Chico Buarque: perderam o pudor
"Ao comparar os tempos da ditadura militar (1964/1985) e o que a sociedade brasileira vive hoje com a ascensão do bolsonarismo, Chico Buarque sinalizou a regressão que sofremos", relata o jornalista Marcelo Auler
Ao comparar os tempos da ditadura militar (1964/1985) e o que a sociedade brasileira vive hoje com a ascensão do bolsonarismo, Chico Buarque sinalizou a regressão que sofremos. Embora ele admita que com os militares vivemos debaixo de torturas e da violência nos porões, lembrou que na época, mesmo com a existência de grupos de direita como o Comando de Caça aos Comunistas – CCC, “ninguém torturava ninguém na rua, ninguém saía com taco de beisebol para matar mendigo na rua“.
Hoje, entende que “esse governo, essas pessoas que estão no poder e às margens do governo são paranoicas. São doentes, completamente doentes, e alguns poucos se orgulham da violência.” Em seguida falou da perda da compostura pela “extrema direta e a extrema da extrema direita”:
“Esse sujeito foi eleito presidente da República, um cara que exalta a tortura, não é? Então, não há mais vergonha da tortura, não há mais vergonha de se assumir como partidário da tortura, da violência contra os mais fracos, contra os moradores de rua, contra os indígenas, o racismo explícito… (Na ditadura militar) existia. Tudo isso existia lá, mas era abafado, entende? Era como se houvesse um certo pudor“.
O diagnóstico de Chico foi ao produtor musical Marcelo Cabanas e ao jornalista Beto Feitosa. em uma conversa gravada no dia 19 de setembro – data do aniversário do educador Paulo Freire – e postada na página do conjunto vocal MPB4 do Facebook, no dia 30. Trata-se de um projeto que Cabanas e Feitosa estão fazendo com gravações semanais sobre a vida do quarteto vocal. O pequeno trecho da conversa em que Chico faz a comparação está editado abaixo.
“Esta democracia é frágil”
Chico admite que as agressões à esquerda, ou como lembrou, “aos comunistas e adversários do regime” já existiam, mas eram dissimuladas, não se assemelham com o que vivenciamos hoje. Muito provavelmente, por conta da internet e das redes sociais, que na época não existiam.
“É curioso, esse tipo de agressão já existia, estamos vendo uma espécie de repeteco…, mas era diferente. Bom, não havia as redes sociais, essa coisa toda, não havia essa estupidez disseminada dessa forma“. Na sua análise, lembrou que “os ataques aos supostos comunistas, aos adversários do regime e tal eram velados (…) Mas não havia isso na rua“.
Ele lembrou do CCC, que chegou a fazer ataque a artistas que resistiam. Como foi o caso da peça “Roda Viva”, escrita por ele em 1967 e que ao ser apresentada em julho de 1968, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, foi alvo de um ataque do grupo da direita, com agressões aos artistas e depredação do cenário. Em setembro do mesmo ano a peça estreou no Rio Grande do Sul, a violência se repetiu e o espetáculo acabou proibido pela censura. Como Chico lembrou, ele próprio chegou a ser ameaçado, através de telegramas que diziam que ele seria “a próxima vítima”.
Na análise feita, de forma bastante superficial, o cantor e compositor apontou que a diferença é que naquela época vivíamos sim uma ditadura, enquanto hoje, estamos em uma democracia. Mas advertiu também que a democracia atual corre riscos:
“Nós vivíamos debaixo sim de uma ditadura. Não que agora seja um regime democrático absoluto. Há sérios arranhões à democracia que a gente está assistindo agora e que a gente procura … essa democracia é frágil ainda, a gente procura… evitar que a gente caia realmente em uma ditadura. Na época era uma ditadura militar, não era outra coisa. Não era dissimulada“.
Como lembrou, os ataques, porém, não eram ostensivos como se costuma assistir hoje. “Não havia isso na rua. Isso já estava estabelecido, é como se essa extrema direita já estivesse representada pelos militares que estavam no poder e não havia necessidade de exacerbar esse clima agressivo“.
