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    Samuel Gomes

    Advogado e professor, mestre em Filosofia do Direito, consultor em Poder Legislativo e Relações Governamentais

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    Desafios do processo estrutural — o estado da arte no Congresso e no STF

    "Enquanto marco legal não vem, o STF avança na conformação de uma jurisprudência do processo estrutural brasileiro", escreve Samuel Gomes

    Encontro entre membros do STF, Congresso e governo federal (Foto: Henrique Raynal/Casa Civil)

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    Esta coluna tem acompanhado o esforço do Estado brasileiro para dotar a sociedade de um marco jurídico que dê conta de produzir a melhor solução possível para problemas de grande magnitude e alta complexidade, como os efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul, das tragédias de Mariana e Brumadinho, do afundamento de bairro em Maceió, a concessão de ordens judiciais para a aquisição de medicamentos para doenças raras pelo Sistema Único de Saúde.

    O Executivo e o Legislativo, protagonistas do processo legislativo, não conseguiram ainda dotar o sistema jurídico de uma regra geral para a cooperação institucional em casos de grande amplitude e dramaticidade social e quantidade e diversidade de vítimas e atores. O marco legal para a solução compartilhada de problemas com tais características instituirá a plataforma para uma nova atuação do Poder Judiciário. Um novo processo, estrutural, que exige do juiz compreensão amplíssima e atuação integradora.

    Primórdios

    O Executivo, reconheça-se, deu o primeiro passo já em 2009, com a instituição pelo ministro da Justiça Tarso Genro de uma comissão de juristas que elaborou anteprojeto de lei para disciplinar a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (PL 5.139/2009),

    Sua tramitação foi interrompida por razões completamente alheias à matéria [1]. O deputado Paulo Maluf quis expor sua força, num determinado contexto, e o fez derrotando o projeto na Comissão de Constituição e Justiça. O aliado de Maluf que operou a derrota do projeto foi o deputado José Carlos Aleluia (então DEM-BA). Da decisão da CCJC foi apresentado recurso ao plenário, que aguarda despacho da Mesa desde 12/5/2010.

    A segunda iniciativa veio da Câmara dos Deputados e também sob inspiração de um grupo de juristas, coordenado pelos professores Kazuo Watanabe, Ada Pellegrini Grinover, com a colaboração do professor Paulo Lucon Spacca. Os juristas paulistas produziram um anteprojeto, patrocinado pelo deputado Paulo  Teixeira  (PT-SP) por meio da apresentação do Projeto de Lei 8.058/2014.

    O projeto visa indicar o caminho a ser seguido pelo Poder Judiciário, em estreito contato com o poder público, para a construção do consenso ou a formulação de comandos flexíveis e exequíveis, que permitissem o controle da constitucionalidade e a intervenção em políticas públicas, evitando que o juiz se substitua ao administrador.

    Paralisação e nova iniciativa

    Depois de sofrer por dois arquivamentos (ao final da 54ª e 55ª legislaturas), e consequentes desarquivamentos, ser debatido em nutrida audiência pública e ter tido dois experientes relatores — deputado Espiridão Amin (PP-SC) e Enio Verri (PT-PR) —,  o projeto está paralisado na Comissão de Finanças e Tributação desde 31/1/2023. O autor do projeto, deputado Paulo Teixeira (PT-SP), não está no exercício do mandato – é ministro do Desenvolvimento Agrário – e o projeto está sem quem o defenda e o impulsione.

    A terceira iniciativa vem do Senado e igualmente por meio da instituição de uma comissão de juristas à qual o presidente da Casa incumbiu a elaboração de um anteprojeto de lei do processo estrutural no Brasil.

    A comissão é presidida por Augusto Aras, que acumula a experiência de haver participado da primeira comissão de juristas, instituída pelo Ministério da Justiça, em 2009, e ter sido procurador-geral da República em período em que o Ministério Público teve que se haver com as tragédias de Mariana e Brumadinho, com o afundamento de bairro em Maceió, e, especialmente, com o enfrentamento da pandemia.

    O Supremo e o processo estrutural

    Enquanto o marco legal não vem, o Supremo Tribunal Federal avança na conformação de uma jurisprudência do processo estrutural brasileiro.

    O espaço exíguo da coluna permite um único exemplo. Na Reclamação 70.667 MC/RS, o ministro relator Gilmar Mendes concedeu liminar para afastar a liminar de reintegração de posse de um prédio de hotel abandonado há dez anos, no centro de Porto Alegre, que fora ocupado por famílias atingidas pelas enchentes.

    A pertinência da decisão com o processo estrutural fica claro ao expressamente tutelar a continuidade dos entendimentos de natureza estrutural entre o governo federal, estadual, municipal, movimentos sociais, que foram interrompidos pela liminar do juiz de primeiro grau e pelo tribunal gaúcho:

    “Sem prejuízo de melhor análise por ocasião do julgamento de mérito, a mim me parece que esse fato, por si só, já é suficiente para justificar a aplicação das medidas protetivas previstas nas liminares deferidas no âmbito da ADPF 828, as quais, como já demonstrado, também tiveram o condão de amenizar os impactos decorrentes de um cenário de calamidade pública.

    Além disso, extrai-se dos autos que têm sido realizadas reuniões entre os ocupantes do Hotel Arvoredo, o Ministério da Reconstrução, a Caixa Econômica Federal e o proprietário do referido imóvel, com o intuito de regularizar a situação. Verifica-se, inclusive, que a União manifestou interesse na aquisição do imóvel e que o representante do Grupo Empresarial se mostrou aberto não só a essa negociação, como a inclusão no programa de outros 3 (três) imóveis do Grupo. Pelo que consta dos autos, as tratativas ainda se encontram em andamento.”

    O Supremo vem colocando um selo, em amarelo, em litígios estruturais e reuniu artigos para edição de artigos para a revista do STF (Suprema) , assim definindo o escopo dos estudos:

    “Os chamados litígios estruturais são demandas que decorrem do modo de operação de estruturas sociais que sistematicamente resultam na violação de direitos. Apesar de não ter origem teórica e conceitual no Brasil, este tipo processual tem sido cada vez mais recorrente. Processos e ações estruturais buscam vincular Poderes do Estado, agentes políticos e atores sociais ao propósito de transformar as realidades sociais que dão causa a esses desrespeitos a direitos e garantias.

    Esses litígios chegam ao Poder Judiciário sob diferentes formas e técnicas processuais, e os compromissos constitucionais envolvidos exigem a cooperação entre os três Poderes, agentes políticos, organizações sociais e os próprios grupos vulneráveis atingidos. O reconhecimento e a implementação dos processos estruturais ainda têm muito a avançar e, por este motivo, o tema merece destaque na discussão jurídica atual.”

    No processo estrutural a política e o Direito se encontram em busca da conjunção harmoniosa que permita, nos limites do possível — vale dizer, nos marcos do ordenamento jurídico do sistema econômico desigual e injusto —, a melhor solução (mais efetiva e mais rápida) para problemas sociais difíceis e complexos.

    Não é o melhor dos mundos, mas é o melhor no mundo que, por ora, temos para viver. É melhor que a judicialização da política, éden do juiz “heróico”, preguiçoso, ignorante e solipsista.

     

    [1] Situações como essa são mais que comuns no Parlamento. São, por assim dizer, a regra. A esse respeito recomendo a leitura do excelente artigo da nossa colega de coluna Roberta Simões Nascimento, “Por um pouco de realismo nos estudos sobre processo legislativo”

    Artigo publicado originalmente no Conjur

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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