Cinema: Intérprete audiovisual do Brasil
O documentário “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema” traz uma síntese da obra e do pensamento do mestre cineasta, feita com admiração e carinho
A abertura com imagens de uma grande sala de cinema e de um projetor lançando sua luz no espaço, ao som da música orquestral de Tim Rescala, anuncia alguma coisa muito clássica por vir. Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema começa em tom de exaltação, mas felizmente não será esse o diapasão predominante no filme. Ao contrário, o que teremos é a trajetória do cineasta contada quase sempre por ele mesmo, no seu costumeiro tom plácido e sorridente.
É assim que ele se reporta a suas origens, sua formação entre o western e o cinema revolucionário soviético, a descoberta de um cinema possível com o neorrealismo italiano, e por aí afora. As diretoras Aída Marques, grande conhecedora de sua obra, e Ivelise Ferreira, viúva e colaboradora de Nelson, foram buscar os materiais de arquivo em que ele se expressava sobre seu trabalho. Poucos acréscimos são feitos a essa linha, que eu chamo de “outrobiografia póstuma”, aliás muito presente em documentários biográficos recentes. Vejam-se os filmes sobre Grande Otelo e Roberto Farias, sendo também exibidos no Festival do Rio.
Entre os poucos adendos feitos às entrevistas de arquivo e às cenas de filmes estão as tomadas feitas recentemente de locações de Rio Zona Norte e Vidas Secas. A casa de Fabiano e Sinhá Vitória é revisitada pelo diretor mais de 50 anos depois. Uma pesquisa atenciosa foi encontrar ótimas referências de Nelson ao xará Rodrigues, de quem adaptou Boca de Ouro, e de Jorge Amado sobre a transposição de Tenda dos Milagres. A mise-en-scène de alguns filmes também merece insights esclarecedores do diretor, como a já conhecida “morte” da cachorra Baleia em Vidas Secas e a filmagem de Boca de Ouro em estúdio cenografado. A produção e a campanha pela liberação de Rio 40 Graus ocupa bons 14 minutos, seguidos pelas descobertas do sublime Vidas Secas, filme fundamental para a estética e a temática do Cinema Novo.
Bem a propósito, o período do chamado “exílio em Paraty”, talvez o de maior teor de invenção e liberdade na obra de Nelson, ganha uma montagem engenhosa de Luiz Guimarães de Castro, mesclando cenas de Fome de Amor, Azyllo Muito Louco, Como Era Gostoso o Meu Francês e Quem é Beta?. A essa altura da abordagem cronológica, já fica clara a importância de Nelson junto a outros grandes intérpretes do Brasil. Sua filmografia exala a compreensão da multiplicidade básica que compõe o nosso país.
Filmes como Amuleto de Ogum, Memórias do Cárcere e A Música Segundo Tom Jobim coroam uma obra admirável, voltada para os aspectos fundadores da nossa história e da nossa cultura. A qualidade dos originais já bastaria para tornar esse documentário imprescindível. Mas o trabalho de Aída e Ivelise os restitui de maneira sóbria e muito simpática.
É claro que, num filme desse tipo, haverá sempre o que gostaríamos de ver além do que está posto. Uma consideração de Nelson sobre sua atuação como galã de Mandacaru Vermelho, por exemplo, seria muito bem-vinda. Ou alguma referência a filmes importantes como Cinema de Lágrimas, A Terceira Margem do Rio e Fala, Brasília. Entende-se que obras menores como Jubiabá e Brasília 18%, além de sua passagem pela Academia Brasileira de Letras, tenham ficado de fora. Considerando a extensão da obra de Nelson e a necessidade de um recorte, só podemos nos deleitar com essa síntese feita com carinho e admiração.
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