Caro é cuidar de rico
"É necessário melhorar em muito as condições dos trabalhadores", escreve Arno Augustin
“Sou presidente para provar que é possível cuidar dos pobres. O que custa caro é cuidar de rico.”
Luís Inácio Lula da Silva, Presidente do Brasil, em discurso em São Luís do Maranhão em 21/06/2024
1) Rentismo e objetivos da política econômica
Economia é uma ciência social. A definição de uma política econômica adequada não surge simplesmente do estudo de gráficos e números. Quando um economista diz que é necessário aumentar a taxa de juros e que o consenso de mercado (em geral, ele não esclarece que o mercado em questão é o mercado financeiro especulativo) vai nesse sentido, e outro diz que o importante é combater a fome imediatamente, pois isso ajudará o desenvolvimento do país, eles não estão apenas recitando aprendizados acadêmicos.
Eles estão se posicionando sobre qual é a melhor política econômica, considerando os interesses materiais em disputa. Se o objetivo da economia for melhorar a vida de todas as pessoas, ou das que mais precisam, a política econômica adotada será uma. Se o objetivo for tornar algumas poucas pessoas ou instituições mais ricas, será outra. Essa aparente obviedade precisa ser reiterada. A mídia, ligada a especulação, passa o dia todo recitando falsas razões ditas técnicas e ouvindo economistas ligados a bancos e fundos de investimento para defender os interesses do mercado financeiro. Isso cria uma falsa sensação de verdade científica, onde na verdade só há interesse material.
A política econômica é dramaticamente condicionada pelos interesses materiais em disputa. A história recente do Brasil deveria nos ensinar algo importante. As três tentativas desenvolvimentistas de construir um projeto de nação foram abruptamente destruídas pelos golpes de Estado de 1954, 1964 e 2016.
Mesmo que essas experiências se aproximassem muito mais de um nacionalismo desenvolvimentista do que de qualquer outra coisa mais radical, elas não foram aceitas pelo reacionarismo e entreguismo que dominam nossas elites, devendo-se destacar o papel da grande mídia corporativa e da especulação financeira nesse processo. Aqui, há uma drenagem permanente e de alto custo de recursos para o mercado financeiro especulativo. Este, por sua vez, que passa a ter grande força política, potencializada pelas condições coloniais e escravocratas da sociedade brasileira. As elites brasileiras estão acostumadas a ter privilégios.
As verdadeiras restrições ao nosso crescimento, desenvolvimento e distribuição de renda não são econômicas, mas políticas. Elas decorrem da correlação de forças. É no âmbito da luta de classes, da disputa de interesses de extratos sociais em conflito que devemos encontrar as verdadeiras razões da obstrução ao crescimento no Brasil.
Nosso país tem a tarefa absolutamente imprescindível de vencer a especulação financeira. Isso provocará mudanças estratégicas na correlação de forças e, consequentemente, dará oportunidades extraordinárias de desenvolvimento econômico e combate à miséria.
O principal fator de concentração de renda no Brasil é o rentismo financeiro. Boa parte das empresas tem seu lucro oriundo do ganho financeiro e não de sua atividade operacional, inclusive a Rede Globo e uma parte significativa da indústria e do comércio.
Muitas vezes, a atividade-fim da empresa tem menos rentabilidade do que a especulação financeira. Por isso, as elites brasileiras são quase unânimes na defesa do rentismo financeiro, porque ganham com isso. Parte da própria indústria trabalha contra seus interesses ao privilegiar as políticas econômicas pró-rentismo, uma vez que seu lucro financeiro é maior do que o operacional.
Para muitas empresas, em especial para pequenas e médias, não há ganho financeiro relevante. Para essas, o rentismo se apresenta com a sua face mais cruel, pois implica em não terem capital de giro e serem impedidas de investir, já que as taxas de juros cobradas do tomador são impraticáveis.
Além da SELIC absurda, os spreads bancários são proibitivos. Os bancos conseguem impor spreads altíssimos porque eles sempre têm uma elevada rentabilidade emprestando ao próprio governo ou ao Banco Central e lucrando com taxas já extorsivas. Se podem ficar ricos com títulos públicos, para que emprestar para a padaria da esquina e correr riscos? Só se for com uma rentabilidade ainda mais usurária.
O resultado é que a taxa de investimento, ou seja, a relação entre o investimento público e privado e a atividade econômica, é baixa. Isso ocorre porque o custo do crédito é demasiado para quem não tem reservas financeiras e porque o ganho na aplicação financeira é alto para quem possui reservas.
Uma taxa de investimento baixa tem como consequência pouca capacidade instalada, o que faz com que os preços subam rapidamente caso ocorra aumento da demanda.
A política econômica, portanto, precisa se preocupar em aumentar a taxa de investimento, pois quando ela é alta, a economia pode crescer de forma mais equilibrada e com menos pressão de preços.
Por isso, é fundamental que a política econômica privilegie a economia real e diminua o ganho financeiro. Não se trata apenas de uma disputa entre empresas, trata-se também da alocação dentro das empresas, entre investimento real ou aplicação meramente financeira.
2) Correlação de forças
Disputar a política pela esquerda (pela extrema direita é exatamente o contrário) relaciona-se com a capacidade de organização, mobilização e de elevação da consciência da população, especialmente os trabalhadores. Nos extratos de menor renda, as políticas concretas de acesso à renda produziram e ainda produzem efeito positivo. No entanto, mesmo nesses extratos onde nossa aprovação é positiva, a elevação do nível de consciência e organização é muito pequena.
Ainda no campo dos trabalhadores, em um extrato de renda um pouquinho maior, nossa aprovação é desastrosa. A ausência de politização abriu ampla entrada para a extrema direita, em um evidente contraste entre a melhoria das condições de vida desses extratos e a sua total confusão política e ideológica.
