Colo e Vingança
'É hora de a esquerda parar com tanta autocomiseração e se valorizar mais. A democracia que temos existe por conta de nossas lutas', afirma Sara Goes
Mencionei, em um texto difícil de elaborar, que uma das minhas gestações perdidas foi marcada por muita violência. Mesmo tendo pouco pudor para escrever, descrever em detalhes a perda dessa gestação exige mais saúde mental e habilidade do que disponho, mas posso resumir: pari um filho morto. Uma ferida que gerou trauma e um processo jurídico por violência obstétrica. O impacto daquela negligência me marcou tão profundamente que mergulhei em um período de obscuridade cujas memórias são frágeis e difusas. Embora não consiga recordar cada detalhe com precisão, busquei apoio jurídico e tentei um número razoável de sessões de terapia até ser encaminhada a um psiquiatra.
Durante a primeira consulta descrevi tudo o que lembrava do abortamento, acreditando que o médico teria interesse nos fragmentos daquela experiência. Cada detalhe dolorido da minha história foi narrado com a rigidez de um estenotipista. Pensei milimetricamente em cada palavra, como se seguisse uma ABNT do luto. Criei duas metas imaginárias naquele primeiro contato com o médico: a primeira, não deixar passar nenhuma informação, como se estivesse prestando depoimento à polícia; a segunda, não chorar, para que minha credibilidade não se esvaísse.
Imaginem, então, que eu narrava o pior momento da minha vida pela oitava ou décima vez a alguém que eu sabia que deveria, mas não conseguiria me ajudar. O médico me ouviu atentamente, sentado em um sofá ao meu lado, enquanto eu tomava cuidado para não desviar o olhar, temendo parecer insegura. Depois de um tempo que não sei quantificar, ele me disse algo tão necessário que mudou tudo em mim: "Minha filha, você precisa de colo... e vingança."
Perceber que você precisa de cuidado pode soar banal, mas é um ponto de virada difícil de encarar, especialmente para mulheres, como eu, que vêm de famílias fortes e matriarcais, cuja vó, tias e mãe se acostumaram a carregarem nas costas os mais diversos dramas. E, já que aqui tenho dividido alguma intimidade, assumo que é esse o laço que desejo tecer: este é mais um texto sobre a esquerda brasileira, visto através dos olhos de alguém pessoalmente fragmentada, mas que, politicamente se mantém firme, apesar de magoar e decepcionar pessoas pelo caminho. Tenho também consciência de que ao expor minhas experiências pessoais para criar elos com fenômenos políticos, corro o risco de deslegitimar minhas próprias argumentações e, consequentemente, minar a confiança que tento estabelecer. Mas aqui estou arriscando: é imperativo que a esquerda brasileira se sente no divã (no meu caso era apenas uma cadeira de escritório sem rodinhas), esqueça por um momento de tudo que elaborou na academia ou nas lives e reflita sobre suas necessidades internas. Esquerda, amiga, você precisa de colo... e vingança.
O clima de autocrítica excessiva que permeia a quase totalidade dos discursos de esquerda nos coloca em um redemoinho de auto-sabotagem. Precisamos reconhecer nossos erros, mas sem permitir que isso se transforme em lamúria e derrotismo. O perdão a si mesmo deve ser um passo crucial para reconstruir a confiança e a solidariedade entre nossos militantes e apoiadores. Somente ao nos acolhermos e valorizarmos nossas conquistas, mesmo que parciais, poderemos fortalecer nossa identidade e resgatar a capacidade de sonhar com um futuro melhor. É hora de a esquerda parar com tanta autocomiseração e se valorizar mais. Precisamos olhar em retrospecto para os desafios que enfrentamos, reconhecendo que a democracia que temos hoje existe por conta de nossas lutas.
Estamos em um embate político que define nossos tempos. Se a extrema direita se aproxima do discurso religioso, devemos lembrar que também tivemos um relacionamento profundo com as escolas eclesiais de base. Se a penetração da extrema direita na academia causa pânico, é crucial não esquecer que as universidades ainda são locais de produção científica forjados em nossas lutas. E se as bases de nossas sociedades estão dominadas pelas falácias do empreendedorismo, lembremos da pecha do "pão com mortadela" que carregamos até o verão passado. Não estou elaborando uma falsa simetria. O jogo da extrema direita é sujo e criminoso, mas nós já vimos esse filme. O campo de batalha é um velho conhecido e nossa experiência pode ser um aliado valioso daqui para frente. Precisamos nos lembrar da força e resiliência que temos como classe trabalhadora.
Minha vingança foi um processo na justiça, embora eu tenha fantasiado com ações mais gráficas. Nossa vingança será retomar os espaços de luta e conquistar território. A esquerda não pode se contentar com intermináveis análises diante da ascensão de discursos e práticas que ameaçam a democracia e a justiça social. Precisamos nos reerguer e enfrentar a extrema direita com determinação e estratégia, reocupando as trincheiras que são nossas por direito.
Amiga, calma: no segundo turno das eleições de 2024, os candidatos apoiados por Bolsonaro enfrentaram derrotas significativas em várias cidades. Em Belém, o delegado Éder Mauro (PL), conhecido como jagunço do bolsonarismo, foi derrotado por Igor Normando (MDB). O apoio de Helder Barbalho a Normando dividiu os votos progressistas, uma vez que Lula havia declarado apoio a Edmilson Rodrigues (PSOL). Em Manaus, Capitão Alberto Neto (PL) perdeu para David Almeida (Avante). Em Goiânia, Fred Rodrigues (PL) foi vencido por Sandro Mabel (União Brasil), candidato de Ronaldo Caiado. Em João Pessoa, o ex-ministro da Saúde de Bolsonaro durante a tragédia da pandemia, Marcelo Queiroga (PL), foi derrotado por Cícero Lucena (PP). Em Niterói, Carlos Jordy (PL) foi derrotado, e em Belo Horizonte, Bruno Engler (PL) perdeu para Fuad Noman (PSD). Em Curitiba, Cristina Graeml (PMB) foi vencida por Eduardo Pimentel (PSD), e em Palmas, Janad Valcari (PL) perdeu para Eduardo Siqueira Campos (Republicanos). Em Fortaleza, centro do meu universo, André Fernandes (PL) foi derrotado por Evandro Leitão (PT) com uma diferença de apenas 10.838 votos. Essas derrotas representam um enfraquecimento expressivo do bolsonarismo em várias regiões do país.
O segundo turno em São Paulo e em Fortaleza (do qual levarei alguns anos pra me recuperar) mostrou que aos 45 minutos do segundo tempo entendemos que focar excessivamente nas redes sociais deixou lacunas e que campanha deve ser feita com o pé na rua, relembrando nossas raízes e retomando contato direto com o povo. Uma vingança política, no sentido mais amplo da palavra e não mesquinha dos pequenos espíritos. A vingança da esquerda é a coragem coletiva de reivindicar nossos e novos espaços com as forças que se fizerem necessárias, pois não estamos apenas lidando com adversários políticos; estamos enfrentando uma luta cultural e ideológica. A capacidade de nos unirmos em torno de um propósito comum e de nos apoiarmos mutuamente será essencial para resistir e avançar. E que venha 2026.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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