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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    China: um país, duas sessões, três ameaças

    Voltar rapidamente às questões internas é de importância essencial para uma nova arrancada no grande tabuleiro de xadrez

    A reunião anual do Congresso Nacional do Povo (Foto: Xinhua)

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    Por Pepe Escobar, para o Asia Times

    Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

    As principais conclusões das Duas Sessões do 13º Congresso Nacional do Povo já são de domínio público.  

    Resumindo: nenhuma meta para o PIB de 2020; um déficit orçamentário de pelo menos 3,6% do PIB; um trilhão de yuans em títulos do tesouro especiais; corte de 2,5 trilhões de yuans nas taxas/impostos das empresas; um aumento de 6,6% no orçamento militar; e o compromisso de "apertar os cintos" assumido por todos os níveis do governo".  

    O foco, como já era previsível, é recolocar nos trilhos a economia interna da China após 0 Covid-19, de modo a permitir um crescimento sólido em 2021. 

    Igualmente previsível foi que o foco, na esfera anglo-americana, recaiu sobre Hong Kong – por exemplo, no novo sistema legal a ser aprovado na próxima semana, arquitetado para evitar a subversão, a interferência estrangeira ou "qualquer ato que ponha em grave perigo a segurança nacional". Afinal, como ressalta um editorial do Global Times, Hong Kong é uma questão de segurança nacional  extremamente delicada. 

    Esse é o resultado direto das informações recolhidas pela missão de observação chinesa sediada em Shenzhen sobre a tentativa, por parte  de um grupo heterogêneo de quinta-colunistas e black blocs armados de destruir Hong Kong no último verão, o que por pouco não aconteceu. 

    Não é de admirar que o front dos "combatentes pela liberdade" anglo-americanos  esteja lívido. Acabaram-se os panos quentes. Acabaram-se os almoços gratuitos. Acabaram-se os protestos pagos. Acabaram-se os black blocks. Acabou-se a guerra híbrida. Papai Pequim inventou uma dança nova.

    As três ameaças

    É absolutamente essencial situar as Duas Sessões dentro do incandescente grande contexto geopolítico e geoeconômico da nova e real Guerra Fria - guerra híbrida incluída - entre os Estados Unidos e a China.

    Vamos, portanto, nos centrar em um insider americano: o ex-consultor de segurança nacional da Casa Branca, o General HR McMaster, autor de Battlegrounds: The Fight to Defend the Free World (Campos de Batalha: a Luta para Defender o Mundo Livre), a ser lançado em breve.

    O livro não poderia ser mais claro em termos de como o "mundo livre",  em pentagonês,  percebe a ascensão da China. É o que pode ser chamado de o ponto de vista do complexo industrial-militar-midiático-de segurança. 

    Pequim, segundo McMaster, vem adotando uma política de "cooptação, coerção e dissimulação" centrada em três eixos: o Made in China 2025;  as Novas Rotas da Seda ou Iniciativa Cinturão e Rota; e uma "fusão militar-civil", que pode ser vista como o vetor mais "totalitário", voltado para a criação de uma rede global de inteligência em espionagem e ciberataques. 

    Essas seriam as três ameaças. 

    Digam o que disserem as más línguas do Beltway, o Made in China 2025 continua vivo e em ótima saúde - mesmo que a terminologia tenha sido omitida.

    A meta, a ser alcançada com base em um investimento de 1,4 trilhão de dólares, é lucrar com o conhecimento acumulado pelas empresas Huawei, Alibaba, SenseTime Group e outras, com o objetivo de desenhar um ambiente contínuo de Inteligência Artificial. Nesse processo, a China deve reinventar sua base tecnológica e reestruturar toda a cadeia de fornecimento de semicondutores para que ela seja sediada na China. Todos esses pontos são não-negociáveis.  

    Cinturão e Rota, em pentagonês, é sinônimo de "clientelismo econômico" e "impiedosa cilada da dívida". Mas McMaster entrega o jogo quando descreve o pecado capital chinês como sendo "o objetivo de suplantar a influência dos Estados Unidos e de seus principais parceiros". 

    Já "fusão militar-civil", em pentagonês, significa o repasse rápido "ao exército de tecnologias roubadas em áreas como espaço, ciberespaço, biologia, inteligência artificial e energia". Ou seja, "espionagem e ciber-roubo". 

    Em suma: é essencial "evitar" que esses comunas chineses se tornem "ainda mais agressivos na promoção de sua economia estatista e de seu modelo político autoritário". 

    A diáspora chinesa com a palavra 

    Apesar dessa avaliação binária e bastante medíocre, McMaster coloca uma questão interessante: "Os Estados Unidos  e outras nações livres devem encarar as comunidades expatriadas como um ponto forte. Os chineses que vivem no exterior - se protegidos da interferência e da espionagem de seu governo - podem representar um contrapeso significativo à propaganda e à desinformação de Pequim".  