No espectro da extrema direita, a redução do nível de consciência é condição essencial para a eficiência dos parâmetros subconscientes que caracterizam o seu viés fascista. É no uso de conceitos sem profundidade, de poucos toques e nenhuma verdade que viceja a erva daninha fascista. O medo difuso e a manipulação desonesta das emoções fazem com que a teologia do domínio cresça assustadoramente.
Isso se deve, em parte, a própria estratégia política e de comunicação vinda do governo. Há pouca disputa ideológica, permitindo uma permanente iniciativa de mentiras pela extrema direita. Na ausência de politização e elevação de consciência, abriu-se um terreno fértil para a mentira, desinformação e ódio como instrumento de manipulação.
Obviamente, a situação se torna pior devido à desonestidade da mídia corporativa, vinculada aos interesses da especulação financeira e comprometidas com a extrema direita; a ausência completa de regulamentação do capitalismo de dados, que permite que seus mega bilionários proprietários abusem dos algoritmos pró-extrema direita e contra a verdade; e ao campo livre para a teologia do domínio praticada sem escrúpulos pelas igrejas evangélicas neopentecostais.
A falta de regulamentação e democratização da mídia e do capitalismo de dados das big techs, além da subestimação e conciliação com os empresários da fé e com a teologia do domínio, já nos cobrou um preço histórico dramático. Parece que nada aprendemos.
O desastre só não é total devido à extraordinária capacidade de interlocução do próprio presidente Lula. No entanto, um real aumento de consciência política exigiria muito mais.
O instrumento de maior viabilidade política e legal de aumento de consciência da população, a democracia participativa direta, está prevista na Constituição de 1988. Mas, infelizmente, a participação popular tem sido relegada a um plano meramente simbólico pelos nossos governos. Experiências de democracia direta, como o orçamento participativo e outras são um poderoso instrumento de aumento de consciência política. Se a população tivesse condições de entender plenamente o orçamento público, muitas das formas de extração de bilionárias quantias da população e entrega de valores para interesses localizados não existiriam. O próprio Congresso e suas corruptas e corruptoras emendas parlamentares não teriam a força que hoje têm para chantagear permanentemente a nação.
Aqui cabe uma palavra sobre o Congresso. O poder da extrema direita e do Centrão dentro do Parlamento, e deste em relação ao Executivo, vem aumentando enormemente. Isso se deve a uma combinação do efeito cancerígeno das emendas parlamentares e da nossa falta de disputa social para se contrapor às decisões contrárias à população que o Congresso toma.
Um exemplo são as próprias emendas parlamentares, que hoje já são maiores do que o total do investimento do Executivo. É o gasto mais ineficiente que se possa imaginar. Mas a mídia neoliberal naturaliza sua existência. Passam o tempo inteiro falando em eficiência, mas não atacam a ineficiência das emendas. Isso porque as emendas parlamentares são o caminho para o aumento da força da extrema direita e do centrão, ou seja, os seus verdadeiros aliados.
A participação e organização popular seriam o melhor antídoto tanto para combater as práticas corruptas e antidemocráticas que imperam no Legislativo, como para mudar a correlação no Congresso e para restituir o caráter presidencialista de nosso sistema de governo, conforme aprovado na Constituição de 1988 e referendado em plebiscito. O esdrúxulo conceito de presidencialismo de coalizão não existe em nossa Constituição. Apesar disso, o Congresso tende a se dar poderes que legalmente não tem. As emendas parlamentares, na forma como praticadas hoje, afrontam claramente nosso ordenamento jurídico. Apesar disso, a índole chantagista que, infelizmente, domina nosso parlamento as mantém de forma artificial e vergonhosa.
Por fim, cabe lembrar que o neoliberalismo, em especial na sua fase atual de vitória da financeirização e da desregulamentação a nível mundial, traz consequências políticas extremas. O avanço da extrema direita no mundo é, em grande medida, um produto da crise da civilização causada pela radicalização das políticas neoliberais. Destrói-se a democracia e os serviços público são sucateados. Com isso, cresce o ódio e o apelo do viés fascista, que se apresenta como destruidor de tudo que está aí e utiliza táticas subconscientes de manipulação e mentira permanente.
A própria capacidade de organização da classe trabalhadora se torna ainda mais difícil. Sem emprego e sem relações de trabalho formalizadas e minimamente protegidas, não há condições mínimas para a organização sindical, o que enfraquece muito o nosso campo.
O que ocorreu entre 2015 e 2016 deveria servir de lição. Mesmo alinhando toda a orientação de política econômica com as aspirações do mercado financeiro especulativo a Presidenta Dilma foi deposta. Na verdade, foi deposta por fazer isso. Perdeu totalmente o apoio popular e não ganhou apoio nenhum da especulação financeira.
E como piranhas sentindo cheiro de sangue, os rentistas financeiros atacaram e concretizaram o golpe de 2016.
3) Juros, câmbio e inflação
Uma das ilusões criada pela propaganda neoliberal é a de que a taxa de juros é alta porque o governo gasta demais e precisa tomar dinheiro emprestado para pagar suas contas e, por decorrência, o mercado é obrigado a aumentar a taxa de juros. Mas isso é só propaganda. Os fatos são bem mais complexos.
Não é o mercado que define a taxa SELIC, o parâmetro real da taxa de juros no Brasil. Quem decide a taxa Selic é o Banco Central. E ele não apenas decide seu valor, mas também atua no mercado para impor que ela seja mais alta do que seria caso o mercado fosse deixado à sua própria sorte.
A prova é que boa parte da chamada dívida pública não decorre de venda de títulos pelo Tesouro, mas sim pelo próprio Banco Central (BC). São as chamadas operações compromissadas. No mês de abril, o Banco Central tinha um estoque no mercado de 1 trilhão 351 bilhões em operações compromissadas. Isto corresponde a 12,2% do PIB. O BC vende estes títulos denominados operações compromissadas e arrecada esses recursos. E o que ele faz com esse dinheiro pelo qual ele pagou valores em torno da SELIC? Nada, deixa em caixa.
