom exemplo do “marxismo ocidental” ao concentrar-se na análise soft do capitalismo, abandonando o lado hard dos fundamentos materiais da sociedade. Perry Anderson certamente concordaria com essa afirmação. Mas não Ricardo Pagliuso Regatieri, que apresenta em Capitalismo sem peias (Humanitas, 2019) uma brilhante refutação daquele lugar-comum.

    Demonstra que os mestres da chamada “Escola de Frankfurt” jamais recuaram diante da exigência de ir até o fundo da organização da sociedade para encontrar o conteúdo das formas culturais e do padrão civilizatório que tão bem souberam estudar. Não lhes faltou empenho para isso. O que faltou foi tempo e oportunidade para levar uma massa de debates e anotações a condições de publicação.

    É exatamente isso que ele reconstrói passo a passo, começando com importante debate em 1941 na Universidade Columbia (que havia dado condições para a continuidade no exílio norte-americano do trabalho do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt). Tratava-se de reunião de pesquisadores em diversas áreas para examinar em conjunto as novas condições do capitalismo, com referência especial ao nacional-socialismo alemão.

    Costuma-se, a esse respeito, concentrar-se no debate entre o economista Friedrich Pollock e o jurista Franz Neumann sobre a forma de organização econômica e política da Alemanha nazista. O primeiro teria obtido mais influência no rumo da discussão, com sua tese do “capitalismo de Estado”. Regatieri mostra que já nesse passo as coisas não eram tão simples e vai acompanhando os desdobramentos disso até chegar no ponto mais forte de seu argumento. É que ele vai buscar naquelas preocupações com a organização e as tendências do capitalismo o conteúdo mais fundo e não explícito (porque deveria ser desenvolvido depois) da grande obra do Instituto no período, a Dialética do esclarecimento de Horkheimer e Adorno.

    Em apoio a essa robusta tese ele apresenta o resultado de sua pesquisa documental, que demonstra a importância decisiva para o pensamento daqueles autores da figura do racket. O termo designa vários tipos de atores sociais e políticos no cenário do capitalismo monopolista, tanto na Alemanha, onde constitui elemento central na organização do poder político e econômico, quanto nos Estados Unidos, onde convive com organização institucional democrática.

    O essencial, no caso, é que o racket é uma espécie de forma degradada da classe, voltada não tanto para organizar a sociedade como para apropriar-se da riqueza produzida ao trata-la como reserva de despojos a serem disputados por todos os meios disponíveis. Atuam sem peias, tal como o capitalismo que os gera também se encontra à solta naquela etapa da sua fase monopolista.

    Ao fazer isso, Regatieri produziu livro muito significativo, que ainda oferece a muito apreciável vantagem de ser muito legível e trazer ampla informação sobre cada aspecto do seu tema, incluindo interessante exposição e análise da Dialética do esclarecimento. Nenhum minuto é perdido na leitura deste livro.

    Prefácio, por Ricardo Musse

    Capitalismo sem peias foi composto como uma daquelas obras da op art que muda de aspecto a cada deslocamento do observador. No caso, conforme o interesse do leitor. Organiza-se como uma junção de planos que podem ser focados separadamente, mas que são ininteligíveis sem as referências do conjunto.

    À luz de determinado ângulo pode ser visto como um acompanhamento da gênese de Dialética do esclarecimento. Quando se gira o olhar, pode ser compreendido como uma história do debate – no âmbito da Escola de Frankfurt – sobre o sentido e o significado do nazifascismo. Visto de outro rincão, surge como uma apresentação da trajetória intelectual, nos anos 1940, de Max Horkheimer e de Theodor Adorno, salientando os movimentos que os conduziram à crítica do processo civilizatório.

    As diversas dimensões do livro são construídas com competência ímpar e uma originalidade que, pouco ressaltada pelo autor, saltam aos olhos do leitor. Os temas e conceitos que nortearam Horkheimer e Adorno no período, apesar de sua importância, só agora começam a ser debatidos. E não só no Brasil.

