Depois de Assange, a próxima vítima pode ser você
Ao aprovar a extradição de Assange, o governo britânico avança na consumação de um ataque à liberdade de imprensa em escala mundial, escreve Paulo Moreira Leite
Não é difícil compreender o que está em jogo na perseguição inclemente do governo dos Estados Unidos a Julian Assange, que já completa mais de dez anos, numa ação de Estado, que une republicanos e democratas num mesmo processo.
"Que crime Assange cometeu?", perguntou Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, durante um evento em Maceió. Lula prosseguiu: "É o crime de falar a verdade, mostrar que os Estados Unidos, estavam grampeando muitos países do mundo, inclusive grampeando a presidente Dilma Rousseff".
A reação de Lula está em linha entidades democráticas do planeta, a começar pela Anistia Internacional, celebrada há deécadas pe. "Permitir que Assangue seja extraditado para os EUA o colocaria em grande risco, numa mensagem assustadora para jornalistas de todo mundo", denunciou a entidade. Fundador do Wikileaks, Julian Assange utilizou as modernas tecnologias de informação para desvendar bastidores jamais investigados do império norte-americano, que puderam ser retratados em sua intimidade e crueza, inclusive momentos de crime e horror. Divulgou informações chocantes, diálogos vergonhosos e mesmo cenas repulsivas de tortura de prisioneiros sempre apoiado em documentos -- vídeos, fotos, gravações -- cuja autenticidade jamais seria negada. Num cotidiano onde jornalistas do mundo inteiro costumam ser processados e condenados pela divulgação de notícias falsas, ou relatos que não podem ser sustentados em provas, a situação aqui é outra. Assange é processado em função de informações verdadeiras e comprovadas. A tentativa é condená-lo por divulgar a verdade. A cada passo destinado a conduzir Assange aos Estados Unidos, onde o aguarda um julgamento em corte militar, o direito de cada um de nós ter conhecimento real a respeito de verdades ocultas sobre as forças que governam o planeta fica diminuído e até ameaçado. Não se trata de um caso individual.
Em 1971, quando o New York Times divulgou documentos ultra-secretos sobre a atuação do governo Richard Nixon na guerra do Vietnã, o caso virou um escândalo universal mas foi tratado na esfera adequada, como liberdade de expressão. Responsável pelo vazamento, o analista militar Daniel Ellsberg foi julgado pela Suprema Corte, onde enfrentou uma acusação que pretendia condená-lo a 115 anos.
Apoiado pela juventude que fora as ruas lutar contra a guerra, Ellsberg assumiu suas responsabilidades pela divulgação dos papéis, alegando que, "como cidadão americano, não poderia manter essas informações escondidas do público". Acabou absolvido.
Meio século depois, o debate mudou de lugar -- e de sentido, obviamente. Num tratamento diferente daquele recebido por Daniel Ellsberg, o civil australiano Julian Assange será julgado por denuncias que envolvem a invasão do Iraque -- mas num tribunal militar, onde vigoram outras regras, outra disciplina e, acima de tudo, outros princípios.
Para a humanidade, a questão é a mesma -- liberdade de expressão -- mas o cenário é outro. O horizonte também. A militarização do debate sobre a liberdade de imprensa não é uma iniciativa inocente. O custo é pago pela democracia, isto é, por todos nós.
Alguma dúvida?
(Cabe observar que o Brasil de Bolsonaro já possui -- todas as diferenças guardadas -- um caso semelhante. A anulação dos julgamentos da Lava Jato, que trouxe Lula de volta à vida pública e à campanha presidencial, só foi possível graças a Operação Spoofing, alimentada pelos diálogos entre figurões da Lava Jato. As conversas foram grampeados pelo hacker Walter Delgatti Neto, fonte das denúncias do Intercept, que se tornaram manchete mundial. Delgatti foi investigado por várias acusações, inclusive de "organização criminosa". Nada se provou que contra ele mas segue tratado como se tivesse feito alguma coisa errada).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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