Isso mesmo, o Banco Central endivida a nação em valores expressivos apenas para retirar dinheiro da economia e, com isso, impor uma taxa SELIC mais alta. Se ele não fizesse isso, a taxa de juros despencaria e seria bem menor.
Como conseguiram impor a chamada autonomia do Banco Central, hoje temos que conviver com um presidente do BC nomeado pelo governo Bolsonaro, que atua para boicotar o governo Lula e agradar o que de pior existe no mercado financeiro especulativo. Como é esse Banco Central que decide os juros, fica fácil enxergar por que, em 2023, a taxa Selic real (deduzindo-se o IPCA) foi de 8,04%. Em função disso, nos 12 meses encerrados em abril de 2024, gastamos 776 bilhões de reais de dinheiro público pagando juros.
Para piorar ainda mais, estão tentando aprovar a Proposta de Emenda à Constituição nº 65 de 2023, que transforma o Banco Central em uma empresa, dando-lhe autonomia para aumentar o salário de seus diretores e funcionários sem seguir as limitações do funcionalismo público e podendo usar livremente os recursos lá alocados pela União (trilhões) para as despesas que decidirem. Será uma espécie de semiprivatização do Banco Central. Se isso vir a ser aprovado, o dano será imensurável. É urgente uma mobilização da sociedade e do governo contra essa gravíssima ameaça.
Uma Selic alta implica em óbice importante para a atividade econômica, retira recursos das famílias e custa muito caro para o setor público, que paga esses juros com o dinheiro de impostos como qualquer outra despesa. Por decorrência, juros altos aumentam a dívida pública.
Portanto, a justificativa para termos a segunda taxa de juros real mais alta do mundo (atrás apenas de um país em guerra, a Rússia) deveria ser muito bem embasada. Infelizmente, como a grande imprensa está completamente comprometida com a especulação, o Banco Central impõe algo absurdo e não é exigida dele nenhuma explicação convincente.
Em tese, o primeiro efeito dos juros em elevação é diminuir a atividade econômica, pois as empresas vão optar por não investir e as famílias vão optar por não consumir. Portanto, uma taxa demasiada só se justifica em uma economia com excesso de demanda, o que não é o caso do Brasil hoje. O Nível de Utilização de Capacidade Instalada continua orbitando pouco acima de 80%, o que não deveria trazer inquietação.
No entanto, desde o plano Real, o motivo que parece dominar a ação do Banco Central é o controle da inflação através dos efeitos de uma taxa de juros sobre a taxa de câmbio e deste sobre a inflação. Um real valorizado (um dólar custando menos reais) faz com que os produtos e insumos importados entrem por um valor mais baixo em reais e isto controlaria a inflação.
Existe uma opção na especulação financeira internacional, chamada de arbitragem, que é a de procurar países com taxas reais de juros mais alta e com Bancos Centrais ultraortodoxos que imponham uma valorização permanente das moedas locais. Com isso, aumenta a entrada de moeda estrangeira especulativa, o que ajuda a valorização da moeda local.
Isto gera lucros extraordinários para os especuladores oriundos tanto da taxa de juros elevada como da valorização da moeda local. O problema é que este é um recurso improdutivo, que não significa investimento na economia real e que vai embora no primeiro solavanco econômico, seja local ou internacional.
A inflação tem estado em torno de 4% ao ano, ou abaixo disso no último período. Não há excesso de demanda, nem expectativa de pressões inflacionárias relevantes. No entanto, a taxa de juros do Banco Central vem caindo a uma velocidade de lesma cansada, que caminha cada vez mais devagar até parar completamente.
Na reunião do Copom de junho de 2024, algo muito estranho aconteceu. O Banco Central inexplicavelmente manteve a Selic em 10,50%. Estranhamente, os diretores do BC nomeados já pelo atual governo acompanharam esta posição. Ocorre que esses mesmos diretores haviam votado por uma redução maior do que a realizada na reunião anterior. Por que teriam mudado de opinião?
Já o Presidente Lula, corretamente, manteve suas críticas aos juros altos mesmo após a fatídica reunião.
Os juros altos e inexplicáveis são um dos maiores entraves ao desenvolvimento do país e já passou da hora de terminar com isso. Nosso país tem tido uma condescendência inaceitável com esse esbulho praticado pelo BC contra a nação, inclusive pela pressão da imprensa comprometida com a usura, mas é um papel nesta tragédia exercido pela conciliação quase suicida do governo com o mercado financeiro.
4) A falsa didática da mentira neoliberal
A lógica neoliberal da dona de casa que não pode gastar mais do que recebe não se aplica a economia (além de ter um viés sexista).
Ao contrário da dona de casa, o poder público é quem emite a moeda, tendo a atribuição legal e institucional de fazê-lo. Há muito tempo não existe mais a moeda lastreada em ouro, e o nível de moeda emitido é uma decisão governamental. Pode-se argumentar que uma emissão demasiada é contraproducente, ou que os gastos fiscais não deveriam ser sustentados pela emissão monetária, ou ainda que o Brasil possui restrições legais para tal. Há teorias diferentes que sustentam visões diferentes, mas, se o requisito da boa-fé for respeitado, ninguém dirá que o poder público é igual a dona de casa. Salvo na propaganda falsa do neoliberalismo.
Mesmo assim, cabe fazer um pequeno exercício explicativo das mentiras expressas nessa pretensa didática.
Se uma dona de casa tiver uma renda de 2.000 reais, gastar 2.000 reais com as despesas da casa, mas gastar 200 pagando juros para o banco, pode-se dizer que ela está com déficit zero? Claro que não, porque na soma final sua dívida aumentou em 200 reais. Mas, na doutrina neoliberal, dizem que sim.