“São paranoicos, são doentes, completamente doentes”
Em seguida apontou a diferença para os dias atuais. De maneira jocosa, colocando entre aspas”, admitiu até que naquela loucura toda poderia haver uma certa “civilidade” que hoje não ocorre:
“Aqui, agora, é diferente porque são muitos grupos de extrema direita e de extrema da extrema direita… e essa loucura da internet… e esse presidente da República, celerado, louco, estimulando as agressões às pessoas e à própria democracia… isso, quer dizer… o que existia antes, de uma forma mais, vamos dizer, “civilizada” (fazendo sinal de entre aspas)… as pessoas eram presas, e eram torturadas, e morriam dentro da cadeia. Mas ninguém torturava ninguém na rua, ninguém saía com taco de beisebol para matar mendigo na rua...”
Hoje, segundo ele, o clima é mais perverso, “porque disseminado na sociedade como um todo“. Naquela época, em que predominava a censura, pessoas mais bem informadas sabiam do que se passava nos porões da ditadura: “não se falava muito, mas quem estava bem informado sabia da existência da tortura, sabia da existência toda desta violência nos porões, (era) como se essa brutalidade toda estivesse encoberta...”
Na verdade, enquanto se beneficiaram economicamente, muitos alegaram desconhecer: “muita gente podia dizer, na época, que não sabia, como diziam. ‘Ah não sabia que havia isso tudo’. O país estava indo muito bem, a economia estava indo muito bem…, o milagre brasileiro, isso foi no tempo do Médici, até 73, quando veio a crise do petróleo e tal… até então a classe média estava muito satisfeita com o governo, estava bem… estava ganhando dinheiro e não era obrigada a saber o que se passava nos porões e não precisava ser tão agressiva porque já estava com a faca e o queijo na mão.”
Ele aponta a diferença para os que hoje estão no poder e em torno dele, mostrando que são doentes. Lembra que tudo iniciou-se com o voto do então deputado Jair Bolsonaro a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff:
“Agora não, esse governo, essas pessoas que estão no poder e às margens do governo são paranoicas. São doentes, completamente doentes, e alguns poucos se orgulham da violência. Eles partem… eles começam lá atrás, com o voto do Bolsonaro pela cassação… pelo impeachment da Dilma. Começa ali, quando no discurso dele, ele exalta o conhecido torturador Brilhante Ustra.”
“Eles não gostam dos brasileiros”
A partir da eleição de Bolsonaro à presidência da República, segundo Chico Buarque, perdeu-se o pudor de defender a tortura, as perseguições aos mais fracos, algo que antes existia, mas era dissimulado:
“Então, isso passou a ser… esse sujeito foi eleito presidente da República, um cara que exalta a tortura, não é? Então, não há mais vergonha da tortura, não há mais vergonha de se assumir como partidário da tortura, da violência contra os mais fracos, contra os moradores de rua, contra os indígenas, o racismo explícito… existia, tudo isso existia lá (na ditadura), mas era abafado, entende? Era como se houvesse um certo pudor.”
Para mostrar a dissimulação, o cantor e compositor cita casos de racismo que presenciou quando foi chamado a depor ou foi detido, durante o período da ditadura. Por conta do “pudor”, porém, era tudo dissimulado, não abertamente como ocorre hoje:
“Racistas eles eram todos. Lembro que no meu contato com autoridades do governo, às vezes em que fui detido, em que fui prestar depoimento, volta e meia escapava comentários racistas a respeito de colegas meus… Não esqueçam que eu sou branco, então eles insultavam colegas meus, ‘como é que você anda com fulano?’… isso tudo existia, mas não era … não tão abertamente, como hoje.”
Provocado por Cabanas que falou da perseguição aos artistas e ao meio cultural, Chico Buarque mostrou que o governo Bolsonaro e o seu entorno desprezam a cultura, por terem uma visão colonizada:
“O desprezo que eles têm pela cultura brasileira… não falo só da gente, músicos…, é de tudo, é da cultura brasileira. Basta ver onde estão os museus? Onde? Está tudo parado, está tudo desbaratado. Não é porque eles são perversos, são… eles não gostam… desprezam. A cabeça deles está em outro lugar. Quer dizer, a música brasileira é uma porcaria, o cinema brasileiro é uma porcaria, o teatro, a literatura brasileira… Nada disso presta… Eles têm uma visão colonizada, eles têm… na verdade, eles não gostam do Brasil, não é? Eles não gostam do povo brasileiro, eles não gostam das manifestações culturais do povo brasileiro, eles possuem um desprezo por isso“.
Ouça abaixo os comentários de Chico e no Facebook do MPB4 a íntegra da conversa.
Edição do vídeo: Alexandro Auler
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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