Conto vampiresco
O capitão Iancu dizia que tinha sido um partisano de Tito – o Marechal Tito – nos Balcãs, mas todos sabiam que era mentira dado a sua fama de mitomaníaco
O amanhecer na fria e lúgubre Transilvânia é sempre um alívio para os aldeões e habitantes daquela terra distante da velha Romênia. Situada na região centro-oeste do país e cortada pelas montanhas dos Cárpatos, bosques e florestas densas, rios que serpenteiam as montanhas, castelos medievais e contos assombrosos de figuras da noite, vampiros afamados pelo sugar do sangue humano.
Na região há uma cidade importante que é Brasov que viveu períodos muito tensos nos últimos anos. A cidade era governada por uma mulher sábia e altiva, a professora de matemática Vana Drusu. Uma mulher resoluta, corajosa e intolerante com os sugadores de sangue humano. Este o grande problema das Vilas e Cidades dos Cárpatos; problema que atormenta há muito as populações naturais. A Romênia, sabemos, é um país pobre da Europa oriental e extensivamente de todo continente europeu. Convive com problemas que parecem insuperáveis, problemas medievais em uma sociedade que parece resistir a transição dos tempos; que entrou desengonçada na modernidade, que se fixou em imaginários sociais na composição de sua própria imagem, muito embora um mistério insondável a atormente, qual seja, essa sociedade paralisada em seus espelhos se aflige com um fenômeno curioso: ela não tem reflexos de si mesmo no espelho. Quero dizer: não tem uma imagem própria.
Esse fenômeno varia de um lugar a outro naquela região, mas sobretudo em Brasov isso é particularmente muito grave. Os místicos dizem que são consequências dos ataques dos vampiros, pois eles espalham um vírus que torna opaca a imagem das pessoas vítimas de suas mordidas. Os psicólogos dizem que essa opacidade da imagem se dá em função de uma subjetividade rala daquele povo. Já os físicos e os geógrafos atribuem o fenômeno à obliquidade da luz que corta aquele hemisfério impossibilitando que as imagens ou autoimagens se deflagrem perante os espelhos.
Noves fora os problemas reflexos, Brasov, a cidade que contaremos nossa história, teve, como disse antes, uma grande alcaide – alcaidessa, como ela preferia que fosse chamada dando força ao substantivo feminino --, a professora Vana Drusu, e esta resolveu enfrentar as criaturas horrendas daquele lugar, quiçá, para resolver finalmente esses grandes problemas que afligem sua população. Diga-se, havia muita esperança na força moral e intelectual dessa mulher.
As forças do mal, no entanto, foram mais uma vez mais poderosas e a professora sofreu um Golpe, sendo covardemente destituída dos poderes que se lhe conferiram o povo de Brasov. Liderou o movimento farsesco um homem velho, velhaco, de uma antiga família da região, os Nosferatu. Seu nome: Mikael Nosferatu dizia bastante de sua ascendência. Antigos cavaleiros templários, ligados as campanhas dos Cruzados que empesteou de sangue àqueles tempos medievos a Europa e o Oriente. A família Nosferatu era rica e poderosa, no entanto, de muito carregava a fama de répteis rastejantes e corruptos, donde se imaginava a origem de sua fortuna.
Os Nosferatu foram aliados por anos de outra poderosa e sacrílega família da região dos Cárpatos, os Dracul, de onde veio o temido Conde Vlad Dracul, o empalador. Essa aliança entre as duas famílias tocou o terror por toda a Transilvânia por muitos anos e séculos, deixando um legado obscurantista. Dizem que no local onde fica o Castelo do Conde Vlad Dracul, o Castelo Bran, nunca nasce o sol e o uivo dos lobos é apavorante. Poucos se atrevem seguir essas trilhas sombrias, e a maioria dos que se atreveram não mais voltaram para contar suas histórias. Os poucos que voltaram emudeceram do pavor que viveram. É o que dizem os nativos.
Da família Dracul, muito perseguida pelos Otomanos quando invadiram e dominaram por longos anos a região não sobrou muitos remanescentes, mas os Nosferatu sobreviveram, pois muito esquivos, se aliaram com os Otomanos e sustentaram como puderam suas fortunas. Eram especialistas em negociatas. Tinham lábia e maneirismos afiados, e nenhum escrúpulo, portanto, facetas essas que ajudaram a prosseguir.