Se essa dona de casa mantiver sua renda em 2.000 reais, gastar 1900 com as despesas da casa, mas o gerente do seu banco for o Roberto Campos Neto e este fizer ela pagar 400 reais para o banco, pode-se dizer que sua situação fiscal melhorou? Claro que não, porque na soma final sua dívida aumentou em 300 reais. Mas, na religião neoliberal dizem que sim.
Se essa dona de casa reduzir a despesa da casa para 1.900 reais, mas não tiver dinheiro para se alimentar direito, ficar doente e perder dias de trabalho, já que é uma trabalhadora informal sem previdência, e com isso sua renda cair para 1.600 e ainda que o juro fique em 200 reais estaria correto dizer que ela está no caminho certo para melhorar sua situação fiscal? Claro que não, porque sua dívida aumentou em 500 reais. Mas os economistas do mercado financeiro consultados pela Globo News vão adorar.
E se essa dona de casa passar a gastar 2.100 reais porque fez um curso de qualificação e com isso sua renda for para 2.500 e, ainda por cima, o gerente do banco for o Guido Mantega e esse conseguir reduzir o juro para 100 reais (ficando mal com o dono do Banco), alguém dirá que a dona de casa está ficando mais pobre? Claro que não, pois na soma final a dívida reduzirá em 300 reais.
Mas a rede Globo, o dono do Banco e o Congresso pensarão que desse jeito a dona de casa vai ficar sem dívida e vai acabar o lucro financeiro que eles tanto apreciam.
E dirão: está na hora de derrubar a Presidenta.
A propaganda neoliberal acostumou a população com um conceito pouco usual no mundo. O chamado déficit primário, que na hora da divulgação aparece como “déficit público” Perguntem a um estadunidense qual o resultado primário dos EUA e ele dirá: não sei o que é isso.
O resultado primário é a receita menos as despesas totais, mas excetuando-se destas os gastos com juros. Ocorre que os juros são maiores que as despesas de pessoal, maiores que o déficit da previdência ou que os gastos com saúde, educação ou Bolsa Família.
No exemplo da dona de casa o resultado primário seria o resultado da renda menos as despesas da casa, mas sem contar que a conta só piora porque os juros não aparecem no extrato bancário. A pobre dona de casa economiza, economiza e a dívida só aumenta. Aí o gerente do banco diz: a senhora tem que economizar mais. Mas não conta quanto foi pago em juros. No entanto, deduz cada centavo da conta da dona de casa.
É como se a despesa com juros não fosse paga pelo poder público e pelo imposto de cada um de nós. Infelizmente, tenho que informar que são os impostos que pagam os juros, igualzinho a qualquer outra despesa.
Tratam os juros como se eles não existissem, embora sejam deduzidos do saldo da conta tanto da dona de casa como da conta única da União. É algo com forte viés de verdade religiosa inconteste (mas falsa), como se o gasto fiscal primário com saúde, educação, salário de servidores, Bolsa Família e previdência fosse uma despesa amaldiçoada. Demonizam o gasto público, que é sempre entendido como a despesa primária, escondendo os juros da conta.
A despesa pública não financeira é tratada como obra do diabo. Já a despesa com juros parece ter sido abençoada por Deus, e por isso não precisa nem aparecer na estatística.
A outra perna da mentira é omitir que a redução de despesas tende a implicar em crescimento econômico menor e, portanto, em uma receita menor.
Com menos crescimento, a própria capacidade de pagamento da dívida pública diminui. Por isso, é usual em finanças públicas que a dívida seja relacionada com o PIB, a relação dívida/PIB.
Além disso, não é levado em consideração que a tarefa do poder público é a melhoria das condições de vida da população e o desenvolvimento. Cortes indiscriminados tendem a ter consequências dramáticas.
A falsa simplificação neoliberal conclui, portanto, que basta gastar menos que a situação fiscal melhorará e a dívida caia. Ou que, se gastarmos mais, a dívida necessariamente vai subir. Isto não é verdade, como demonstraremos a seguir.
5) Duas políticas econômicas dois resultados
a) O período de políticas de crescimento de 2003 a 2014
De 2003 até 2014, fizemos um ensaio desenvolvimentista que, embora limitado, conseguiu ganhos expressivos no combate à pobreza, nas condições de saúde e educação, criando empregos e permitindo um razoável crescimento econômico. Dadas as condições, foi uma experiência que teve êxitos econômicos e sociais, além de ter aumentado o investimento e a estrutura. No entanto, não conseguiu produzir politização e aumento de consciência da classe trabalhadora.
Nesse período, o PIB cresceu 50,69% e o PIB per capita cresceu 33,38%. O desemprego atingiu o menor patamar da série histórica e milhões de pessoas foram retiradas da pobreza.
A média do crescimento do PIB nesse longo período foi de 3,48%. Crescer por 12 anos é bem mais consistente e relevante do que crescer por um período curto, como no voo da galinha.
Esses resultados decorrem basicamente de opções governamentais de política econômica. De forma alguma posso concordar que o que se conseguiu é simplesmente a consequência de uma melhoria nos preços das commodities. Esta versão é uma simplificação não compatível com os fatos.
Houve um significativo aumento de renda da população mais pobre. O aumento real do salário-mínimo e a redução do desemprego para menos da metade aumentaram a massa salarial. Benefícios sociais como o bolsa família produziram resultados impressionantes na redução da miséria. Em 2003, havia 61,8 milhões de pessoas na faixa de miséria, reduzindo-se esse número para 25,9 milhões em 2014 (critério antigo). Isso tudo teve efeito econômico positivo.
A demanda agregada cresceu, o que obviamente favoreceu o incremento do investimentos, uma vez que, com a segurança de haver demanda, as empresas investem mais. Portanto, as políticas sociais e salarias executadas tiveram importante papel no crescimento econômico.
