Carta aberta a professora Carla de Moura
Professora Carla, não ceda ao inimigo. Se for possível, se esse texto mal escrito lhe alcançar antes da derradeira decisão, reconsidere.
Acordei cedo como faço todos os dias, e a angústia do dia foi saber de uma professora que se exonera em público e denuncia política educacional do governador Eduardo Leite do Rio Grande do Sul. A professora da rede estadual Carla de Moura teve negado seu pedido de licença qualificação para cursar doutorado em História na UFRGS.
A matéria, estampada em veículos de comunicação e amparada por notas de apoio de associações de pesquisadores de história, é contada como um feito de heroísmo e eu preciso escrever brevemente porque não concordo com essa visão e porque ela me preocupa. Gostaria que esse texto chegasse a professora Carla, a quem muito estimo, se possível antes de ter sido concluída sua exoneração. Professora Carla, sou um funcionário público.
Trabalho na secretaria do curso de Letras da Instituição que a senhora foi aprovada para o doutorado. A primeira coisa que me ocorreu quando li sua matéria foi que eu queria ter sido o secretário que recebeu sua exoneração. Assim, poderia segurá-la por um ou dois dias, para depois chamá-la novamente, esperando que estivesse mais calma. Nessa conversa, eu tentaria expor meus argumentos para convencê-la a não se exonerar.
A primeira questão que eu destaco é que a senhora tomou uma decisão individual. Decidiu de sua própria vontade pedir demissão de um cargo para o qual foi escolhida por concurso público. Isso por si só é problemático, porque és uma professora estadual e poderia ter consultado seu sindicato. Quantos professores estaduais passam por problemas semelhantes ao seu? Esse não é um problema só seu, mas sim de uma categoria profissional. Não posso aqui cometer injustiças.
Tudo o que sei sobre o caso é o relato da matéria que pude ler sobre o assunto. Não sei se chegou a procurar o sindicato. Mas o que sei é que sozinha decidiu abrir mão do seu cargo de professora. Essa saída individual para problemas coletivos é tudo o que o neoliberalismo de Eduardo Leite quer. Com essa atitude, a senhora premia e reforça o projeto neoliberal que espera denunciar.
Tudo o que Eduardo Leite quer é a exoneração de uma profissional qualificada. A fila de espera é enorme e a senhora poderá ser substituída por profissional de menor qualificação e portanto mais barato para o orçamento. Qualquer patrão agradeceria. Nós servidores públicos precisamos entender que a estabilidade, conquista da luta dos trabalhadores, pode ser usada como trincheira na luta antineoliberal. Numa guerra, trincheira deve ser defendida. Não entregamos trincheira aos inimigos. Ao entregar o cargo para Eduardo Leite, é isso que a senhora faz na prática.
Professora Carla, não deixe que a forte emoção de sua indignação justa a faça cair numa armadilha. Essa atitude, na prática é um suicídio profissional. O Brasil não oferece oportunidades principalmente para profissionais altamente qualificados como a senhora. Justamente por sua alta qualificação, terá grandes dificuldades de recolocação. Sua reivindicação é justa e legítima, no contexto de sua categoria profissional. Mas espero sinceramente que reconsidere essa decisão.
Eu lembro das centenas de milhares de professores que perderam salários por se lançar em greves gigantescas. Sem salários, foram apoiados pelos sindicatos, por ações comunitárias, até mesmo para pagar suas contas básicas. Eu lembro dos milhares de trabalhadores que perderam seus empregos em greves do setor privado, e que foram amparados na medida do possível pelos sindicatos da sua categoria ou ações de ajuda mútua.
A senhora tomou uma decisão isolada. Terá apoio material de quem quando a poeira baixar e a emoção passageira das redes sociais cessar? Até quando aqueles que compartilham seu ato como se fosse heroico, vão lembrar que a senhora existe? As notas das associações de pesquisadores pagarão as contas da senhora em caso de desemprego? Quem luta sozinho, arca com as consequências solitariamente.
Professora Carla, não ceda ao inimigo. Se for possível, se esse texto mal escrito lhe alcançar antes da derradeira decisão, reconsidere. Não se deixa vencer pelo orgulho, pelos holofotes passageiros. Reúna-se a seu sindicato, a seus alunos, a sua comunidade. Essa luta não é só sua. Precisamos derrotar o projeto neoliberal de Leite, Bolsonaro, essa catrefa toda.
Talvez não tenha êxito no meu intento. Carla pode nem ler o que escrevi aqui. E se ler, pode simplesmente não concordar. Tem esse direito, evidentemente. Mas talvez outros possam ler e pensar sobre isso. Pensar que as soluções individuais não devem se sobrepor às coletivas. Pensar que o projeto neoliberal é grande e poderoso, imaginar que vamos enfrentá-lo com medidas individuais, por mais corajosas que possam parecer, é tudo o que os neoliberais querem que acreditemos. Não podemos dar esse gosto a eles.
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