Desde Cuba, Cristina Kirchner desnuda a armadilha do FMI
Cristina Kirchner apresentou o seu livro “Sinceramente” no dia 8 passado, por ocasião da 29º Feira Internacional do Livro em Havana, junto ao escritor e jornalista Marcelo Figueras, com a presença do presidente cubano, Miguel Díaz Canel Bermúdez, dirigentes, intelectuais e escritores, cubanos e argentinos, contando com a cobertura ao vivo da Telesul.
Convido-os a assistir na íntegra o imperdível vídeo onde Cristina Kirchner, expõe não mais na condição de candidata que transcorreu massivas apresentações do livro, Argentina adentro, durante a campanha eleitoral de Frente de Todos, mas agora, já como vice-presidenta eleita do governo de Alberto Fernández; e justamente em Cuba. Trata-se do primeiro lançamento internacional do livro “Sinceramente”. Cristina falou não só como escritora, mas como reconhecida dirigente política internacional, com grande propriedade, típica de uma estadista que protagonizou ao lado de Fidel, Hugo Chávez, Néstor Kirchner, Lula da Silva, Evo Moráles, Rafael Correa e tantos outros governos progressistas, a integração latino-americana bolivariana interrompida; que viveu na carne e no seio da sua família o ataque feroz do lawfare mafioso que demoliu conquistas do povo argentino para deixar “Terra arrasada”. Há vários pontos de destaque na sua exposição que transcendem a narrativa do seu livro e a experiência histórica passada, rumo a pautas que o governo atual enfrenta, apontando medidas mais contundentes e irreversíveis, dentro da geopolítica atual.
Lawfare e dívida externa
No tema da dívida externa, a vice-presidenta denuncia os mecanismos da exorbitante dívida contraída por Macri com o FMI, de uma magnitude jamais vista na história argentina, sequer na ditadura militar, deixando o país numa situação de gravidade superior a 2003. Cristina trata de relacionar a dívida externa com o lawfare. Ou seja, o ataque judicial-midiático é cúmplice do econômico anti-popular. Nos anos duros da ditadura, o poder econômico financeiro-oligárquico se impôs com 30 mil desaparecidos. Agora, se impõe com o lawfare, o chamado golpe-suave. Por isso, Cristina Kirchner diz que o processo do “Nunca mais” contra a ditadura, aberto por Raul Alfonsin, que aclarou que havia uma dívida com a democracia em matéria de direitos humanos, deve ser o mesmo por um “Nunca mais à dívida externa”. O “Nunca mais à dívida”, implica medidas concretas. Ou seja, não bastam somente denúncias sobre o lawfare (já sendo desvendado nos últimos meses na Argentina, no Brasil e Equador). Não basta apelar aos credores para a renegociação da dívida externa, apesar de tarefa imprescindível e urgente. Cristina sobe o tom cobrando justiça e uma severa investigação sobre os responsáveis do mecanismo de contração da dívida, como condição para viabilizar uma negociação; nenhuma impunidade, caso contrário, não haverá um “nunca mais”. Assim como a Argentina não aceita a impunidade dos repressores e genocidas de lesa humanidade, não deve aceitar a dos que endividaram o povo e fugiram do país com os capitais. Por isso, conclama justiça para investigar os responsáveis e que este seja um momento de inflexão na história do endividamento na Argentina: “Ao não se haver investigado, permitiu-se repetir a mesma medida com os mesmos personagens. Sturznegger esteve nas transações do tal do “megacanje”, e voltou pela segunda vez a ser presidente do Banco Central, repetindo a medida”. “Megacanje” foi uma medida de renegociação da dívida realizada na época do ex-presidente De La Rua em 2001; impossibilitado de pagá-la, o governo fez troca de títulos a vencimento postergado por 3 anos, para evitar o default, incrementando brutalmente os juros e a dívida. Esta cresceu, os salários e as aposentadorias caíram em 13% e o país colapsou. Hoje Sturznegger dá aulas numa universidade norte-americana, enquanto os argentinos se debatem numa situação econômica e social terrível. Onde está o ex-ministro das finanças, Dujovne que firmou acordos com o FMI à revelia do povo, favoreceu a fuga de capitais, e desapareceu do cenário rumo a paraísos fiscais?Uma questão relevante que a vice-presidenta levanta é investigar a responsabilidade dos organismos de crédito internacionais como o FMI que respeitam alguns dos seus estatutos internos e outros não. Por exemplo, ele não aceita acordos entre o devedor e credor para reduzir a dívida por dificuldade de pagamento. Porém, “aceita transgredir a norma interna que não admite outorgar empréstimos que permitam a fuga de capitais”. “Os empréstimos contraídos por Macri não foram para construir represas, e estradas”, “foram para a fuga de capitais”. Por isso, Cristina propõe atuar contra a impunidade dos executivos macristas, denunciando a ilegalidade de atos do FMI que coadjuvaram o governo Macri dando empréstimos impagáveis antes das PASO; ou seja, pressionar a revisão dos estatutos baseados na arbitrariedades do executivo do FMI, não só para impor justiça, mas uma negociação ou moratória da dívida com o FMI, apoiando-se em discussões internas na direção do próprio organismo. É sintomática a demissão do primeiro sub-diretor gerente do FMI, Davi Lipton, que assessorou tantas transgressões de Macri/Lagarde, bem como o discurso da nova diretora, Kristalina Giorgeva alinhada ao do Papa Francisco.Não há discrepâncias entre a proposta de Cristina Kirchner com Alberto Fernández, como apresentam as manchetes dos abutres do Clarin e La Nación. Ao contrário, Cristina se refere ao presidente Alberto Fernández de que cumprirá com as promessas de campanha. Cristina tem o maior apoio popular, e grande experiência como estadista e negociadora internacional para orientar o governo a exercer uma pressão tática e condições sobre os agentes financeiros e dar segurança à Frente de Todos para ir mais longe, mas não com o infantilismo político dos que propõem “não pagar a dívida”, esquecendo-se que este é um Governo Popular que triunfou com uma frente eleitoral e não com uma revolução.