A equação se tornou equilibrada na medida em que houve importantes programas de aumento do investimento público e privado. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa de Investimento em Logística (PIL) e o Minha Casa Minha Vida tiveram importante efeito no aumento do investimento. Restrições de infraestrutura, como no caso de portos, aeroportos e rodovias, foram diminuídas substancialmente através de investimentos públicos, concessões e mudanças regulatórias.
O Programa de Sustentação do Investimento (PSI), política pública gerenciada pelo BNDES, permitiu que o investimento privado pudesse ocorrer mesmo com a Selic elevada, já que a taxa de juros do PSI foi extremamente baixa. Na faixa mais subsidiada chegou a ser de apenas 2% ao ano por todo o prazo do financiamento.
A taxa de investimento que chegou a estar em 16,6 % em 2003, subiu para 20,91 % em 2013 e caiu para 19,90% em 2014, já sob o efeito deletério da Operação Lava Jato. O crescimento da taxa de investimento não foi extraordinário, mas ganha relevância se lembrarmos que as políticas neoliberais a levaram para apenas 14,56 % em 2017.
O principal motor do crescimento foram os gastos públicos que permitiram políticas de estímulo ao investimento como PAC, o Minha Casa Minha Vida, o PIL e o PSI.
Um registro fundamental é que o crescimento real médio do PIB de 3,48 % ao ano só foi conseguido com crescimento real médio anual da despesa primária de 6,48%, e que o crescimento real total da despesa primária nestes 12 anos foi de 113,1%.
Mais à frente, trataremos da regra fiscal hoje vigente, mas cabe adiantar que, na hipótese mais favorável do arcabouço fiscal, só seria possível uma despesa menor do que um terço disso. Ou seja, sob o arcabouço, o crescimento econômico e o desenvolvimento do país estarão obstruídos.
Se fossem verdadeiras as teses neoliberais que ouvimos todos os dias na grande imprensa, a dívida pública deveria ter crescido de 2003 até 2014. Afinal, se a despesa primária cresceu em termos reais 113,1% % a dívida teria que crescer.
Ocorre que a versão neoliberal esconde o essencial. Esconde que a maior parte do crescimento da dívida pública não vem do resultado primário, mas sim dos juros, que no período em questão não foram tão altos. Esconde que a receita também cresce significativamente, em especial quando existe crescimento econômico. E esconde que a estabilidade fiscal depende basicamente da economia, e que quando esta cresce significativamente, a relação Dívida/PIB cai.
A prova disso é que a dívida não cresceu. Na verdade, caiu pela metade. A relação dívida/PIB caiu de 59,9% em 2003 para apenas 32,6% em 2014.
b) O período de políticas neoliberais de 2015 a 2022
Nos oito anos seguintes (2015-2022) a política econômica foi completamente diferente. Por exemplo, já em 2015 houve redução do crescimento da despesa primária real total, que foi de 1,87%.
A partir do golpe, as teses neoliberais passaram a ser explicitamente adotadas, com a reforma trabalhista, a maior precarização do trabalho, a adoção do teto de gastos, as privatizações, a política de preços, desinvestimento e distribuição predatória de dividendos da PETROBRAS, entre outras medidas.
A economia estagnou de forma dramática. De 2015 até 2022, ou seja, em oito anos, o PIB cresceu acumuladamente apenas 1,64%, o que significa a ridícula taxa de 0,2% ao ano. Nesse período o PIB per capita teve uma queda de 4,54%. Ou seja, ao invés de termos melhorado nossa renda média, ela caiu em quase 5%. O desemprego e a situação social tornaram-se bem mais graves. A indústria, que já não vinha muito bem, deteriorou-se ainda mais.
A taxa de investimento no ano de 2014 havia sido de 19,9%. Em 2022, a taxa de investimento foi de apenas 17,59%. No último trimestre de 2022, a dificuldade se acentuou e a taxa de investimento foi excepcionalmente baixa, de 14,9%.
Ocorreram mudanças terríveis nas condições e processos de trabalho. À evolução negativa da qualidade do trabalho esperada para um mundo do trabalho cada vez mais (des)organizado pelo neoliberalismo somou-se a reforma trabalhista, os efeitos da pandemia e muitas medidas de aumento da exploração e da informalidade.
Esse preço social decorreu da opção pela austeridade. Nesses oito anos, a despesa primária real (IPCA) teve um crescimento anual de apenas 0,89 %. Este austericídio explica não apenas o desastre social, mas também o desastre econômico. O PIB teve um crescimento de apenas 0,2% ao ano, ou 1,64% nos oito anos.
De outra parte, a despesa primária total cresceu apenas 7,3% ao longo de oito longos e terríveis anos. Como a despesa primária foi contida, a escola neoliberal deveria nos garantir que a dívida pública iria cair. Mas mais uma vez isso não ocorreu, uma vez que a versão neoliberal esconde o essencial: o efeito da receita, dos juros e do PIB na dívida pública.
A receita primária real líquida cresceu apenas 9,1% de 2014 a 2022. Isso significa que não adianta nada diminuir as despesas se o resultado disso for a recessão e o baixo crescimento da receita.
Igualmente relevante é a questão dos juros. Em valores nominais, o Brasil pagou 3,4 trilhões de reais em juros nestes oito anos. Ora, esse número é três vezes superior ao déficit primário do período, que foi de 1,1 trilhão.
Portanto, qualquer tentativa de discutir a dívida pública culpando exclusivamente a despesa primária ou o resultado primário sem considerar junto os juros e o crescimento econômico não passa de uma falsificação desonesta.
A prova, mais uma vez são os números: mesmo com todo o sucateamento e piora dos serviços públicos causado pelo teto de gastos, a relação dívida/PIB cresceu dos 32,6% em 2014 para 56,13% em 2022.