    Capitalismo sem peias inicia-se, de chofre, com o relato das diferentes posições acerca da natureza do nazismo, apresentadas num ciclo de conferências organizado por Max Horkheimer na Universidade de Columbia, entre novembro e dezembro de 1941. O debate contou com a participação de Herbert Marcuse, Arcadius R. L. Gurland, Franz Neumann, Otto Kirchheimer e Friedrich Pollock. Nem todas as comunicações foram publicadas na revista do Instituto de Pesquisas Sociais, cuja circulação, mantida regularmente desde o início da década de 1930, encerrou-se em 1941.

    A primeira novidade do livro reside aí, na escolha de seu ponto de partida. As reconstituições da polêmica entre os frankfurtianos acerca do caráter do nazismo localizam-na, geralmente, apenas nos artigos publicados na revista do Instituto ou, então, limitam-se – como faz Rolf Wiggershaus em seu livro clássico A Escola de Frankfurt (Difel, 2002) – a apresentar as divergências de posições entre Pollock e Neumann.

    Ricardo Regatieri não desconsidera os variados artigos sobre o assunto, publicados na revista do Instituto, renomeada então como Studies in Philosophy and Social Science. Tampouco ignora a importância do livro de Neumann, Behemoth: The Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944. Sempre que necessário recorre, com pertinência e conhecimento de causa, a esse conjunto.

    A estratégia de priorizar o “debate de Columbia” possibilita o exame da questão sob uma baliza diferente. Primeiro, abre a oportunidade de ressaltar coordenadas ali presentes sobre a caracterização do nazismo, obscurecidas, em certa medida, pela contraposição habitual entre capitalismo de Estado e capitalismo monopolista. É o caso, por exemplo, do papel atribuído à tecnologia e à racionalidade imanente ao processo. O principal, porém, talvez seja a contribuição de Regatieri para o esclarecimento da posição de Horkheimer (e em menor medida de Adorno), a partir do acompanhamento de suas ações e reações.

    Horkheimer esquivou-se da discussão prévia do conteúdo de cada uma das conferências. Como diretor do Instituto e editor da revista, seu procedimento habitual consistia em discutir os artigos com seus autores, tornando-os compatíveis com o leque de posições teóricas e práticas defendidas pelo Instituto. A intensidade das divergências inviabilizava qualquer esforço do diretor para, valendo-se de sua autoridade, buscar convergências. Essa situação, somada às dificuldades financeiras decorrentes da Guerra – agravadas pela entrada dos EUA no conflito – encerrou temporariamente o trabalho coletivo, peça central do projeto executado no âmbito do Instituto, a partir de 1931. 

    O segundo capítulo de Capitalismo sem peias debruça-se sobre os artigos publicados por Horkheimer entre 1937 e 1943. Um dos fios da investigação procura aferir em que medida o diretor do Instituto inclina-se a favor de uma das teses em conflito: a de um capitalismo planificado politicamente dirigido ou a de um capitalismo monopolista que exacerba a exploração econômica. Descartando as variedades de nuances resgatadas por Ricardo Regatieri, talvez se possa resumir o percurso dizendo que Horkheimer não se mostra inteiramente partidário de nenhuma das duas.

    Horkheimer procura inserir seu diagnóstico do presente em considerações de longo prazo. Confronta a situação atual com o liberalismo, destacando o processo que levou à liquidação do capitalismo concorrencial e sua transformação em um capitalismo monopolista autoritário comandado, via aparelho estatal, pelos chefes da indústria, do exército e da administração. Nesse sentido, define a fase liberal como o interregno de uma dominação direta e brutal, caracterizada por um intenso controle da vida dos indivíduos.

    Na parte final desse bloco, Ricardo Regatieri reconstitui as atualizações da teoria das classes de Karl Marx, desenvolvidas por Horkheimer e Adorno em artigos separados e sintomaticamente convergentes. Adorno identifica no liberalismo, em contradição com a apregoada livre concorrência, uma relação assimétrica intensificada pela dominação extraeconômica. No capitalismo monopolista, a concentração de capital se apresenta como “expressão da sociedade como um todo”, tornando o antagonismo de classe invisível.

