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J. Carlos de Assis avatar

J. Carlos de Assis

Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.

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Carta ao presidente Lula

Não tem sentido combater a alta da demanda com aumento da Selic, seguindo “expectativas” subjetivas do mercado, principal interessado nela, como faz o BC

Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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Caríssimo Presidente,

Conhecemo-nos décadas atrás, em São Bernardo do Campo, ABC paulista, quando ainda iniciava, na ditadura, sua trajetória espetacular de líder trabalhista, que o levaria, ao final, ao cargo mais elevado da República. O que mais impressionou em nossa longa entrevista sobre as greves então em andamento foi sua determinação em não subordinar-se a ideologias, seja de esquerda, seja de direita. Como repórter do “Jornal do Brasil”, perguntei-lhe diretamente: “O senhor é socialista, ou comunista?” “Nenhum dos dois”, respondeu. “Sou pelo  trabalhador”.

É claro que o senhor era sincero. Entretanto, na medida em que se colhiam, no País, os frutos das vitoriosas greves do ABC, o senhor acabaria se tornando um ícone das esquerdas, tendo em vista a força demonstrada junto aos trabalhadores, e que estava se espalhando por todo o País. Com isso, acolheu as propostas, especialmente de um grupo de intelectuais paulistas e líderes sindicais, para a  criação do PT, que se tornaria a ponte de sua entrada no processo político brasileiro. Foi um caminho longo, mas eficaz para sua chegada à Presidência da República.

Entretanto, Presidente, o senhor sabe perfeitamente que as forças políticas no Brasil de hoje são extremamente diferentes das que prevaleciam naquela época. Não estamos divididos entre esquerda socialista e direita capitalista. Estamos divididos entre os que defendem o capitalismo financeiro predatório, hipertrofiado financeiramente e concentrador de renda, e os remanescentes de uma esquerda perdida dentro de uma bolha de ideias contraditórias de política econômica. Dessa bolha, sinto dizer, mesmo seu governo não está conseguindo escapar.

Ocorreu-me fazer essa reflexão depois que minha mulher voltou hoje de um supermercado carioca apavorada com a alta dos preços de alguns alimentos,  e os  indícios de desabastecimento de outros. “Pronto, pensei, vem aí mais uma rodada de alta da Selic, supostamente para controlar a ameaça de inflação, embora neste momento ela pareça controlada”. Entretanto, quando, atualmente, o mundo todo enfrenta alguma forma de inflação, devida a diferentes causas, o pior que pode acontecer é a alta dos juros (Selic), em lugar de sua queda.

Invoco a condição de economista não subordinado a ideologias de esquerda ou de direita para lhe afirmar, com absoluta convicção, que a retomada da inflação que vem aí nada terá a ver com desequilíbrio fiscal ou taxa de juros baixa. Terá a ver, sim, com as condições objetivas de mercado, ou seja, com relações de oferta e procura no mundo real. Diante das guerras, dos bloqueios políticos ao comércio e dos desastres climáticos extremos, a demanda inevitavelmente vai subir, pois será necessária a reposição de perdas provocadas pelas enchentes e pelo fogo.

Entretanto, não tem nenhum sentido combater a alta da demanda com aumento da Selic,  seguindo “expectativas” subjetivas do mercado financeiro, principal interessado nela, como faz o Banco Central. Se há crescimento da demanda, a saída para o governo é estimular a oferta com redução dos juros a fim de contribuir para o aumento do investimento produtivo. Com isso,  estabiliza-se  a inflação sem redução do desemprego e sem afetar interesses básicos da Sociedade.  

Sei muito bem que a redução dos juros impactará o mercado cambial. Haverá alguma desvalorização do real e desincentivo à entrada de capitais do exterior. Contudo,  essas, se as destinadas ao setor produtivo, não serão afetadas, uma vez garantidas por nossas altas reservas cambiais (cerca de UR$ 355 bilhões) e nosso forte comércio exterior. Além disso, Presidente, a desvalorização controlada do real será benéfica para a indústria, que luta para recompor seu parque produtivo, que foi quase completamente destruído justamente pela forte valorização do real no lançamento da nova moeda.

De fato, o senhor deve lembrar-se de que essa excessiva valorização do real que ocorreu no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1990 - quando se propagava que se tornou possível ao trabalhador comprar um frango (ou uma cerveja) por um real -,o brasileiro passou a dar preferência aos bens comprados no exterior, atraído pelo dólar mais barato. Isso era justificado pelo combate à inflação. Veja agora, Presidente, quanto custa um frango ou uma cerveja!  

Essas reflexões são um confronto direto com as “ideologias” conservadoras. Não estou apresentando uma ideologia alternativa, mas uma proposição científica com base no funcionamento efetivo das economias atuais, divididas entre o setor produtivo na economia real, em declínio,  e o setor financeiro hipertrofiado e concentrador de renda, em plena “prosperidade”. A propósito: para atacar nosso sistema financeiro hipertrofiado é fundamental acabar com a Selic, como tenho defendido. Ela é a base da moeda remunerada, um cancro inflacionário na economia.  