    Comparemos essa postura às percepções de um verdadeiro mestre em diáspora chinesa: o formidável professor Wang Gungwu, nascido em Surabaia, na Indonésia, que completará 90 anos em outubro próximo e é autor de um delicioso e perspicaz livro de memórias,  Home is Not Here.

    Para estrangeiros, não há explicação melhor para a mentalidade predominante em toda a China: 

    "Pelo menos duas gerações de chineses aprenderam a se dar conta de que o Ocidente moderno tem ideias e instituições valiosas a oferecer, mas a turbulência de grande parte do século XX também os fez perceber que as versões de democracia da Europa Ocidental talvez não fossem tão importantes para o desenvolvimento nacional da China. A maioria dos chineses parece aprovar políticas que coloquem a ordem e a estabilidade acima da liberdade e da participação política. Essas pessoas acreditam que é isso que o país precisa neste estágio e se ressentem de serem constantemente tachadas de atrasadas e politicamente não-liberadas". 

    Wang Gungwu enfatiza que os chineses pensam de modo bem diferente da trajetória "universalista" do Ocidente, chegando assim ao cerne da questão: "Se a República Popular da China conseguir oferecer uma rota alternativa para alcançar a prosperidade e a independência, os Estados Unidos (e outros países do Ocidente) veriam esse sucesso como uma ameaça fundamental a seu domínio (e da Europa Ocidental) sobre o mundo. Esses que se sentem ameaçados fariam então todo o possível para deter a China. Creio que a maioria dos chineses pensa que é isso que os líderes americanos estão preparados para fazer". 

    Nenhuma avaliação do Deep State americano tem a mínima chance de se sustentar se ignorar a riqueza da história chinesa: "A natureza da política chinesa, quer sob imperadores, senhores feudais, nacionalistas ou comunistas, sempre foi tão enraizada na história chinesa, que nenhum indivíduo ou grupo de intelectuais  conseguiria oferecer uma nova visão capaz de atrair a maioria do povo chinês. Afinal, a maioria parece ter aceito a legitimidade da vitória da República Popular da China no campo de batalha, somada à sua capacidade de trazer ordem e um propósito renovado a uma China rejuvenescida". 

    Um longo telegrama remixado

    O procurador federal Francis Sempa, autor de America’s Global Role e professor adjunto de ciência política na Wilkes University, comparou a avaliação da "ameaça chinesa" de McMaster ao lendário "longo telegrama" escrito por George Kennan em 1947, sob o pseudônimo de X. 

    O "longo telegrama" desenhou a estratégia subsequente de contenção da União Soviética, chegando mesmo à construção da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Ele foi o ápice do projeto da Guerra Fria.

    O longo telegrama atual, que é uma remixagem do original, apesar de toda a sua mediocridade talvez venha a ter pernas longas, também. Sempa - o que depõe a seu favor - pelo menos, admite que "as tímidas recomendações políticas de McMaster não irão levar à derrubada gradual nem ao abrandamento do poder do comunismo chinês".  

    Ele sugere – o que mais seria? – a "contenção", que poderá ser "firme e vigilante". E ele reconhece, o que também conta a seu favor, que essa contenção deve se "basear em uma compreensão da história chinesa e da geografia do Indo-Pacífico". Mas então, mais uma vez, ele entrega o jogo, bem ao estilo Zbigniew Brzezinski: o mais importante é "a necessidade de evitar que uma potência hostil venha a controlar os principais centros de poder do continente eurasiano". 

    Não é de admirar que o Deep State dos Estados Unidos identifique a Cinturão e Rota e suas extensões espalhadas por toda a Eurásia, tais como a Rota da Seda Digital e a Rota da Seda da Saúde, como manifestações de uma potência hostil". 

    O fulcro da política externa dos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, foi o de evitar a integração da Eurásia - agora ativamente perseguida pela parceria estratégica Rússia-China. As Novas Rotas da Seda cruzando a Rússia - parte do plano de Putin para a Grande Parceria Eurasiana – fatalmente irão se ligar à Cinturão e Rota. Putin e Xi irão novamente se encontrar pessoalmente em meados de julho, em São Petersburgo, para as cúpulas gêmeas dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai, e darão continuidade às discussões em maiores detalhes. 

    Pairando em silêncio sobre as Duas Sessões, portanto, temos a convicção das lideranças chinesas de que retornar rapidamente às questões internas é de importância essencial para uma nova arrancada no grande tabuleiro de xadrez. Essas lideranças sabem que o complexo industrial-militar-midiático-de vigilância não terá o menor escrúpulo em empregar todas as estratégias geopolíticas e geoeconômicas possíveis para sabotar a integração eurasiana.  

    O Made in China 2025; a Cinturão e Rota - o equivalente pós-moderno das Antigas Rotas da Seda; a Huawei; a superioridade manufatureira chinesa; os grandes avanços na luta contra o Covid-19 – tudo se converte em alvo. E no entanto, paralelamente, nada - nem a remixagem do longo telegrama nem as ruminações rançosas sobre a Cilada de Tucídides  – conseguirão impedir que uma China rejuvenescida  venha a atingir suas metas.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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