Da arte de ocultar a verdade ou as “verdades loucas” de Chesterton
Precisamos sair para uma renovação da esquerda e vencer preconceitos plantados pelos meios de comunicação dominantes e a chuva previsível de fake news que virão por aí
A melhor maneira de destruir uma verdade é mostrá-la truncada, pela metade ou fora de contexto. Ela é apresentada então, com ar de seriedade, com a força de um axioma inquestionável. Nem é necessário criar uma outra fake news. Ela já é fake quando assim aparece, deformada. Pedaços de verdade soltas, são as verdades loucas, expressão tirada de Chesterton, num outro contexto. Nisso, profissionais de meios de comunicação são extremamente hábeis.
Gastei meu tempo e paciência ouvindo as notícias da Globo News. Ali trazem um fato escolhido a dedo, parcial e fora de contexto e o apresentam, através de um/uma âncora, como algo completo e definitivo. Logo passam a palavra a três “comentadores” que o glosam. Gerson Camarotti, por exemplo, falará, com seu vocabulário ralo, no “desconforto” que ele produz no campo do governo. Aliás, o que mais interessa a esses comentaristas é como o fato incide nos meios palacianos. O ponto de fuga da notícia (referência no horizonte) está no Planalto e não na sociedade.
Puxo um exemplo ao acaso. Impressionou-me a sanha como, por dias inteiros, se lançaram como abutres no pobre ex-quase ministro da educação, um negro que entrava no círculo restrito do poder. A maluca da Damares e o ministro anti-ecológico, também falsearam seus curriculos. Nem uma palavra a respeito. Já o negro era estraçalhado. Um cheiro de racismo ficava no ar. Um fato não era sequer mencionado: se a tese de Carlos Decotelli tinha sido recusada por uma Universidade de Rosário, ninguém lembrou que a Universidade Nacional de Rosário tinha dado o título de doutor “honoris causa”, em 9 de abril de 2018, horror dos horrores, a ninguém menos do que a Lula!
Faz uns dias denunciaram, como novidade, um Serra já carta fora do baralho. A Lava Jato quer mostrar que é imparcial e, se acusou Lula, acusa também Serra. Na verdade, ele e o Aécio foram escondidos em suas falcatruas por anos. Quem leu a Privataria tucana de Amaury Ribeiro Junior, de 2011 (Editorial Geração) já conhecia isso e muito mais. Ali se indicava como Serra recebia propina no processo de privatizações, que desaguavam em paraísos fiscais.
O que aconteceu para voltar a esta notícia tão extemporânea? A Intercept, através da Vaza Jato, está trazendo provas palpáveis da ligação direta da “república de Curitiba” de Moro e Dallagnol, com o FBI, por fora do Ministério da Justiça e da Polícia Federal. E dá, com a seriedade de meios de comunicação profissionais, nomes de vários agentes americanos envolvidos na Operação Lava Jato. Uma foi importante, a agente Leslie Rodrigues Bakschies, por muitos anos com base na América Latina, participando de ações no Chile e no Brasil, e possivelmente na preparação de multas bilionárias em empresas alvo da Lava Jato, como a Petrobrás e a Odebrecht.
Já em 2016 (Folha de São Paulo, 04/07/2016), Marilena Chauí denunciava que Moro tinha sido treinado pelo FBI. E acusava Temer e seu ministro de Relações Exteriores, José Serra, depois do impeachment de Dilma, de quererem entregar o pré-sal e enfraquecerem o Mercosul. Documentos vazados da Agência de Segurança dos Estados Unidos (NSA) indicavam que a presidente Dilma e assessores tinham sido alvos de espionagem desde 2013, na preparação do impeachment. Caída Dilma, no governo Temer, começou a privatização de setores do petróleo. Assim, áreas do pré-sal, como Carcará, foram entregues a setores privados. Ali, a empresa norueguesa Equinor se uniu em consórcio com a ExxonMobil. Quando alguns de nós indicávamos que Moro e Dallagnol, em conluio com Guedes, serviam a interesses estrangeiros, os que faziam deles heróis à la Robin Hood na luta contra a corrupção, escandalizados, negavam com veemência esse fato. É agora o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quem declara que, para Dallagnol, a Lava Jato é um movimento político, envolvido numa possível candidatura de Moro em 2022, certamente com uma plataforma neo-liberal privatista (UOL, 04/07/2020).
