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    Paulo Moreira Leite

    Colunista e comentarista na TV 247

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    DELFIM NETTO (1928-2014)

    O czar da economia do regime militar sempre contou com permanente ajuda da mídia brasileira para embelezar a própria biografia

    Antonio Delfim Netto (Foto: Reuters/Paulo Whitaker)

    Falecido na última segunda-feira, aos 96 anos, o czar da economia do regime militar, Antonio Delfim Neto, sempre contou com permanente ajuda da mídia brasileira para embelezar a própria biografia.

    "Um dos economistas mais brilhantes que o país teve", disse nota de falecimento publicada pela FGV Ibre, instituição de referência em assuntos econômicos, à frente de um coral de elogios, liderados pelos grandes jornais do país.

    Em cinco décadas de vida pública, Delfim colocou uma inteligência reconhecidamente poderosa e um inegável conhecimento da economia brasileira a serviço de um projeto que alimentava a construção de uma sociedade cruel e desigual, num projeto de submissão aberta ao imperialismo.

    Identificado por uma frase que por anos a fio foi divulgada como síntese de um pensamento claramente anti-social ("é preciso fazer o bolo crescer para que possa ser comido"), Delfim teve força política para convencer os principais veículos de comunicação a divulgar um desmentido que convinha a sua imagem -- e garantir, 24 horas ao dia, ao longo de anos e anos, que jamais dissera tal coisa.

    Não convenceu e acabou carregando consigo a noção de que submeteu trabalhadores e a população pobre a sacrifícios que no fim da linha beneficiavam o andar de cima, reservando migalhas para as camadas exploradas da sociedade brasileira.

    Com direito a tratamento VIP no universo dos endinheirados, que chamavam de "milagre" um projeto econômico onde o pau-de-arara e os choques elétricos se tornaram instrumentos de trabalho a serviço da opressão de assalariados e da juventude, Delfim construiu uma biografia inseparável do processo nefasto das décadas de 60 e 70 do século passado.

    Um ponto essencial para o entendimento do personagem foi sua intervenção na reunião ministerial de dezembro de 1968, aquela que aprovou o AI-5, para compreender seu papel num dos momentos mais vergonhosos da história do país. Tratado, na época, como economista-prodígio num governo comandado pela velha guarda reacionária que assumira o comando do Estado brasileiro em 64, pediu a palavra para dizer que discordava do ato institucional.

    A surpresa durou pouco, porém. Ao contrário de boa parte de seus colegas de USP, o jovem economista não estava preocupado com liberdades democráticas nem com as denúncias de arrocho salarial Presente, com direito a palavra, na reunião que aprovou o mais infame regime político de nossa história, Delfim caminhou na direção oposta. Chegou a pedir mais ditadura, deixando claro que, em sua ótica, as duríssimas medidas em discussão eram suaves demais, num pronunciamento em tom de lamento grotesco.

    Não surpreende que, nos anos seguintes, a crueldade da política econômica ajudou a população a encarar Delfim Neto como um inimigo jurado. Assim que foi possível respirar em manifestações de rua, passeatas de estudantes e trabalhadores percorriam o centro de São Paulo, na segunda metade da década de 70, para anunciar uma reivindicação clara e direta: "O povo está a fim da cabeça do Delfim".

    Quando perdeu a cadeira de ministro, Delfim disputou o voto popular, servindo-se do voto útil das máquinas de direita e extrema-direita para garantir cinco mandatos sucessivos como deputado federal, na ordem de meio milhão de votos e mesmo um pouco mais a cada eleição. A festa acabou em 2006, quando as nuvens da ditadura e associados se dissipiram e ex-ministro teve que exibir força própria. Voltou para casa sem mandato, com míseros 38 000 votos na bagagem.

    Estava nascendo, naquele momento, uma nova fantasia ideológica no andar de cima, que abandonava os projetos de economia produtiva do capitalismo linha dura do pós-guerra, ideal para ultimatos na linha "Ame-o ou Deixe-o", e que teve em Delfim dos maestros mais disciplinados, para arrastar o país nas águas turvas de uma nova perversidade ideológica -- o neo-liberalismo financeiro, sem rosto nem pátria e muito menos empregos decentes.

    Aposentado como personagem de almoços e jantares em restaurantes da primeira linha, Delfim reconhecia o valor de cultivar aproximações improváveis num país com tantas perversidades escondidas no armário.

    Também apreciava partilhar anedotas de governos passados, com jovens e velhos jornalistas, além de interlocutores nascidos e educados em distantes universos populares, comportamento que ajuda a entender a prolongada convivência com Luiz Inácio Lula da Silva em pessoa.

    Embora transmitisse, nos contatos pessoais, a impressão de que sempre manteve um pé atrás inclusive diante de interlocutores que conhecia de longa data, Delfim tinha um prazer assumido em partilhar anedotas de qualquer governo -- de Costa e Silva a Sarney, FHC e Lula. Parecia ter a certeza de que, num país com tantas perversidades escondidas no armário, jamais seria chamado a prestar contas ao Brasil e aos brasileiros. O tempo mostrou que tinha razão.

    Alguma dúvida?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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