“As soluções tem que ser expostas perante a sociedade porque é ela que deverá pagar; são os 45 milhões de argentinas e argentinos. Todos temos que estar de acordo em que se apliquem as normas, mas o devedor respeitará as normas, se o credor também respeitar”.
Cristina expôs sobre como o aumento das tarifas de energia também foram outro tipo de fuga. “Com os pesos que tiraram dos bolsos dos argentinos, com aumentos de 2500%, as empresas compraram dólares e os levaram ao exterior”. “O importante é que agora possamos ter um diagnóstico do que ocorreu. Não podemos pagar se não nos deixam crescer e não podemos crescer se o Estado não injeta fundos na economia. Quando há recessão, o único que pode investir é o Estado”. “As tarifas públicas tem que ser revisadas”. Alberto Fernández realizará uma revisão tarifária como prometido. “Contamos com todos os instrumentos para isso. Tenho conversado com Alberto, e estou convencida de que o fará pois ele tem esse compromisso com a sociedade. Não tenho dúvidas”.
China e EUA – uma disputa de modelos
Sobre a questão entre os EUA e a China, Cristina faz uma importante caracterização de que se trata de algo mais do que uma simples guerra comercial. “Há uma disputa de modelos. No modelo americano, o capitalismo é conduzido pelo mercado. No modelo chinês, a forma de produção capitalista é conduzida pelo Estado, associado também com empresas ou particulares, mas é o Estado o condutor. A grande disputa é entre os sujeitos que conduzem: ou é o mercado que não se responsabiliza por ninguém, somente com os que possuem lucros exorbitantes, ou é o Estado que é responsável perante milhões de pessoas. Na China isso se dá muito claramente; num país onde há 1,5 bilhão de pessoas, imagine se o mercado conduzisse isso; não teríamos esta China potente que temos hoje, e que disputa. Não existe um processo de maior inclusão que a levada pela China desde 1949. Você vai lá no interior dos EUA e encontra pobreza, enquanto a China incorporou 30 a 40 milhões por ano da China rural a um modelo de produção capitalista. A discussão vai por dois elevadores complementares e paralelos: de quem conduz o processo econômico por um lado, e das instituições e representações novas com as quais dotamos as constituições ou as organizações da sociedade. Se o mercado conduz tudo, nos conduz ao desastre, até ao desastre climático; essa é a grande discussão.”
A interrompida integração latino-americana de países soberanos
Cristina Kirchner diz que em 2014 e 2015, o governo argentino, junto com o falecido ministro do Exterior, Héctor Timerman, vítima do “lawfare”, e Axel Kicillof , ex-ministro da Economia, batalharam por uma regulamentação universal da negociação da dívida externa. “Na região (latino-americana) conseguimos muita integração política, resolvemos crises importantes, mas essa integração política não foi traduzida numa integração econômica. Não conseguimos gerar um mercado comum que nos comprasse entre nós mesmos”. Grande desafio para a Argentina hoje: para reativar a economia e a vida de milhões de argentinos, necessitará não só renegociar a dívida, mas contar com uma nova relação de forças a nível regional e latino-americano; urge a reinstalação de governos populares que restabeleçam como mínimo o nível de integração econômica da década anterior, de intercâmbio de produtos agroindustriais a nível de Mercosul, Unasul, ALBA, recriando o Banco do Sul, o BRICs, saindo do dólar, revisando falhas, acelerando passos, recuperando os Estados e as indústrias nacionais, coordenando-se com o Estado chinês e Rússia sobretudo na aquisição de tecnologias estratégicas e militares a exemplo da Venezuela. A parada não é tão simples vendo a situação que circunda a Argentina: no Brasil, Chile, na Bolívia, na Colômbia e no Equador.Cristina Kirchner se comove ao agradecer as autoridades de Cuba e a “humanidade dos médicos cubanos” na recuperação da saúde de sua filha, Florência, “que hoje está muito melhor”. Diga-se de passagem, Cuba é um exemplo de eficiência e solidariedade ao enviar médicos e remédios como o interferon-alfa-2b para a China, salvando do coronavírus mais de 1.500 vítimas. Leia. Este vídeo na Feira Internacional do Livro em Cuba revela como Cristina Kirchner concentra um potencial humano, como mulher e mãe, além de uma inteligência à altura de grandes líderes como Hugo Chávez, com agudo faro político e estratégico sobre a perspectiva revolucionária global. Tinha que ser em Havana, Cuba, no farol do Malecón, onde a esperança brilha no horizonte da América Latina, contando com a dupla Cristina-Alberto no timão da nave argentina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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