Mikael herdou esse talento de seus ancestrais, vivia em conversas miúdas nas Tabernas das Vilas, jogava um carteado sempre com um Ás escondido nas mangas, ambicionava e cortejava as jovens mulheres aldeãs, lindas e pobres. Outro talento herdado da família fora o fingimento, aliás, o fingimento e a traição. Traidores natos. Sempre atento por onde soprava os ventos, Mikael aproximou-se da professora Vana Drusu quando ela foi eleita em Brasov, ofereceu seus préstimos, fez-se parecer um cavalheiro, mas não tardou em ruminar seus talentos: a traição o maior deles. E no Altar esquivo das noites tramou a queda da alcaidessa para extrair daí todas as vantagens de um cargo obtido para si de forma artificial e poluta. Bingo!
Havia uma Taberna em especial, pois muito característica, onde Mikael costumava tramar seus ardis e bebericar as madrugadas, esta ficava à margem do Rio Alunis, um afluente do Danúbio que banha Brasov e em uma parte mais afastada do núcleo urbano da cidade, na boca da floresta. Dizem que é um lugar onde se encontram as Pestes, nome que os aldeões dão às criaturas horrendas da noite. Ninguém que não fosse desse organismo se atrevia a ir a esta Taberna, tampouco às altas horas.
Mikael tinha um comparsa muito próximo de suas tramas e sortilégios, a princípio um fanfarrão, mas sem maiores importâncias, alguém que não o levavam muito a sério, contudo, o passar do tempo fez revelar ali uma criatura ainda mais horripilante e perigosa do que o ultra perigoso Mikael Nosferatu. Estou falando do capitão Iancu Bucur Militaru, conhecido como Messias em razão de sua pregação errática da Bíblia, donde se apresentava como uma espécie de profeta do Apocalipse, reencarnação de João de Patmos, e isso se consumou com as evidências de uma clarividência delirante desde quando foi expulso do Exército romeno por desvios de condutas, o que parece ter deixado uma grande mágoa nele. E um enorme desejo de vingança, um ódio visceral a quem supunha ou afirmava os seus inimigos. Não eram poucos.
O capitão Iancu dizia que tinha sido um partisano de Tito – o Marechal Tito – nos Balcãs, mas todos sabiam que era mentira dado a sua fama de mitomaníaco e, ademais, a sua indisfarçável admiração pelos tedescos nazis. Tratava-se de um homem grotesco que costumava agredir mulheres, mas não encarava qualquer contendor sozinho e de frente. Covarde até a centésima geração de sua ascendência. Um homem rude, simples e borracho até aparecer com uma inexplicável fortuna. Negócios imobiliários, como dizia.
O fato é que ele era o corpo e a alma, as mãos levianas, para as coisas sujas de Mikael Nosferatu até o dia em que deu uma rasteira no Mestre e assumiu a cadeira que Mikael roubou da professora Vana Drusu. Desde o Golpe de Mikael Nosferatu em Vana e depois as artimanhas que Iancu Bucur Militaru fez para emergir ao poder que o povo de Brasov perdeu a esperança da luz que refletia em Vana. Dali em diante a cidade mergulhou na escuridão de uma longa noite e as pessoas viram seus reflexos sumirem dos espelhos dado a opacidade da tela. Uma tristeza infinita abateu aquele povo.
Iancu governara com seus filhos corruptos como se fora o governo uma dinastia imperial e o Estado a sua própria casa, mas, malicioso e cínico, dizia ter acabado com a corrupção e os vampiros. Mentira! Ele próprio uma criatura soturna, alguém que vivia nas sombras e das posses do que lhe não pertencia. Dizia-se fã do Conde Vlad Dracul e exaltava sem qualquer moderação sua prática horrenda do empalamento, então instituiu o culto desse demônio como se fosse um deus olímpico, o deus protetor de Brasov.
As pessoas cada vez mais pálidas e deprimidas se submetiam passo a passo às vontades desta Peste, ninguém mais o combatia; não havia mais instituição alguma a lhe opor o domínio autocrata. Tudo havia sido destruído, afinal, Iancu chegou ao poder dizendo que seu nome era destruição. Dito e feito.
E assim, a escuridão dos Cárpatos na região do Castelo Bran se espraiou em uma nuvem espessa e escura que parou no céu de Brasov. Era o fim! Era a noite sem fim!
Ah, a Transilvânia é aqui.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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