Cinema: A Argélia de Karim Aïnouz
“O Marinheiro das Montanhas” e “Nardjes A.”, dois filmes de Karim Aïnouz sobre a Argélia, chegam juntos aos cinemas
A terra onde todos se chamam Aïnouz
Foi em 2019 que Karim Aïnouz viajou pela primeira vez à Argélia, terra de seu pai. Na ocasião, foi tomado pelo desejo de filmar uma jovem artista e militante da luta popular em Argel, o que resultou no longa Nardjes A. (leia abaixo). Mas seu propósito principal era outro. Ele queria conferir essa faceta de sua origem. Estava na capital de passagem rumo à região da Cabília, no norte do país. Quem sabe descobriria naquela paisagem montanhosa algum parente, algum traço seu, alguma coisa que o ajudasse a compreender Majid, o pai.
O Marinheiro das Montanhas é essa viagem, traduzida em imagens de grande subjetividade já a partir do trajeto de navio até Argel, quando a câmera do celular de Karim traduz o mal-estar de uma travessia desagradável. Assim seguimos pelas ruas e bares de Argel, onde ele estabelece tênues relações com passantes. Imagens de um transeunte: velozes, imperfeitas, de várias texturas e suportes, comentadas pela narração incessante do diretor em primeira pessoa.
O dispositivo do filme é uma espécie de carta póstuma a sua mãe já falecida. Vez por outra, Fortaleza invade a tela como memória e possível aproximação entre as terras da mãe e do pai. A história do casal vai sendo recontada pelo filho em trânsito. Majid e Iracema se conheceram durante uma residência científica nos EUA. Apaixonaram-se e ela voltou ao Brasil grávida de Karim, na esperança de que Majid viesse se juntar a eles ou vice-versa, o que nunca aconteceu. Majid foi lutar na guerra da independência da Argélia, e Karim só foi conhecê-lo em Paris aos 18 anos.
Uma história de abandono que o cineasta rememora sem rancor enquanto faz indagações e suposições sobre o que seria sua vida em circunstâncias diferentes. Até que chegamos, enfim, à aldeia de Tagmut Azuz, onde Karim vai descobrir que Aïnouz é um sobrenome mais comum do que imaginava. O que se segue deve ficar preservado como surpresa para quem ainda vai ver o filme. Basta dizer que é emocionante, poético, divertido, e se instala num ponto difuso entre o acaso e a fabulação.
Não é a primeira vez que Karim se debruça em filme sobre sua ascendência. O lado cearense já mereceu um curta, Seams, de 1993, em que ele documentou as memórias de sua avó e tias-avós num contexto de machismo e patriarcalismo (veja aqui, acionando as legendas em português). O Marinheiro das Montanhas – cujo título se refere à “calentura”, uma alucinação dita comum a marinheiros – é um dos mais belos filmes do diretor de O Céu de Suely, Madame Satã, A Vida Invisível, Aeroporto Central e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo.
Uma curiosidade adicional: a luta pela independência da Argélia, lembrada aqui como o fato heroico que foi, legou ao país uma dinastia de opressores contra os quais se insurgia recentemente a geração de Nardjes A. Ao mostrar essas duas faces, Karim faz jus às complexidades da nação que poderia ser sua, não fosse um capricho do destino.
O rosto da nova Argélia
Em 8 de março de 2019, Karim Aïnouz estava em Argel, terra de seus ascendentes. Chegou lá pela primeira vez com a intenção de fazer O Marinheiro das Montanhas, um filme sobre suas origens . Mas aquele 8 de março era uma sexta-feira, dia do hirak semanal, movimento popular que se levantou contra a perpetuação do então presidente Abdelaziz Bouteflika no poder, já por 20 anos. Era também Dia Internacional da Mulher. Karim havia conhecido Nardjes Asli, jovem autora de teatro e ativista apaixonada do hirak. Ela o fez mudar temporariamente o rumo do filme, que passou a ser Nardjes A.
Moderna, bonita e cheia de vitalidade, Nardjes se maquiou para sair às ruas e engrossar a multidão. Karim a seguiu da manhã à noite, filmando-a com celulares. Este é um filme sobre a massa e também sobre a consciência de uma única mulher. Por isso volta e meia o rumor coletivo dos protestos reflui para dar lugar ao fluxo de pensamentos de Nardjes.
Como tantos jovens argelinos naquela marcha, ela não abdica da alegria e da esperança como formas de resistência. Há um sentimento bem árabe na forma como os jovens de Argel se manifestam, com muito canto, danças, gestos e sorrisos largos. Em dado momento, a passeata estaciona para as preces islâmicas no meio da rua. Um rapaz tem o cuidado de recolher o lixo deixado por seus companheiros.
A juventude se rebela efusivamente contra “a velha Argélia”, representada agora pelos antigos heróis da revolução de 1962 que afundaram em corrupção, autoritarismo e hegemonia no poder. Aos 82 anos, Bouteflika concorria ao quinto mandato consecutivo, ao qual renunciaria por força dos protestos. Os avós de Nardjes foram revolucionários, seu pai era comunista, mas seus ideais foram traídos pelos libertadores que se tornaram opressores.
Karim segue Nardjes obsessivamente como indivíduo e, ao mesmo tempo, como eixo de interação com o coletivo. Registra seus contatos com os pais e amigos antes, durante e depois da longa jornada daquele dia. Ela não é uma heroína, nem mesmo uma personagem exemplar de filme político. Por ser alguém relativamente comum, oferece uma metonímia instantânea da luta popular contemporânea. O que a anima é uma incansável perspectiva de futuro.
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