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    Regina de Aquino

    Professora titular aposentada do DMAT-CCE-UFES

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    Carta ao meu primo

    Quando você comemorou o resultado das eleições desse ano, clamando que “o PT morreu”, eu fiquei assustada

    Caro Primo,

    Estive pensando nos seus comentários aos meus posts lá da rede social e resolvi escrever essa carta para você. Tem coisas que precisam de espaço para serem ditas e que servem a mais de um parente.

    Temos uma raiz comum de família: nosso Bisa, imigrante italiano, que veio para o Brasil no final do século 19, formou família com uma senhora descendente de ameríndios e pretos, teve um punhado de filhos, todos batizados e sem nunca se casar com ela. Era funileiro, e se instalou com sua família na pequena cidade, quase uma vila, onde eu nasci e que, talvez, você nem conheça. Ele fazia bules, tachos, arrimos dos alpendres e calhas ornamentais para telhados, tudo que pudesse tomar forma a partir de uma folha de flandes ou cobre e alguns pedaços de madeira. Pensa bem, ter uma profissão e economias que te permitisse abrir seu próprio negócio, no Brasil do começo do século 20, foi uma “super” vantagem para toda a família, não é mesmo?

    Tenho um bule feito pelo Bisa e que o meu avô, irmão do teu avô, guardou e eu preservei. Confesso, tenho apego às relíquias de família. Elas trazem histórias e vão contando as nossas, como chegamos até aqui, me permitindo saber quem sou, de onde vem minha história. Até ter saudade de algo que nunca vi, como o Mar Mediterrâneo, algo que demorei a conhecer. Meu avô contava que o nosso Bisa ficava a olhar distante como se visse o mar de sua infância. A primeira vez que fui a Espanha e vi o mar de Málaga, mirei longe, com o olhar comprido, como se pudesse enxergar dali, a Rivello do Bisa, e devolver seu olhar de saudades. Foi emocionante, de marejar olhos.

    Você sabia que o Bisa morreu cedo, aos 48 anos? Ele teve uma penca de filhos, e conseguiu dar boa formação profissional aos mais velhos e garantir estudo básico a todos na escola salesiana da pequena cidade que morava. Os dois filhos mais jovens foram para as forças armadas, a Bisa viúva já não tinha posses para tantas despesas.

    Esses dois jovens se casaram com duas irmãs e tiveram uma caminhada de vida bem próxima. Conviveram bastante, ao longo da vida, mais unidos do que com os outros irmãos, que deixaram cedo a região em que morava o Bisa. Ambos irmãos chegaram ao topo da carreira militar. Ambos eram “revolucionários” para seu tempo, meu avô foi para a reforma com o golpe militar e o nosso tio-avô foi perseguido, teve que fugir por anos e se esconder até a anistia em 79, era um convicto adepto do socialismo científico. Conversava muito com este nosso tio-avô, nessa minha curiosidade de saber de tudo. Ele contava, com orgulho, que o pai, nosso Bisa, era um anarquista. Na minha cabeça de menina eu fazia uma confusão achando que era algo ligado com uma bagunça enorme, uma anarquia! Divertido, neh? Mas, no final do século 19, significava um antagonismo ao socialismo, e na minha mente juvenil e bem-humorada, era uma maneira eficaz de acabar com a luta de classes...acabando com as classes!

    Não é um privilégio podermos contar nossas histórias de família, conhecer nossas origens e antepassados, ter atrás de nós gerações bem sucedidas das quais herdamos valores, princípios, cultura e patrimônio? É isso aí! nosso Bisa garantiu para nós, há 120 anos atrás, que não seríamos miseráveis, nem pobres, que frequentaríamos escolas, nos alimentaríamos com dignidade, teríamos profissão e sustento, talvez até, ficássemos ricos.

    Agora, primo, olha em volta, ou melhor, olha para fora do seu mundo, estica o olhar para o nosso país, para a vida que tem o povo preto, os ameríndios, a pobreza e a miséria que os rodeia, quem sabe você encontra a mulher do Bisa e sua primeira filha.

    Quando você comemorou o resultado das eleições desse ano, clamando que “o PT morreu”, eu fiquei assustada. E me perguntei “Que alegria é essa em ver morrer a principal força de esquerda do país?”, de fato, a única força atual no contrabalanço ao poder econômico e as convicções ultra liberais que escravizam o povo ameríndio, preto e pobre?

    E pensava “será que ele não sabe da onde veio, os privilégios e vantagens que ganhou, por gerações, sobre outros jovens dessa terra Brasil? Será que ele não sabe que os ameríndios e pretos foram empurrados para miséria e impedidos de sair de lá, por centenas de anos? Será que ele não percebeu que os governos populares do PT lutaram para derrubar esse paredão que impede a gente pobre, os ameríndios e pretos, do qual ele é um descendente, de prosperar e ter vida digna?

    Esse nosso mundo, primo, se compõe de personalidades, individualidades, que juntas formam a pluralidade deste mundo. É a diversidade que faz deste mundo um lugar para vivermos com plenitude, um lugar divino. Quem não aceita esta diversidade rejeita também a força e a beleza do mundo. Acredito que você respeite minhas convicções e talvez até se alegre porque são diferentes das tuas. Isso já ocorreu no passado, com os irmãos dos nossos avós, e todos seguimos em frente, com nossos privilégios e vantagens culturais, prosperando numa vida tranquila. Para nós, em geral, nada muda ou mudou pouco.

    Eu, primo, ainda tenho muitas noites de pesadelos com a crianças brasileiras e suas famílias desamparadas, vagando pelas ruas, famintas e doentes. Sem escolas, casa ou futuro. Quando sentar diante de sua mesa farta, nas festas de fim de ano, lembra da Bisa.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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