Em informações antigas publicadas na Intercept, Moro indicava aos procuradores, que ele orientava, que não era hora de diversificar a pesquisa da Lava Jato, incluindo FHC e seu governo, pois seu apoio era importante. Tinham aparecido doações de Marcelo Odebrecht ao Instituto Fernando Henrique. Elas tinham ido também ao Instituto Lula. A direção das denúncias deveria ser uma só: Lula. E se, dos bolsos de Aécio jorravam milhões de dólares e as contas da filha de Serra engordavam na Suiça, esse não era o alvo.
Por outro lado, não tinham provas contra Lula, “mas convicções”, quando Deltan Dallagnol publicou, com estardalhaço, sem nada concreto, um gráfico fake com ramificações de crimes, com Lula no centro. Só tinham como fato um interesse de Mariza Letícia por um tríplex em Guarujá, com o qual Lula fora contra. Foi o suficiente para Moro condenar Lula. Para ele, acaba de declarar na Globo News (05/07/2020), em tom de gozação, estivera com Lula num ringue. Juiz ou adversário? E os desembargadores em Porto Alegre, em recurso passível de anulação, como a condenação viciada de Moro em primeira instância, aumentaram escandalosamente a pena, com longos pareceres escritos antes de ouvir as partes... Uma outra juíza, Gabriela Hardt, igualmente de Curitiba, em parecer calcado no de Moro, também condenava Lula a partir de indícios, por um sítio paulista em Atibaia.Também nesse caso os desembargadores aumentaram a pena. Ali havia um sinal: os nomes de netos de Lula em pedalinhos. Curiosamente, os fatos condenados em Curitiba tinham materialidade em São Paulo, tão longo era o braço justiceiro da Lava Jato.
A ironia é que agora se descobriu que foi num sítio de Atibaia que o advogado dos Bolsonaros, Frederick Wassef, escondeu Fabrício Queiroz, pau mandado de Flavio, por cerca de um ano e agora espuma ameaças...
Vai ficando claro que a Lava Jato, a partir das descobertas concretas da Vaza Jato, tinha um fim: desmoralizar a Petrobrás com seu pré-sal e destruir empresas como a Odebrecht, que tinham tido a ousadia de se tornaram multinacionais, em concorrência com empresas ianques . Que havia alta corrupção, claro que havia, uma corrupção endêmica que envolveu diretores, muitos do PT, novos ricos inebriados pelo poder.
A partir desses fatos, do mensalão e depois do petrolão, a imprensa, ligada aos setores dominantes, iniciou, dia mais dia, uma campanha sistemática anti-Lula e anti PT. O Jornal Nacional da Globo trazia, quase diariamente, um grande cano de esgoto do qual jorravam dólares, aparentemente petistas. Esse clima anti-Lula e anti-PT penetrou no imaginário de um povo mal informado e teve resultados na eleição de 2018.
O grande erro do PT, manchado pelo suborno, foi não reconhecer logo a contaminação, ao entrar em um poder corrupto. Como pediu a seu tempo Tarso Genro, era indispensável refundá-lo. Mas aquilo tudo foi, antes de tudo, não esqueçamos, um grande pretexto para uma política anti-nacional.
A história pode dar exemplos que iluminam. Saltando para trás, no Irã, em 1951, o primeiro ministro Mohammed Mossadegh nacionalizou o petróleo, até então nas mãos da Anglo Iranian Oil Company. Em 1952 a CIA logo entrou em cena, acusou a nova estatal de corrupta, derrubou o primeiro ministro Mossadegh, deu poder ao Xá que se exilara e que, ao voltar, provocou logo a privatização. Assim, a petroleira assumiu, novamente, o rico botim. Até que, anos mais adiante, os ayatolás varressem com eles todos, Xá e petroleiras. Até hoje os Estados Unidos, em represália, mantêm um embargo ao Irã.
Entre nós, Carlos Lacerda e seu partido, a UDN, pouco depois, em 1954, apareciam como paladinos da moralidade, contra um discutível “mar de lama” e levaram Getúlio ao suicídio. A comoção na ocasião foi tanta que não tocaram imediatamente na Petrobrás e na Eletrobrás nascentes. Mas era questão de esperar. Aqui também a Lava Jato apareceria mais tarde, como um serviço a favor da honestidade, quando, na verdade, abria caminho para possíveis privatizações.