6) O terceiro mandato do Presidente LULA
A vitória do Presidente Lula em 2022 ocorreu por uma diferença pequena, em um quadro de radicalização e cristalização de campos com pouquíssima racionalidade. A extrema direita acostumou seus seguidores com o uso de argumentos inverídicos, do medo, da teologia do domínio e, principalmente, com a manipulação do subconsciente.
Nesse cenário, que ainda persiste, é necessária uma mudança radical das condições de vida da população para que não percamos nenhum extrato da base social que votou no Presidente Lula. Podemos entrar no campo adversário de forma gradual, melhorando as condições de vida dos extratos médios e racionalizando o debate, hoje no campo do subconsciente. Devemos disputar a política e incentivar a organização popular com a entrada objetiva das redes de proteção social nas periferias, inclusive para neutralizar os empresários da fé. São várias ações, mas todas elas exigem um estado forte e com posicionamento político definido.
Do ponto de vista econômico, isso requer condições como crescimento, emprego de qualidade, renda, combate à miséria, serviços públicos eficazes e cuidados ambientais, dentre outras.
Dificilmente essas condições podem ser atingidas sem aumento do gasto público.
No ano de 2023, dada a PEC de Transição e outras excepcionalidades, ainda sem a vigência do novo arcabouço fiscal, o crescimento real da despesa primária elevou-se em extraordinários 12,45%. Pouco mais de um terço disso deve-se ao pagamento extraordinário de precatórios, uma monstruosa pedalada de 90 bilhões feita pelo governo Bolsonaro. Ainda que se retire os precatórios extraordinários, a despesa teve um incremento muito expressivo. A despesa pública robusta, somada a uma safra excepcional permitiu que o PIB crescesse 2,91% em 2023.
Como o pagamento extraordinário de precatórios foi no final de dezembro, este tem efeitos econômicos basicamente nos primeiros meses de 2024. Além disso, foram antecipados mais 30 bilhões em precatórios no mês de fevereiro de 2024. Essas ações dão uma esperança de que o governo tem consciência de quão recessivo é o arcabouço e tem procurado brechas para diminuir esse efeito. Na mesma linha, deve-se saudar a linha correta e ofensiva do Governo Lula no salvamento do Rio Grande do Sul. Como são créditos extraordinários, não contam para efeitos do teto do arcabouço, permitindo-se com isso uma ação humanitária absolutamente imprescindível, além de positiva para a economia.
Mas, infelizmente o efeito dessas medidas é residual e de curto prazo. Seria necessária uma estratégia bem mais ousada e clara de crescimento de longo prazo. O arcabouço fiscal sinaliza exatamente o contrário, e por isso é necessária uma análise um pouco mais detalhada de suas características.
a) O arcabouço fiscal é um erro estratégico
O teto de gastos do governo Temer foi uma excrescência tão grande que não foi cumprido em nenhum ano após sua edição. Em todos eles, houve exceções. Não era necessário, e não fazia o menor sentido econômico aprovar regras ainda mais draconianas do que a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não havia e não há nenhum motivo para, depois de anos de experiência da LRF nos quais nenhum risco fiscal relevante ocorreu, substituí-la por algo mais draconiano.
O programa de governo do Presidente eleito previa simplesmente a extinção desse teto de gastos. Mas, infelizmente, não foi o que ocorreu. Já na PEC de transição, criou-se o compromisso de que o teto de gastos só terminaria com a sua substituição por um novo arcabouço fiscal.
Esse primeiro recuo poderia não ter consequências tão graves se a substituição se desse por algo mais flexível, como é a Lei de Responsabilidade Fiscal. Embora esta tenha grandes defeitos, tem a virtude de permitir que a cada ano o governo proponha sua estratégia fiscal a partir do seu programa e daquilo que entende ser o melhor para o país. O que basicamente a LRF faz é obrigar o cumprimento do que estiver na LDO, inclusive permitindo que ela seja alterada ao longo do ano.
O mercado financeiro especulativo sempre pressiona por mais e mais concessões, mas isso não significa que devemos fazê-las. Entregar tudo ao inimigo já nos primeiros meses de governo é uma tática bastante ineficaz, especialmente se a consequência da concessão for perder força ao longo do tempo, por implicar em um governo que não consegue efetivar seu programa.
Da mesma forma, o Congresso sempre pressiona por mais e mais emendas. Mas, uma vez que o governo cedeu bastante nisso, tinha que ter exigido em troca uma legislação fiscal que atendesse a seu programa de governo.
O denominado novo arcabouço fiscal é uma lei complementar que substitui o teto de gastos do governo Temer, que estabelecia que crescimento da despesa era limitado a inflação, mesmo que o PIB e a receita crescessem bem mais do que isso.
O arcabouço mantém o teto de gastos limitado a inflação, mas com uma pequena flexibilidade. A despesa poderá crescer em até 70% da receita, mas com uma segunda trava que é um mínimo da 0,6% e um máximo de 2,5 % de crescimento da despesa real.
Ora, no período de políticas de crescimento entre 2003 até 2014, o crescimento da despesa real foi de 6,47% ao ano, muito acima do valor máximo do arcabouço. Em 2023, o crescimento da despesa foi de 12,45%, mais do que seria permitido pelo arcabouço por um mandato inteiro, ainda assim na hipótese mais favorável. Ou seja, o arcabouço fiscal é fortemente recessivo.
Nos anos de política neoliberais, a despesa real cresceu a uma taxa de 0,89%, portanto mais do que o mínimo do arcabouço que é de 0,6%.
Trata-se, portanto, de uma flexibilidade minúscula, que impede qualquer política de incentivo ao crescimento e obstrui a continuidade de políticas sociais importantíssima. Além disso, resulta em que o investimento (real) se situe em um patamar recessivo, que é apenas em torno de 60% do realizado em 2014, mais de oito anos depois. Da mesma forma, as políticas de incremento do investimento como o PAC e o Minha Casa Minha Vida serão muito comprometidas com o arcabouço.
