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Alice Daflon

Médica e advogada, servidora pública aposentada, membra da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

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Da necessidade de políticas de inclusão para deficientes auditivos

Estou a contar um pouco da minha história com o objetivo de reivindicar maior acessibilidade para pessoas surdas nas salas de cinema e teatro

Sala de cinema (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

Fui assistir ao filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, com a magnífica Fernanda Torres, logo que entrou em cartaz nos cinemas do Brasil inteiro. Interessadíssima na película, ganhadora do Oscar, corri para ver o filme tão comentado pela imprensa e entre amigos. No Rio, assisti no cinema São Luiz, na rua do Catete, escolhido pela ótima tela. Já o som, não se pode dizer o mesmo. Sou deficiente auditiva, minha surdez é classificada como grave a severa no ouvido esquerdo e severa a profunda no lado direito. Uso prótese convencional retro auricular na orelha esquerda e fiz implante coclear à direita. Para escutar, preciso associar o som que me chega, que é precário e distorcido, à leitura labial. Essa geringonça tecnológica, por outro lado, me serve perfeitamente para o celular, pois o conecto com ambas as próteses através do recurso bluetooth, que elimina qualquer barreira entre o som do celular e as minhas próteses, em que pese eu ficar desconectada do resto do entorno enquanto estou no bluetooth. 

Mas até mesmo esse recurso tem suas limitações, posto que a acústica da sala de gravação, seja de live ou de vídeo, interfere diretamente na qualidade do som, que depende do tamanho da sala, da altura do teto, e até do material usado na construção, pois a densidade, a estrutura e os poros do material influenciam a transmissão do som. Dessa forma, o mesmo tribuno, orador ou apresentador pode ser bem entendido por pessoas com surdez ou não, a depender da acústica do local onde foi feita a gravação.

No meu caso, minha surdez é progressiva e em torno de cada dois anos eu preciso fazer um upgrade na tecnologia disponível, a qual, diga-se, é bem cara, sendo certo que os aparelhos oferecidos pelo SUS não servem para muitos surdos que necessitam de tecnologia mais avançada. E estou num desses momentos em que preciso de um upgrade, pois a minha surdez deu uma piorada recentemente.

Mas porque conto tudo isso? Primeiramente, sou grata por ter nascido no século XX, pois, se houvesse nascido em séculos anteriores, teria que usar aquele chifre de boi para tentar ouvir alguma coisa. Viva a tecnologia! E sou grata por não ter perdido o nervo auditivo, sem o qual as próteses seriam inúteis. Meu problema situa-se na orelha média e na cóclea.

Sou cercada de afetos e amigos do peito que já se acostumaram com a minha surdez e tem a boa vontade de falar articuladamente, alto, devagar e olhando para mim. Que maravilha ter amigos assim! Gratidão eterna! Mas se a pessoa tem má dicção, usa um bigode comprido que dificulta a leitura labial, fala baixo, tem lábios muito finos… fica difícil entender. Não há boa vontade que resolva.
No teatro, acontece a mesma coisa, com honrosas exceções. As salas do shopping da Gávea, por exemplo, são perfeitas para os surdos: som surround, nítido, de ótimas qualidade e com volume ideal. A última peça que assisti lá foi “Não me entrego não”. Que felicidade ouvir o grande Othon Bastos num monólogo meio diálogo com a sua memória. 

Fiquei mega feliz de entender as falas desse espetáculo magnífico que é ver Othon Bastos em cena, com uma dicção perfeita, ânimo de menino, um jovem, na verdade, apesar dos seus mais de noventa anos, passeando por sua história com o auxílio da sua memória, repassando toda a sua trajetória teatral e cinematográfica, com textos de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, do saudoso Glauber Rocha, onde representou o cangaceiro Corisco, e São Bernardo, do grande Léon Hirszman, tempos de grandiosa cinematografia brasileira, sem prejuízo de outros grande filmes e cineastas brasileiros contemporâneos, posteriores e atuais. 

