Chumbo e o horror da escravidão imposta pelo latifúndio a uma comunidade quilombola inteira no Pantanal
Filme de Severino Neto dá voz às mulheres do quilombo escravizado por uma fazenda de cana de açúcar e fábrica de álcool em Poconé (MT)
As vozes de 16 mulheres pontuam durante uma hora e dez minutos o relato da crueldade de uma fazenda de cana de açúcar e sua usina de álcool que escravizou uma comunidade inteira na zona rural de Poconé (MT), no Pantanal mato-grossense. O documentário “Chumbo” (2022), do diretor Severino Neto, transporta para tela o horror das condições análogas à escravidão, a prostituição infantil, a fome e toda sorte de humilhação vivida pela comunidade do mesmo nome.
“Chumbo” é capaz de, nos relatos das entrevistadas e das imagens que os emolduram, escancarar o horror vivido pela comunidade e ao mesmo tempo mostrar leveza, poesia e resignação. É um soco na boca do estômago. E é, especialmente para mim, na condição de, na época, repórter e editor do principal jornal de Cuiabá, A Gazeta, ter feito diversas coberturas dos episódios que se desenrolavam lá e não possuir a capacidade de perceber a fundo aquele horror todo.
Daí a importância de um documentário, do cinema. Sempre menciono que o documentário é, em essência, uma grande reportagem. O é. Entretanto, o cinema nos prolonga a percepção e inflama a sensibilidade ao ponto necessário para entender, em perspectiva, os fatos e ultrapassar as cortinas dele. Em especial o cinema de Severino Neto, com seu forte e imprescindível conteúdo e contexto social.
A comunidade quilombola do Chumbo é uma das 42 existentes no Pantanal de Mato Grosso, distribuídas pelos municípios de Poconé, Barão de Melgaço, Nossa Senhora do Livramento e Santo Antônio de Leverger. Por quase 20 anos (de 1993 a 2012) a Alcopan, usina de álcool e sua fazenda de cana de açúcar, sugou a comunidade inteira. Instalou a exploração de mão de obra escrava à medida que não pagava salários, mantinha homens, mulheres e crianças sob condições desumanas e permitia que crianças e adolescentes fossem levadas à prostituição.
As mazelas foram tão intensas e incessantes que casos de suicídio e demência ocorreram. A fome em meio àquela fartura da fazenda aprofundava a crueldade. Tanta foi que a comunidade ainda vive hoje, percebe-se pelos relatos na sua parte final do filme, uma espécie de “síndrome de Estocolmo” ao elogiar a presença da Alcopan dez anos após ter cessado aquele período de duas décadas de escravidão.
Para quase todas as entrevistadas, a Alcopan não foi de todo tão ruim assim. Para exemplificar, mencionam, entre outras situações, o fato de tudo de ruim que existiu no período dela ainda persistir. Ignoram, talvez, na minha opinião, que foi a usina que levou as mazelas para a comunidade que não consegue se livrar delas.
A Alcopan foi obrigada a fechar em 2012 justamente devido a uma ação do Ministério Público Federal que a denunciou pela manutenção do trabalho análogo à escravidão.
As imagens que Severino Neto transporta para a tela possuem o delicado quente daquelas paisagens pantaneiras e a rotina das entrevistadas alternadas com o frio do preto e branco no transcorrer de suas falas. É ali que o violento não apenas no sentido físico e emocionalmente aflora e mostra a desintegração completa do humano, ainda que com poesia e momentos de humor das personagens. Todas elas, aliás, delicadas e alegres, esperançosas.
Impossível não chorar. Um de seus momentos mais impactantes é o único relato masculino, em off, emoldurado por uma animação inquietante. Ali é possível sentir também a crueldade de alguns daqueles seres humanos oprimidos que não conseguem suplantar o horror que vivem e abandonam os seus mais frágeis. Ou fogem ou se matam, como relata uma das mulheres no início do filme.
O jovem diretor Severino Neto tem uma considerável produção de documentários e ficção. Um de seus filmes de maior sucesso, “A Batalha de Shangri-lá”, seu primeiro longa-metragem de ficção, codirigido com Rafael Carvalho, está para aluguel no catálogo da Apple TV, Claro + TV, Vivo Play, Google Play e no YouTube.
“Chumbo” ainda percorre festivais pelo Brasil e exterior para depois ser oferecido às plataformas e cinemas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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