Obviamente, que nessas condições é irreal chamar o arcabouço de anticíclico como o governo tentou alegar. Anticíclico significa antirrecessão. E o arcabouço fiscal é altamente recessivo.
Na prática, o arcabouço determina que, ao longo dos anos o resultado primário irá sempre aumentar, porque apenas uma parte da receita será gasta. Como se o poder público tivesse como único objetivo ter lucro, e um lucro sempre crescente.
No caso da saúde, da educação e do salário-mínimo o arcabouço implica em uma contradição. Como essas despesas têm regras próprias de crescimento, que são superiores ao previsto no arcabouço, no longo prazo há um conflito. A saúde e a educação têm uma regra constitucional que estabelece que estas despesas devem ser corrigidas de acordo com a receita. Como o arcabouço só permite que a despesa se eleve em uma parte do que cresce a receita, temos um problema. Pelo arcabouço, a despesa só pode subir em 70% do que aumentar a receita, e ainda por cima submetida a uma segunda trava que é um aumento máximo de 2,5%, mesmo que a receita cresça o dobro ou o triplo que isso.
Já o salário-mínimo deve ser corrigido pelo PIB, e como o PIB tende a crescer mais do que 70% da receita e, às vezes, mais do que 2,5% há uma incompatibilidade.
A economia é uma ciência social. Mas a matemática não. É uma ciência exata. E ela nos garante que a saúde, a educação e o aumento real do salário-mínimo são incompatíveis com o arcabouço fiscal.
Quando da votação do arcabouço, o governo foi alertado de que era necessário retirar saúde, educação, salário-mínimo e investimentos do arcabouço. Infelizmente, o alerta não foi ouvido.
O resultado deste grave equívoco é que agora a especulação financeira quer retirar os pisos da saúde e educação da Constituição e desvincular a previdência do salário-mínimo. E o governo ficou completamente tolhido em encaminhar o crescimento econômico através da indução do poder público. Os investimentos ficam sem fonte de financiamento e as políticas sociais contidas, frustrando a base social que votou no Presidente Lula.
Um gravíssimo problema criado pelo arcabouço e pela sanha em agradar a mídia a serviço da especulação financeira.
b) A construção de uma correlação de forças mais favorável
O principal equívoco na estratégia utilizada pelo governo para tentar melhorar a correlação de forças é a falsa ideia de que o mercado financeiro pode apoiar o governo ou auxiliar na governabilidade.
A especulação financeira e seus aliados na grande mídia corporativa podem até apoiar os integrantes da área econômica que façam o jogo neoliberal. Mas isso nem de longe significa estar comprometido com o governo
Quando a Presidenta Dilma nomeou uma área econômica de viés neoliberal para seu segundo mandato, o mercado financeiro especulativo falou que se tratava de um time dos sonhos. O time dos sonhos levou a popularidade da Presidenta para o chão. Um ano, três meses e 17 dias depois a Presidenta foi deposta. A história ensina. Quem não aprende com ela tende a revivê-la como farsa ou tragédia.
A adoção de uma conciliação com a especulação financeira e o neoliberalismo faz com que as políticas de crescimento e de atendimento das demandas sociais fiquem comprometidas. Não há convivência possível entre o arcabouço fiscal a as políticas de educação, saúde e o salário-mínimo. Não há convivência possível entre o arcabouço fiscal e o investimento público necessário para o crescimento. Não há convivência possível entre o arcabouço fiscal e o programa do Presidente Lula.
A consequência é o risco de perder parte da base social que elegeu o Presidente. Ainda que a imprensa corporativa conservadora nos apoiasse (hipótese irreal), o resultado seria negativo. É sempre importante ter presente que se trata de bases sociais cristalizadas em campos opostos. Se nossa base se desesperançar, deixará de nos apoiar ativamente, provavelmente irá diminuir sua presença nas eleições, deixando de atuar pelo convencimento da sua base de atuação e aumentando a abstenção. Mas não ganharemos nada no outro lado, pois um bolsominion (ainda que não seja terraplanista) não passará a nos apoiar só porque o mercado financeiro especulativo gosta da área econômica. Não há a menor chance disso.
A receita para uma melhoria da correlação de forças deve ser completamente diferente.
Primeiro, é preciso coerência com o programa eleito. Não se pode trair a esperança que suscitamos. Portanto, devemos governar para a nossa base, ampliando-a a partir dos pressupostos programáticos históricos do Presidente e do PT e reiterados na vitoriosa campanha de 2022. Se dissemos que vamos botar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda, é isso que devemos fazer.
Os aliados preferenciais estão no campo dos trabalhadores, com especial atenção aos setores médios que melhoraram de vida, mas não atribuem esta melhora as políticas públicas.
A retomada de emprego com qualidade pode dar ao hoje enfraquecido movimento sindical alguma chance de fortalecimento. Corolário disso é o fim da reforma trabalhista. Mas, para fazer isso é necessário um forte programa de crescimento econômico e investimentos públicos. O nível de investimento público e financiamento ao investimento privado hoje em execução não garante isso. É necessária uma dose de ação indutiva muito maior, que altere a atual ritmo da economia. Obviamente, que isso significa alocação de recursos compatíveis com um choque de investimentos.
O crescente contingente de trabalhadores por conta própria ou sem carteira precisa ser diminuído e substituído pelo emprego formal, apesar da tendência oposta do capitalismo neoliberal. Para isto serve o Estado. Para se contrapor às tendências danosas à sociedade.
Mas não é só isto. É necessário melhorar em muito as condições dos trabalhadores por conta própria (muito mais do que o tímido e talvez contraproducente projeto já produzido), sob pena de continuarmos a ver neles um exército de manobra prioritário do bolsonarismo.