Um viva ao cinema brasileiro! Ah! Na peça, Othon citou passagens de outras peças memoráveis como “Um grito parado no ar” em parceria com Gianfrancesco Guarnieri, outro gigante, em plena ditadura empresarial-militar, passeando com jovialidade e vigor por toda a sua trajetória. Eu fiquei muito feliz de entender a peça! Já o Teatro Poeira não é inclusivo, pois os atores falam no gogó , sem microfone e nada de auto falantes. Fui assistir Lady Tempestade, monólogo dirigido por  Yara de Novaes, com a excelente atriz Andréa Beltrão e sai nos  primeiros 10 minutos, pois não entendi absolutamente nada do que ela falou. Poucos dias depois, fui à reinauguração da cinemateca do MAM para assistir ao filme Salomé, filme brasileiro dirigido por André Antônio. Era dia de festa e muita alegria entre os presentes. Afinal, minha geração curtiu muito a cinemateca do MAM na década de 70, onde assistimos grandes filmes tanto no sentido artístico, como no sentido político. Pensei: não posso perder a reinauguração da cinemateca do MAM! Mas que decepção! Som de péssima qualidade, absolutamente incompreensível, não só por mim, como também por idosos que estavam presentes no grande evento. Filmes brasileiros nunca mais!, pensei. Eu queria ver Vitória, de Andrucha Waddington, com a gigante Fernanda Montenegro, mas lembrei das experiências frustrantes e desisti. Fico esperando  e torcendo para que passem nos streamings, onde há a opção de legenda. Saí triste da reinauguração da cinemateca do MAM e nesse dia me veio a ideia de que eu preciso ser uma surda militante. 

Por isso, aqui estou a contar um pouco da minha história com o objetivo de reivindicar maior acessibilidade para pessoas surdas nas salas de cinema e teatro. Bato palmas para o Teatro Municipal, em cujas óperas há legendas projetadas acima do palco que facilitam muito o entendimento do enredo da peça. Por outro lado, cito algumas salas de shows musicais que considero acusticamente muito ruins. São enormes e a acústica é péssima até para quem não é surdo. A propósito, cito o Vivo Rio, onde assisti alguns shows, como Chico Buarque, Simone, Pat Metheny e, mais recentemente, ao Show de Verão da Mangueira. Curti a festa e o ambiente alegre, mas por vezes não conseguia nem sequer identificar a música que estava tocando. Meu companheiro percebia meu olhar indagador e cantava para mim e eu acompanhava junto com ele. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que a melhor acústica era a do banheiro feminino do lado esquerdo de quem entra. Fiquei lá um tempo curtindo Chico Buarque muito mais do que no lugar que adquirimos bem em frente ao palco. Coisas que só surdos percebem…  eu até ri da situação. Agora, indo direto ao ponto, os operadores da cultura e do direito, mormente deputados federais, que, na casa do povo propõem projetos de leis, precisam atentar para a acessibilidade dos surdos aos eventos culturais.

 Considero isso um direito humano. Um direito fundamental. É simplesmente absurdo que filmes brasileiros não tenham legendas em português. É simplesmente absurdo que casas de show tenham péssima acústica. E é simplesmente absurdo que espaços para a apresentação de peças teatrais não adotem microfone. Bato palmas para os cinemas que adotam rampas e lugares para cadeirantes, bem como cadeiras para obesos, mas parece que os surdos são os grandes esquecidos, talvez porque nossa deficiência seja invisível aos olhos dos desavisados. Temos aparência saudável, e o somos, de fato, apenas precisamos de políticas de inclusão.   É em nome de todos os deficientes auditivos do país que venho reivindicar seja proposta e aprovada uma lei que obrigue a adoção de legendas em português em todos os filmes brasileiros, bem como uso obrigatório de microfone nas salas de teatro. E é necessário que a concessão de alvará para casas de show passem por uma avaliação da acústica local. Afinal, assim como eu, há muitos surdos que adoram cinema e adoram teatro e adoram musica e adoram shows, só precisamos ser incluídos integralmente nesses eventos culturais.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.