Retomando a pergunta feita atrás sobre as denúncias a Serra, quando a Vaza Jato mostrou o conluio dos promotores e um juiz de Curitiba com o FBI, fazia-se necessário desviar a atenção, e a escolha foi atacar um PSDB moribundo. Eram verdadeiros os fatos? Sim, mostramos atrás, conhecidos desde muito tempo, uma meia verdade que se tranformava em “verdade louca”.
A grande imprensa calou sobre a ligação Moro-Dallagnol-FBI e jogou-se na grande “descoberta” das contas da filha de Serra na Suíça. A Lava Jato quer mostrar que é imparcial e, se acusou Lula, acusa também um dirigente de PSDB. Assim, o fato contra Serra voltava como cortina de fumaça, para desviar a atenção.
Trago uma observação feita com certa melancolia: enquanto a grande imprensa atua com certeira professionalidade, análises do lado de cá, em depoimentos e denúncias, muitas vezes juntam opiniões e fatos, de maneira amadorística. Temos de aprender com a Vaja Jato e Glenn Greenwold a um maior rigor. Têm surgido debates alternativos que se transformam, muitas vezes, em bate-papos soltos, onde ideologia, achismo e fatos se misturam. Há que tomar os fatos e esmiuçá-los, ou colocá-los num contexto maior. Luís Nassif, Jânio de Freitas e Marcelo Auler, bons jornalistas, entre outros, tem feito denúncias consistentes.
Nesse contexto, diante de uma opinião pública afogada em fake news, há que empreender um trabalho pedagógico que desoculte falsidades ou semiverdades. Mais que opiniões gerais e vagas, lembrar fatos e distorções.
A arena de uma frente ampla é um espaço para, ali, provocar um amplo discernimento, diante deste desgoverno. Muitos puristas preferem encerrar-se em suas certezas, sem dialogar com outras posições. Entretanto, não esqueçamos, há muita gente que votou enganada em 2018, às vezes por má informação ou por preconceitos. Um diálogo pluralista e franco é o melhor caminho para levar a rever posições. Varias frentes e alianças convocadas são ocasião de revisões. Claro que as alianças têm limites. Sarney e Temer entraram em uma e saíram logo esbaforidos. FHC tem um pé dentro e um pé fora. Guedes e Moro não cabem de nenhuma maneira numa frente realmente democrática, popular e nacional. Quando alguém falou de convidar Moro, Guilherme Boulos foi claro: se ele entrasse por numa porta, ele sairia por outra.
Fica uma pergunta no ar: teremos Lula saindo de seu isolamento? Em 2018, isso custou, em parte, a vitória de Bolsonaro. Claro que não é fácil. Numa dessas reuniões de frentes, Haddad citou o ex-presidente e foi duramente criticado, tantos são os preconceitos plantados. Mas ele é talvez a figura mais emblemática do país e poderia ter a grandeza e o desprendimento de superar traumas e somar forças, numa frente pluralista, sem hegemonias. Ele aí seria indispensável.
Há uma longa lista de dirigentes sociais e políticos dispostos a se unirem para pensar caminhos alternativos, em várias direções e, assim, superar um governo psicopata, ignorante e perigoso.
NB. Acabo de ver Fernando Haddad no Roda Viva. A comparação com o presidente seria absurda, tão abissais são as diferenças. Sua lealdade com seu partido e com Lula mostraram sua admirável dimensão humana. Mas o mais importante foi sua abertura plural a uma frente progressista alternativa, dentro de uma frente democrática mais ampla, que não se esgota em 2022. Nesse sentido um PT e Lula, que talvez ainda não superaram totalmente seus traumas compreensíveis do passado, ainda poderiam ser limitantes, mas ele soube driblar o problema com elegância. No final um ouvinte levantou uma dobradinha que me deixou pensativo: Flávio Dino e Fernando Haddad... Ele lembrou Manuela d'Ávila no Rio Grande do Sul e Marcelo Freixo no Rio. Precisamos sair para uma renovação da esquerda e vencer preconceitos plantados pelos meios de comunicação dominantes e a chuva previsível de fake news que virão por aí.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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