O senhor tem criticado eventualmente as consequências do neoliberalismo. No fundo, ele não tem nada de novo, pois apenas quer conservar o status quo. É o momento de atacá-lo nas causas. Tomei a iniciativa desta carta porque espero que chegue a suas mãos algum dia, de alguma forma. O recado principal que poderia lhe dar, caso tivesse acesso ao senhor como tive décadas atrás no ABC, seria que exija de seus assessores que façam com que a produção no País (oferta no mercado) acompanhe a demanda. Para isso, é essencial eliminar a Selic inflacionária, reduzir drasticamente a taxa de juros que desestimula investimentos, produção e criação de empregos, a fim de estimular a oferta e estabilizar dinamicamente a inflação.

O senhor costuma dizer que aprendeu economia com a sábia dona Lindu, sua mãe. O conselho dela era que “não se pode gastar mais do que se ganha”. Entretanto, Presidente, o equilíbrio entre o que se gasta e o que se ganha se dá de duas formas: ou reduzindo o que se gasta, ou aumentando o que se ganha. No seu caso pessoal, aparentemente o senhor seguiu a segunda alternativa, deixando Garanhuns, em Pernambuco, e procurando oportunidades de emprego e renda melhores no Sul. No caso de uma empresa ou de um país, ao que se ganha pode ser acrescentado o crédito, desde que seja barato, responsável, destinado a investimento produtivo e com retorno garantido para pagá-lo posteriormente. 

Entretanto insisto, senhor Presidente, que a Selic seja extinta e substituída por outra taxa de juros em operações do Bacen num mercado financeiro reformado. É que ela se tornou um indexador de quase toda a economia. Baseada em “expectativas” subjetivas de inflação, corre à frente e puxa para cima a própria inflação real medida pelo IBGE (IPCA), que ela se propõe combater.  Além disso, como indexador diário da “moeda remunerada”, que só existe no Brasil, serve para aumentar a já absurda concentração de renda no País, com as chamadas “operações compromissadas” do Bacen atualizadas monetariamente por dia. 

Seu Governo conseguiu reduzir a taxa de desemprego no último semestre para inéditos 6,6%  desde 2012, e aumentar gradualmente a renda média do trabalhador. O senhor acha que a diretoria do Bacen gostou disso? Leia a última ata do Copom: ela diz claramente que reduzir o desemprego e aumentar a renda do trabalhador é um risco de retomada da inflação. Portanto, devemos nos preparar para um novo aumento da Selic, a pretexto de controlar a inflação, com cortes na demanda e desestímulo ao investimento produtivo e ao aumento do emprego. Não seria melhor reduzir os juros com o objetivo oposto de estimular a produção e a oferta no mercado, atendendo à demanda crescente e  assegurando o equilíbrio inflacionário dinâmico?

Essa situação não mudará quando Gabriel Galípolo assumir a presidência do Bacen no próximo ano. O problema é da institucionalidade monetária e fiscal em que, como o atual presidente do banco, Roberto Campos, estará enquadrado. 

Sei que o senhor encontra-se também numa posição extremamente desconfortável, pois é prisioneiro dessa mesma institucionalidade, expresssa no “arcabouço fiscal” herdado do governo “ideológico” do neoliberal FHC. Esse arcabouço teve de ser negociado politicamente pelo ministro Haddad para viabilizar o início de seu governo em face da maioria de um Congresso hostil. Felizmente, agora, para minha surpresa, o ministro Flávio Dino, do STF, teve o bom senso de abrir um caminho alternativo provisório para o senhor no campo fiscal: autorizou o Executivo, para enfrentar os desastres ambientais, a enviar para o Congresso medidas provisórias que autorizam despesas à margem do “arcabouço” e da meta fiscal.   

Finalmente, senhor Presidente, corremos os imensos riscos e estamos sofrendo  consequências fiscais sem precedentes de desastres climáticos extremos. Eles exigirão cada vez maiores recursos públicos e privados  para que sejam enfrentados, ou para que nos adaptemos a eles, já que são inevitáveis. O ministro Flávio Dino abriu uma janela importante para isso, provisoriamente, no campo fiscal, ao autorizar o Executivo a recorrer a medidas provisórias extraorçamentárias, à margem das metais fiscais, para que o governo enfrente os efeitos das mudanças do clima. 

Entretanto, o caminho tem que ser aberto, institucionalmente, também pelo lado monetário. Diante disso, ouso sugerir, a fim de ampliar a participação pública no processo decisório de uma estratégia de política econômica de longo prazo, que seja convocado um Conselho da Sociedade Civil, com participação diversificada de empresários e economistas de diferentes correntes, para debater, de forma objetiva, acima de ideologias, os rumos econômicos a tomar em nome da Segurança Nacional.

 Com isso, tendo em vista as forças conservadora poderosas que sustentam as atuais políticas fiscais e monetárias, talvez a Economia Política brasileira possa ser mudada de baixo para cima, mediante pressão popular, conforme aconteceu com a mobilização nacional a partir do ABC que levou ao fim a ditadura militar de 64.

Com  minha grande admiração, JC.

P.S. É óbvio, senhor Presidente, que não tenho a menor pretensão de que o senhor venha a responder essa carta. Certamente nem vai lê-la. Gostaria, porém, que, seguindo a lição de Platão, para quem o conhecimento resulta da dialética, ou seja, do confronto de ideias opostas, alguém que seja contra o que  aqui se expõe me dê a oportunidade de contestá-lo, de forma civilizada e democrática.

*Jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor aposentado de Economia Política da UEPB, e atualmente economista chefe do Grupo Videirainvest-Agroviva e editor chefe do jornal online “Tribuna da Imprensa”, a ser relançado brevemente.    

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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