A faixa de trabalhadores de renda média já esteve bem mais para o nosso lado do que nas últimas eleições. Devemos retomar nosso espaço com esta faixa de trabalhadores. Um exemplo é o aumento da isenção do Imposto de Renda para as menores faixas de renda. Há um compromisso do Presidente Lula nesse sentido que já teve uma primeira fase cumprida. Por que não a ampliar imediatamente, com a devida atenção para a construção política da isenção? Essa ação não interfere com o arcabouço fiscal e ajuda em muito a economia. Sim, o mercado financeiro não vai gostar. Mas o povo vai.
A economia solidária é um aliado importante tanto para combater o desemprego e melhorar a economia como para a politização dos processos de melhoria econômica. O Minha Casa Minha Vida poderia ser utilizado com muito mais eficiência financeira, ganhos sociais, e auxiliar na organização popular, se fosse conduzido para essa via. Da mesma forma, compras governamentais, recuperação de catástrofes, cozinhas solidárias, lavanderias solidárias etc.
Há inúmeros exemplos do que se poderia fazer. Mas até o momento não se vê uma movimentação objetiva do governo nesse sentido. Recursos robustos e uma política programaticamente clara seriam capazes de melhorar a correlação de forças nas periferias.
A pequena e média empresa sobrevivem com margens pequenas e grandes dificuldades, sendo asfixiadas pelo sistema financeiro. Como recebe pouco apoio do poder público é presa fácil do discurso da extrema direita “contra tudo que está aí”, contra as leis trabalhistas e contra a carga tributária. É perfeitamente factível integrá-las a um projeto de desenvolvimento. Mas também aí existe a necessidade de recursos robustos e programas bem desenvolvidos. Podemos tornar as empresas do setor nossas aliadas, mas não com a timidez com que agimos até aqui nessa área.
A economia real, em especial a indústria e as empresas de alta tecnologia podem e devem ser, em parte, aliadas de um projeto estratégico. Com a atual política monetária e fiscal do Brasil, isso é impossível.
Um exemplo de boa interação é o caso da Embraer. A Embraer é a terceira maior empresa de aviões do mundo, portanto uma grande empresa. Em parceria com o governo federal, desenvolveu projetos de alta tecnologia e alto valor agregado como o KC-390 e outros projetos na área de defesa, satélites e aviação. É um indiscutível caso de sucesso e de elevação tecnológica fundamental no país.
É um mero exemplo de que podemos ter aliados estratégicos na indústria, que não entrem em conflito com nosso programa.
Mas enquanto a principal aliança estratégica da política econômica governamental for com o mercado financeiro, não poderemos fazer nada disso na dimensão hoje exigida pela economia.
A questão central é que não se pode fazer aliança com interesses antagônicos aos da nossa base. Isso não significa que não devemos ampliar nosso leque e incluir setores empresariais, mesmo grandes.
Mas existe uma diferença fundamental entre se aliar a especulação financeira ou, como exemplo, se aliar à indústria. Mesmo que tenha contradições internas, a indústria pode ter interesse na ampliação de empregos e no crescimento econômico. Não temos o mesmo programa, mas podemos fazer alianças táticas porque as ações governamentais podem ter pontos em comum com o interesse da indústria. Como a redução dos juros, por exemplo. Evidentemente que não se trata de defender benesses sem contrapartida, mas da possibilidade real de alinhar interesses e ter uma ação comum com ganho para o país e seus trabalhadores.
Ocorre que a especulação financeira só tem interesse em ganhos financeiros. Não ganha com o emprego ou com o crescimento econômico. Não há nenhuma possibilidade de defendermos ações similares para o setor público. Logo, qualquer aliança ou conciliação com esses setores só ocorre se entregarmos a eles nossa alma, com enormes perdas para nossa base social e um desastre político anunciado.
A questão tributária pode ser um bom exemplo de equívocos nas alianças. Passados um ano e meio de governo, houve poucos projetos tributários sobre o setor financeiro. Deve-se reconhecer que a taxação dos fundos exclusivos foi uma medida correta, mas é pouco, face às necessidades. No entanto, houve muitos conflitos tributários com a economia real.
O Presidente Lula tem criticado, corretamente, os juros altos. Estes implicaram em um pagamento de 776 bilhões de reais ao mercado financeiro pelos cofres públicos. Seria possível recuperar parte importante do que o governo paga para a especulação através da tributação. O IOF, as reduções de alíquotas e isenções existentes para vários tipos de aplicação financeira, as próprias alíquotas do IR e CSLL poderiam servir facilmente para isso.
Não há exemplo melhor para ser colocado no imposto de renda do que o especulador financeiro. Sempre lembrando que a alíquota do ganho financeiro é muito menor do que a do trabalho assalariado. Claro que existem muitas outras áreas de concentração de riqueza e que tem tributação privilegiada. Um exemplo é a agricultura empresarial.
A taxação dos super ricos passa necessariamente por taxar o local onde mais se concentra a riqueza improdutiva: no mercado financeiro. Mas o governo tem sido demasiadamente comedido quando se trata de enfrentamentos com o mercado financeiro.
É um erro inclusive na relação com o congresso. Não é verdadeiro que apenas o setor financeiro tenha influência sobre o congresso, e que nada contra seus interesses possa ser aprovado. A economia real também pode influenciar e até nos ajudar. Mas sempre optamos por preservar o setor financeiro, que é justamente nosso maior adversário.
Além disso, não há estímulo à organização popular, que poderia ser conseguida via participação popular nas decisões governamentais.
Sem contraponto, o centrão e a extrema direita pintam e bordam e vamos aos poucos perdendo nossa força política.
A popularidade do Presidente é o principal fator de indução para que o Governo tenha apoio no Congresso. E a popularidade do governo depende em muito de uma ação pública robusta, com crescimento econômico, emprego e programas sociais eficazes.
Voltar as costas para nossa base para atender a pressão da mídia e do mercado financeiro é um erro já cometido. Sabemos as consequências.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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