Claudia Leitte e o Axé de Yeshua
A baiana de São Gonçalo demoniza, mas monetiza com a cultura africana", critica Ricardo Nêggo Tom
O grande e saudoso compositor Itamar Assumpção, entre tantas outras composições geniais, escreveu "Aculturado", que fala sobre a confusão cultural que acomete a maior parte dos brasileiros. "Culturalmente confuso, brasileiro é aculturado. Não saca que um cafuzo mestiço não é mulato. Que apito toca o Caruso. Que apito toca Bach", diz um trecho da letra, que me lembra a polêmica envolvendo a cantora de axé Cláudia Leitte, que, depois de convertida ao evangelismo, se recusa a citar o nome de orixás nas letras das músicas que canta. Como no trecho da música "Caranguejo", onde ela substituiu "joga flores no mar saudando Yemanjá" por "joga flores no mar saudando meu rei Yeshua", que seria o nome de Jesus em aramaico, segundo alguns estudiosos. Mas por que ela ainda canta esse “tipo” de música, se a sua nova religião não permite que seus fiéis se assentem "na roda dos escarnecedores"?
A confusão cultural vigente no Brasil também pode ser chamada de racismo cultural, ou ainda de apropriação da branquitude sobre outras culturas não brancas. Já a confusão de Claudia Leitte também parece estar relacionada à sua cognição. Em entrevista concedida à rádio Metrópole, em 2018, quando perguntada se a axé music enfrentava uma crise, a carioca mais carioca do Brasil respondeu que "procurar onde está o erro não é o caminho. O caminho é consertar o erro. Tenho que fazer música com a galera do funk, com as duplas sertanejas, mas não pode ser uma coisa só do axé." Eu não entendi nada. Creio que os leitores também não. O fato é que alguém que se propõe a corrigir um erro sem saber onde ele está talvez não devesse ter as suas opiniões levadas tão a sério. Embora seu raciocínio deixe transparecer uma intenção: modificar a essência do referido gênero musical. Quem sabe entregá-lo a Jesus para que ele o salve de sua origem preta, demoníaca e pecadora. Assim como os colonizadores fizeram quando invadiam outros continentes para roubar as terras dos seus legítimos proprietários.
Fazer o axé aceitar a Yeshua como seu senhor, em Salvador, não será uma tarefa das mais fáceis para Miss Milk. Claro que não podemos subestimar o poder de convencimento de uma mulher branca numa sociedade racista, mesmo que ela não tenha absolutamente nada de convincente a nos dizer. Como é o caso de Cláudia. Pelo menos do ponto de vista histórico e cultural. Aculturada e confusa, a pastora do carnaval da Bahia desconhece que o significado da palavra axé se refere à força de realização e manifestação do poder divino. Yemanjá, a orixá feminina que Leitte não quer nem falar o nome, é uma dessas manifestações dentro das religiões de matriz africana. Na mitologia yorubá, ela é a rainha das águas, mares e oceanos. Crenças à parte, precisamos trazer ao debate outra questão que, por vezes, passa despercebida. O protagonismo da branquitude continua pautando o debate, mesmo quando essa branquitude está equivocada ou mal-intencionada.
Assim como a nova musa do Império Serrano, Poliana Roberta — que mandou um beijo para a já falecida Dona Ivone Lara —, ao viralizar nas redes com seu racismo religioso, Claudia Leitte rouba a cena, assim como tenta roubar a cultura africana para o projeto de poder neopentecostal, do qual ela é um dos instrumentos de manipulação dentro do meio artístico, e se mantém como o centro das atenções. Isso tem a ver com a construção social que o branco arrogou para si, como o ser oficial, o legítimo, o padrão, o normal. Aqueles que os demais devem ter como referência de tudo, sobre tudo e a partir da sua legitimidade existencial, social, cultural e intelectual. Cláudia Leitte sabe, por exemplo, que Margareth Menezes, atual ministra da Cultura, é muito mais cantora de axé do que ela e representa com maior legitimidade a cultura preta que deu origem ao segmento. No entanto, seu complexo de protagonismo, apenas por ser branca, permite que ela manifeste todo o seu desconhecimento sociocultural, em defesa dos valores conservadores e da manutenção da dominação colonizadora na nossa sociedade.
Quando Ivete Sangalo “macetou” o apocalipse de Baby Consuelo, ela estava dando um tom de resistência ao projeto comercial e colonizador que pretende “santificar” a axé music, tornando-a mais branca e cristianizada. Mesmo sendo uma mulher branca, Ivete nunca quis se sobrepor à essência cultural africana do axé. Assim como Daniela Mercury, que sempre reverenciou os orixás em suas músicas. Justamente a menos baiana entre todas ousa se posicionar como a salvadora e redentora do gênero musical mais popular da Bahia. Não se assustem se Claudia aparecer tomando um copo de leite em cima do seu trio elétrico e disser que está apenas fazendo uma referência ao seu sobrenome artístico. O saudoso Dorival Caymmi um dia classificou o axé como “vulgar e banal”. Mas sua principal crítica era quanto ao uso da palavra yorubá para dar nome ao segmento, o que ele talvez considerasse um sacrilégio cultural. Mal sabia Dorival que alguns anos depois de sua ácida opinião sobre o gênero, alguns iriam considerar mais doce morrer no mar nos braços de Yeshua do que de Yemanjá.
Não creio que Claudia Leitte seja tão ousada a ponto de tentar reescrever Caymmi e perguntar se “você já foi a São Gonçalo?” ou mudar a letra de “Canto do Obá” e cantar “meu pai Yeshua” ao invés de “meu pai Xangô”. Porém, é bem provável que ela se sinta uma das santas, digo, musas do Pelourinho de Jorge Amado. Uma versão carnavalesca da viúva Perpétua, aquela que guardava o “axé” do falecido marido numa caixa de presente. Eu gostaria de saber como seriam as reações se religiosos de matriz africana, por exemplo, cantassem músicas cristãs com as letras modificadas. Se a clássica “Segura na mão de Deus” fosse cantada como “Segura na mão de Exu”? Se a gospel comercial “Faz um milagre em mim” virasse “Faz um ebó em mim”? “Com Xangô eu quero fugir, pra mais longe que eu puder...” Ou se “Ninguém explica Deus” fosse alterada para “Ninguém explica Ogum”? Tá repreendido em nome de Oxalá! Enfim, a cultura branca não costuma tolerar apropriações culturais, nem a presença de não brancos como protagonistas de suas histórias. Algum preto já cantou a Tarantela? Quantos pretos vocês já viram tomando cerveja artesanal na Oktoberfest? Quantos papas pretos a Igreja Católica já teve?
A depender de Claudia Leitte, em breve, o carnaval da Bahia terá os trios elétricos batizados com nomes de personagens bíblicos. O Ilê Aiyê Filhos de Abraão vai abrir o desfile, seguido por Pipoca de Josué, Trio Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, Harmonia do Salmo, Asa de Anjo, Chiclete com Maná, Jesus e Uma Noites, Beto Aramaico e Compadre Salomão, e por aí vai. Compre o seu abadá para o camarote do apocalipse, onde Baby Consuelo estará ganhando almas para “Jesus” e anunciando o fim da odisseia humana na terra. Coitada da pequena Eva!
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