Cinema: Passagem da bolha à realidade
Mix de ficção e documentário, “Transe” evoca muito do que vivemos durante a campanha eleitoral de 2018: a descoberta de um abismo político
Há vários transes em Transe. De saída, o transe por que passava o país em 2018. A campanha presidencial trazia à tona um país desconhecido para muitos de nós. Uma parcela imensa da população entrava numa espécie de transe delusório, de componentes masoquistas, optando por Jair Bolsonaro nas eleições.
A campanha é não só o pano de fundo, mas também a matéria real em que se movem os personagens do filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães. No centro de um pequeno grupo de jovens cariocas moderninhos está Luísa (Luísa Arraes), atriz da montagem de Grande Sertão: Veredas por Bia Lessa. Sim, a atriz é ela própria a personagem, num misto (transe?) de documentário e ficção. Ela compartilha festas, performances, drogas, amor livre e incursões ao transcendentalismo, tudo embalado por canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Vive numa bolha de diversidade e progressismo, justamente aquilo que mais provocou reações ultraconservadoras naquele estágio da vida brasileira.
O espectro de uma vitória da extrema-direita quebra o cristal daquela redoma e joga Luísa no fosso da realidade do país. Ela descobre que a simples ideia de polarização é insuficiente para se compreender como gente do povo, trabalhadores honestos, negros, etc se bandearam para o bolsonarismo. Eis o transe da moça na tentativa de conciliar o inconciliável e assimilar o aparentemente inassimilável.
Em sua estrutura desamarrada, que procura emular o estilo de vida dos personagens, Transe acaba refletindo muito do que sentimos em 2018. A perplexidade e as tentativas de decifrar o momento afloram nas discussões entre eles, e também deles com pensadores reais como o Pastor Henrique Vieira e o teórico da contracultura Claudio Prado.
O contraponto entre as falas criminosas de Bolsonaro e o cotidiano vanguardista de Luísa e sua turma informa bastante sobre o abismo existente no Brasil, o que não deixa de ser preocupante. Luísa em particular vive seu transe entre a bolha e a realidade: vai para a rua fazer vira-voto, discursa em ônibus, grita "Ele não" na Cinelândia e nos Arcos da Lapa. O resultado, como sabemos, foi frustrante.
Como uma espécie de coro grego, as canções de Caetano e Gil rompem o naturalismo dominante e dão margem a intervenções musicais de Luísa e Ravel Andrade. Pena que o país não permitiu que se atingisse o "acorde perfeito maior" de que fala Caetano.
Talvez este filme tivesse chegado melhor em 2019 ou 2020, uma vez que hoje o Brasil vive um momento inverso, de recomposição de esperanças e de forças para novas lutas. Ainda assim, não perdeu nada do que quis expressar sobre o transe por que passamos em 2018. Tecnicamente, é bem sucedido no hibridismo de seus registros e na forma como a fotografia de Daniel Venosa opera o improviso e a espontaneidade em favor de uma dramaturgia do instante e do desejo.
>> Transe está nos cinemas.
O trailer:
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