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    Salvio Kotter

    Escritor, tradutor e editor da Kotter Editorial, que vem publicando grandes autores de livros de política de cunho progressista, e também livros de filosofia e de literatura.

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    Decifra-me ou te devoro: a polifonia bolsonarista

    Nos encontramos hoje em um paradoxo: ou deciframos Bolsonaro e o bolsonarismo ou eles nos devoram

    Jair Bolsonaro (Foto: Reuters/Ueslei Marcelino)

    Desde o primeiro dia do governo Bolsonaro, o bolsonarismo se caracterizou por uma complexa polifonia, um emaranhado de elementos que se entrelaçam e se retroalimentam, compondo um cenário político singular e, por vezes, contraditório. 

    E embora Bolsonaro tenha sido apeado do poder, o bolsonarismo permanece ativo e forte, ao ponto de nos encontramos hoje em um paradoxo: ou deciframos Bolsonaro e o bolsonarismo ou eles nos devoram. Afinal, não é possível combater um inimigo com eficácia se não o conhecermos muito bem.

    Chegar a esse conhecimento requer dissecar os aspectos mais proeminentes desse fenômeno, desde sua inclinação militar e miliciana, até a influência evangélica e uma miríade de outras configurações camaleônicas que se imbricaram ao longo do governo Bolsonaro. Afinal, em que consistiu esse governo? Marque com um X a alternativa correta.

    Um governo militar? - Por medo ou como contrapartida da Comissão da Verdade, os Militares arquitetaram sua volta ao poder? A presença militar no governo Bolsonaro é inegável. Desde a figura do General Villas Bôas, que exerceu influência direta em decisões políticas, até o preenchimento de ministérios e cargos de alto escalão com militares, a marca das Forças Armadas se fez presente. A ameaça velada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a candidatura do principal adversário de Bolsonaro, por exemplo, cristaliza a instrumentalização do aparato militar em prol de interesses políticos específicos. Some-se a isso o vice-presidente, General Mourão, conhecido por suas declarações de cunho golpista, e o que se delineia é a imagem de um governo que se autodefine pela e para a militarização.

    Um governo miliciano?

    Teriam as milícias chegado ao poder central do Estado? A associação de Bolsonaro com milícias não é novidade para quem acompanha sua trajetória política. Sua defesa aberta desses grupos em diversas ocasiões, tanto no Congresso Nacional quanto em declarações públicas, evidencia uma espécie de afinidade ideológica com aqueles que operam à margem da lei. Bolsonaro não apenas defendeu tais grupos, mas também manteve relações próximas com milicianos, inclusive compondo os gabinetes seus e de seus filhos. Essa intersecção entre política e atuação paramilitar configura um cenário preocupante, onde a linha que separa o legal do ilegal se torna perigosamente tênue.

    Um governo da teocracia evangélica? - A aproximação com igrejas evangélicas antagônicas lhes permitiu a tomada do poder? A estreita relação de Bolsonaro com setores evangélicos delimitou um dos contornos mais visíveis do seu governo. Seja batizando-se no Rio Jordão ou contando com o apoio maciço de líderes evangélicos, o governo Bolsonaro soube capitalizar o eleitorado religioso para os seus propósitos. A instrumentalização da fé, convertida em ações políticas e manifestações de apoio incondicional que incluíam até o gesto simbólico da "arminha" em cultos, revelou uma governança que não hesitou em mergulhar fundo nas águas do fervor religioso para consolidar sua base.

    Governo do baixo clero? - Teriam finalmente se levantado os eternamente eleitos, mas sempre excluídos e tomado o poder? O passado político de Bolsonaro, marcado pela atuação no chamado "baixo clero" do Congresso, revela muito sobre o caráter pragmático de seu governo. Cultivando alianças com políticos de estirpe semelhante, o presidente conseguiu montar um arcabouço político fundamentado em práticas clientelistas e de cooptação. Este modus operandi, longe de ser uma inovação, perpetua uma forma de fazer política que privilegia acordos em detrimento de princípios programáticos ou ideológicos.

