Desenvolvimento tecnológico com soberania e respeito às raízes do nosso povo
A demarcação das terras quilombolas deixa de ser vista como um obstáculo ao desenvolvimento espacial
Conciliar justiça social com visão estratégica para o desenvolvimento e a soberania nacional. Foi o que fez o presidente Lula ao assinar o termo de conciliação, compromisso e reconhecimentos recíprocos que colocou um ponto final ao conflito que se arrastava há mais de 40 anos entre os quilombolas de Alcântara e o Programa Espacial Brasileiro.
Município com a maior concentração quilombola do país, Alcântara possui 152 comunidades remanescentes de quilombos, num total de 3.350 famílias, descendentes de africanos escravizados que foram trazidos para cultivar as antigas fazendas de algodão na região. Abandonados pelos antigos donos das terras, quando o negócio se tornou pouco lucrativo no Século XVIII, formaram comunidades autônomas dedicadas principalmente à pesca artesanal e à agricultura de subsistência.
O impasse com o Governo começou na década de 1980, quando o Ministério da Aeronáutica deu início à instalação da base de lançamentos de foguetes. Alcântara possui uma localização privilegiada, bem próxima à linha do equador, o que possibilita uma grande economia de combustível e, desta forma, permite que o país ingresse de forma competitiva no lucrativo mercado de lançamentos espaciais. Para viabilizar a construção da base, mais de 300 famílias quilombolas foram deslocadas de suas terras de origem e assentadas em sete agrovilas – Marudá, Só Assim, Pepital, Cajueiro, Espera, Peru e Ponta Seca – em áreas inadequadas para garantir a manutenção de seus modos de vida tradicionais, baseados na pesca e na agricultura, pe3la localização distante do mar e em terrenos com baixo potencial agricultável. Não é por acaso que teve início na época um intenso êxodo de quilombolas para as periferias de São Luís, capital do Maranhão.
As agrovilas foram ainda responsáveis por um processo de perda de identidade das comunidades, que removidas de suas terras originais deixaram para trás antigas histórias e laços de amizade, rompendo o processo de transmissão, preservação e reelaboracão de manifestações culturais lúdicas como o Tambor de Criola, o Coco e a Festa do Divino.
Embora, em 2008, o Incra tenha reconhecido o direito dos quilombolas e delimitado a área de aproximadamente 78 mil hectares, os moradores ainda aguardavam a emissão dos títulos de posse coletiva das terras. Após o reconhecimento, tanto o Ministério da Defesa quanto a empresa binacional brasileira-ucraniana Alcântara Cyclone Space (ACS), que atuava na base, poderiam ter acenado de alguma forma às comunidades, oferecendo, por exemplo, o pagamento de royalties em troca da utilização de parte da área quilombola. Preferiram, porém, partir para a contestação do relatório, o que causou grande insegurança às famílias quilombolas, que reagiram impedindo a entrada de técnicos na área vizinha à base para a conclusão do estudo de impacto ambiental que o Ibama exigia para a liberação dos lançamentos. Conclusão, as obras foram paralisadas e o lançamento dos foguetes da série Cyclone IV nunca ocorreu.
Naquele momento, eu era ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e participei de intensa interlocução com o Ministério da Defesa, com a mediação da Casa Civil. Diante da ausência de diálogo da ACS com os moradores, o Ministério Público deu parecer contrário ao pedido de proteção judicial para que a empresa pudesse dar continuidade aos estudos ambientais nas comunidades quilombolas de Mamuna, Baracatatiua e Brito. Neste sentido, mediamos o diálogo entre as comunidades e a ACS, buscando reduzir a tensão e dar continuidade à elaboração do laudo, com respeito ao direito territorial dos quilombolas.
Porém, o impasse continuou e a situação se agravou quando o governo golpista de Michel Temer entregou a operação da base espacial aos Estados Unidos, num dos acordos mais submissos e revoltantes que já vi em minha vida. Se essa vergonha parecia insuperável, o governo Bolsonaro levou o entreguismo às últimas consequências, quando o ex-ministro Paulo Guedes ofereceu a base à empresa SpaceX, do bilionário Elon Musk, para o lançamento de satélites, sem pedir nada em troca. Pior: naquele período a empresa passou a ser fornecedora de serviços de internet via satélite para importantes órgãos públicos do Governo Federal como o Exército, a Marinha, os ministérios da Saúde e da Educação, além da gigante Petrobras. Uma quebra de soberania sem precedentes em nossa história, cujas razões declaradas por Bolsonaro e companhia não entram na cabeça de ninguém.
Felizmente, o mundo dá voltas. O novo acordo assinado pelo presidente Lula – que destina em definitivo os 78 mil hectares para os quilombolas e 12 mil hectares para o Programa Espacial Brasileiro – é o símbolo da abordagem de um governo em busca de equilíbrio entre o avanço tecnológico e o respeito aos direitos dos povos tradicionais. É sobre promover o desenvolvimento do setor espacial brasileiro, mas também garantir a dignidade e a sobrevivência de centenas de famílias quilombolas.
Ao retomar o controle completo das operações do Centro de Lançamento de Alcântara, o Brasil reafirma o desenvolvimento da nossa tecnologia espacial. Um país de dimensões continentais e localização geopolítica estratégica como o Brasil não pode se dar ao luxo de depender de empresas estrangeiras, como as do golpista confesso Elon Musk, para o lançamento de satélites e outras atividades espaciais – fundamentais para as telecomunicações, o monitoramento ambiental, a defesa nacional e outros setores cruciais.
A demarcação das terras quilombolas deixa de ser vista como um obstáculo ao desenvolvimento espacial e mostra-se, ao contrário, uma oportunidade para reafirmar que o progresso tecnológico e o respeito aos direitos humanos podem caminhar lado a lado. Eis a imagem do Brasil que queremos no cenário internacional, um país que respeita suas raízes enquanto avança rumo aos céus de forma autônoma, altiva e soberana.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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