    Tornou-se quase lugar-comum salientar o impacto das teses de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, em Dialética do esclarecimento. A teoria da história desenvolvida por Benjamin nesses fragmentos certamente orientou e direcionou a construção do livro de Adorno e Horkheimer. Nem sempre se reconhece, porém, o ponto de partida de ambos: a similitude de diagnósticos sobre o momento histórico.

    Horkheimer e Adorno tomaram como tarefa investigar, preliminarmente, a ofuscante barbárie do presente. Na busca dessas determinações, redigiram, em consonância com suas reflexões anteriores, uma série de excertos – abandonados sob a forma de manuscritos – que foram denominados de “teoria dos rackets”. O termo racket, então corrente na literatura científica norte-americana, designa agrupamentos e associações políticas e econômicas que se valem da violência, explícita ou subliminar, para criar e manter monopólios de diversos tipos (tanto do capital como da força de trabalho).

    Ricardo Regatieri, por meio de uma análise minuciosa do conjunto desses excertos – inclusive do material inédito que pôde consultar no arquivo do Instituto de Pesquisas Sociais –, mostra como esses fragmentos podem ser considerados “uma espécie de elo perdido entre o debate de Columbia e a Dialética do esclarecimento”. Configuram também uma tentativa de compreender os condicionantes do Estado autoritário e a degradação das classes e, por conseguinte, dos conflitos entre elas.

    O capítulo final é inteiramente dedicado a esboçar linhas de interpretação da Dialética do esclarecimento. Ressalta, primeiramente, suas convergências com o diagnóstico do presente e com a teoria da história elaborada por Walter Benjamin, em suas “Teses”. Expõe os desdobramentos da intenção, enunciada por Adorno em uma carta a Horkheimer, de conceber “a dialética do esclarecimento como uma dialética entre cultura e barbárie”.

    Se Horkheimer, em artigos anteriores – no arco que vai de “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937) a “Sobre a Sociologia das Relações de Classe” (1943) –, estendeu suas observações ao capitalismo pregresso, ao período do liberalismo concorrencial, em Dialética do esclarecimento as considerações de longo prazo retrocedem à pré-história. Pagliuso Regatieri apresenta instigantes chaves de leitura para a compreensão da passagem da crítica ao capitalismo à crítica da civilização.

    A “teoria dos rackets” já atestava um deslocamento da ênfase na exploração econômica – premissa geral do marxismo convencional –, para a crítica da dominação. A barbárie, singularizada na Alemanha hitlerista, não poderia ser compreendida como exceção. Adorno e Horkheimer procuram, assim, desentranhar a “racionalidade da dominação”, o processo que conduz do mito ao esclarecimento e vice-versa.

    Os capítulos anteriores do livro de Ricardo Regatieri fornecem importantes elementos para a compreensão dessa racionalidade que abarca e supera a “racionalidade econômica”. Destacam, por exemplo, o interesse de Horkheimer pelo aparato tecnológico, questão posta em pauta pelo artigo de Herbert Marcuse, de 1941, “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna”. Pagliuso Regatieri apresenta também os momentos e os contextos em que o termo racket aparece em Dialética do esclarecimento, procedimento imprescindível tendo em vista que a edição brasileira, ao optar por traduzir esse termo por diferentes vocábulos, ignorou seu caráter conceitual.

    Capitalismo sem peias tampouco se exime de confrontar as determinações, nem sempre explícitas, de Adorno e Horkheimer sobre o capitalismo contemporâneo com as posições apresentadas por outros membros do Instituto no “debate de Columbia”. A exegese e a comparação de dois ensaios inseridos em Dialética do esclarecimento – “A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas” e “Elementos do Antissemitismo: Limites do Esclarecimento” – permitem observar que, para Adorno e Horkheimer, a situação do indivíduo pouco difere quando se passa do capitalismo “democrático” para a sociedade nazifascista.

    *Gabriel Cohn é professor emérito do FFLCH da USP e autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt: Teoria e pensamento social (Azougue, 2016).


    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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