    Um governo perenialista? - O Fascismo foi um braço do Nacional Integralismo criado por Charles Murras nos estertores da Revolução Francesa, contra ela, naturalmente. O outro braço foi o Perenealismo. O Perenialismo, no Brasil marcado pela influência de Olavo de Carvalho, desempenhou um papel significativo no governo Bolsonaro, particularmente na agenda educacional. Carvalho, uma figura polarizadora, imprimiu sua visão conservadora e anti-globalista nas políticas públicas, moldando a educação e a cultura brasileira. A nomeação de ministros alinhados com suas ideias reflete essa influência, traduzindo-se em iniciativas e reformas que visam fortalecer uma perspectiva perenialista na sociedade.

    Além disso, a influência perenialista estendeu-se à cultura, como testemunha o forte apelo que valores e identidades nacionais consideradas tradicionais têm no seio do bolsonarismo. Esse culto ao nacionalismo, embora controverso, teve como objetivo reforçar um senso de orgulho patriótico e uma conexão com um passado idealizado do Brasil, que se apega à ideia de uma pretensa identidade do povo brasileiro que estaria ameaçada pelas mudanças globais. Parece correto dizer que tivemos um governo perenialista. 

    Um governo lavajatista? - Paralelamente, a adoção do discurso anti-corrupção marcou a faceta lavajatista do governo Bolsonaro. A Operação Lava Jato, por muito tempo propalada como símbolo de combate à corrupção, influenciou significativamente a narrativa política bolsonarista. Incorporar figuras como Sérgio Moro, ex-juiz da Lava Jato e posteriormente ministro da Justiça, simbolizou um (falso) compromisso com a continuidade da luta contra a corrupção que a Lava Jato se arvorava empreender.

    A inclusão de personalidades ligadas à Lava Jato no governo não foi apenas simbólica. Ela foi também uma estratégia para capitalizar o apoio popular gerado pela operação. Isso refletiu a tentativa de Bolsonaro de alinhar seu governo com as demandas por integridade e honestidade, expressões frequentes na agenda lavajatista, por meio das quais essa operação buscava legitimar seu discurso e fortalecer sua base de apoio.

    Um governo nazifascista? - A retórica empregada por Bolsonaro, repleta de referências a slogans e conceitos que remetem ao universo nazifascista, como “Deus, Pátria, Família” ou “Brasil acima de tudo”, ilustra um aspecto preocupante de seu governo. A adoção desses lemas, carregados de um perigoso ultranacionalismo, evidencia uma tentativa de conjurar uma narrativa histórica marcada pelo autoritarismo e pela exclusão social, em uma clara aposta na divisão e no confronto como mecanismos de coesão de seu eleitorado.

    Um governo a serviço do neoliberalismo? - A escolha de Paulo Guedes como ministro da Economia e a implementação de uma política econômica marcadamente neoliberal — com ênfase na privatização, na redução da máquina pública e na supressão de benefícios sociais — revelam a face do governo Bolsonaro. Essa abordagem compõe um quadro em que a conservação de privilégios e a manutenção de estruturas de desigualdade se entrelaçam sob a égide de uma retórica populista que, paradoxalmente, atenta contra os interesses da maior parte da população.

    O fenômeno do bolsonarismo só se define por sua multiplicidade e por sua capacidade de se transmutar, assumindo em cada ocasião a faceta que lhe for mais proveitosa. Com isto ele consegue evitar ser confrontado, pois pode se configurar como melhor lhe convier para evitar ser alvejado.

    Desnudar seus múltiplos aspectos e essa compleição camaleônica é essencial para desmontar essa estratégia que o mantém como alvo móvel e escorregadio. Enfrentar esse desafio é crucial para superar essa força que na governança se mostrou não só racista e genocida, mas acima de tudo avessa ao diálogo, à democracia e ao compromisso social.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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